Sistema carcerário para prender e matar gente pobre e negra

O ano de 2017 começou com uma contabilidade trágica. As rebeliões da primeira semana do ano em prisões de Manaus e Roraima deixaram quase 100 mortes.

É o retrato veemente do desprezo do Estado pelo povo pobre, e na maioria negra que está relegada às franjas mais humildes da sociedade. Cuja cidadania é tratada a bala e encharcada de sangue. O Estado e os governos federal e estaduais não cumprem sua responsabilidade pela segurança e integridade dos brasileiros, inclusive os que estão sob sua custódia nos presídios. Responsabilidade estatal que não cessa mesmo quando – cúmulo dos absurdos – a liberdade humana se torna mercadoria para o lucro empresarial quando os presídios são privatizados. Como é o caso do Compaj, em Manaus, administrado por uma empresa envolvida em negócios nebulosos que geram a ela lucros de centenas de milhões de reais.

O desprezo pelo povo aparece, de maneira radical, na forma com que os presos são tratados. A mentalidade punitiva, vingativa e “justiceira” é revelada com inteireza no descaso não apenas com os direitos humanos de todo preso, mas também na rejeição aos direitos que a Constituição garante a todos.

Desprezo que revela o ódio social que persiste no país, em esferas públicas e inclusive sociais, e que se traduz na autoavaliação dos “homens de bem” que se contrapõem aos demais, tidos como “foras da lei”. Este pensamento é exemplificado, entre outros, pela opinião do governador do Amazonas José Melo de Oliveira (Pros): “Não há santos entre os mortos”. Ou de Michel Temer, que, depois de se omitir por longo tempo ante a tragédia, classificou aquela barbárie como “um acidente”. Opinião reveladora de sua falta de uma visão planejada e, pior, do desprezo em relação à gravidade do acontecimento, como se ele fosse algo casual, alheio à responsabilidade do governo.

Esta barbárie resulta do ódio de setores públicos e parte da sociedade, que se expressa na cultura do encarceramento que é reforçada pelas medidas anunciadas pelo governo usurpador do ilegítimo Michel Temer prevendo a construção de mais presídios e o aumento do número de presos.

Esta situação já foi além de todos os limites civilizados, como mostram dados oficiais divulgados ainda no governo de Dilma Rousseff. E que indicam o crescimento avassalador – reflexo da cultura do encarceramento – do número de prisioneiros, que aumentou 6,7 vezes entre 1990 e 2014, passando de 90 mil para 607 mil presos. Hoje, 2017, são mais de 622 mil.

Em número de presos o Brasil está entre os campeões mundiais e só perde para os EUA (2,2 milhões), China (1,6 milhão) e Rússia (644 mil).

Daqueles 622 mil, cerca de 140 mil – quase um quarto – foram presos por causa das drogas. Cerca de 40% do total de presos (250 mil) são provisórios, diz o Departamento Penitenciário Nacional (Depen) do Ministério da Justiça.

Isso significa que medidas de caráter democrático que evitem a prisão provisória e a descriminalização do uso de drogas poderiam reduzir em muito a população carcerária.

Outro dado mostra o exagero do número de prisões provocadas pela cultura policialesca do encarceramento: somente pouco mais de 10% dos presos lá estão por terem cometido homicídios, e os demais 90% cometeram crimes de menor periculosidade e ameaça social.

As grandes vítimas da repressão policial e social são quase sempre pessoas pobres e negras. Vítimas do sistema repressivo montado justamente para conter o povo, disseminar o medo para prevenir insubordinações. Um estudo notável feito pela historiadora baiana Wlamyra Albuquerque mostrou como foi depois da abolição da escravatura, em 1888, que este sistema repressivo foi montado para conter e manter em seus lugares os antigos escravos, agora libertos.

Esta marca escravista da repressão policial é a mais visível herança daquele sistema iníquo. E que se mantém quase 130 anos depois, para fazer o mesmo trabalho repressivo que faziam antes: prender e matar gente pobre, principalmente negra.