1964: Condenado por pensar diferente

Nos últimos dias a grande imprensa deu enorme espaço para alguns descontentes com a situação do Brasil aos 50 anos do golpe militar. E estes alguns chamaram o povo para ir às ruas pedindo a volta da ditadura militar. E, felizmente, apenas “algunzinhos” atenderam ao chamado. Foi uma demonstração de que ruim com Dilma e a democracia, mas muito pior sem ela. É uma demonstração de amadurecimento político de nosso povo.

Eu fui perseguido político, condenado à prisão acusado de “subversivo” e procurado pelos órgãos repressivos. Tive, com Raquel, duas filhas: Iracema em 69 e Nara em 73. Tivemos todos que trocar de nome, pois passei a ser procurado pelos órgãos da repressão. Ai ficou difícil de ter contato com a família, que era vigiada para me prender. Emprego com nome “frio”, sem currículo e sem formação era muito complicado. Até as filhas tiveram que trocar de nome para estudar e evitar minha prisão. E como elas entenderem o por que de outro nome e outro aniversário? Por que Divo é João e Raquel é Maria Eufrida?

A sobrevivência vinha de nosso trabalho e da solidariedade dos amigos e familiares, quando tínhamos condições de encontrar. O contato com a família era muito pequeno e feito através de amigos/ simpatizantes que organizavam nosso encontro de forma a não sermos presos . Eles também acabavam correndo riscos, pois tudo era vigiado, mas havia muita solidariedade. Não podíamos ter quase nenhum móvel ou eletrodoméstico, por não termos dinheiro, mas também porque vivíamos mudando de casa. Em 10 anos moramos em mais de 10 casas diferentes. Era comum a polícia descobrir a casa de alguém que precisava sair sem poder levar nada. Em 1969 nossa casa foi minimamente montada com móveis do companheiro João Batista Drumond, que precisou sair para não ser preso . Eu retirei os móveis com a história de que era seu cunhado. Em 1976 Drumond foi assassinado no Doi/Codi em São Paulo, no caso conhecido como Chacina da Lapa, onde foram assassinados também Pedro Pomar e Angelo Arroio e presos outros cinco lutadores da democracia.

Mas, o mais terrível de viver num estado de ditadura terrorista como a que vivemos, principalmente de 1969 a 1974, era a tensão que nos acompanha e era permanente. Sabia que se fosse preso seria torturado e até morto e que minhas filhas e companheira corriam risco. A mesma tensão viviam meus pais e irmãos, pois quase não tinham notícias minhas. Taxistas, porteiros de hotéis, colegas de sala e trabalho, participantes de atos, assembléias podiam ser agentes da repressão infiltrados, para delatar os críticos do regime. Podiam me seguir pela rua, apontar minha casa à polícia que me prenderia. Muitas crianças foram presas com os pais, ameaçadas e até torturadas na frente dos mesmos. Não havia respeito às liberdades individuais e/ou coletivas, nem das crianças.

Neste período trabalhei como vendedor e pequeno comerciante, o que permitia militar e viajar para articular o Partido. Cheguei a trabalhar numa empresa metalúrgica, com carteira assinada e nome frio, pois conseguira tirar todos os documentos. Em fins de 1979, depois de muitas lutas, foi aprovada a Lei da Anistia, que beneficiava os perseguidos e torturados e também os torturadores.

Em 1º de maio de 1980 houve um atentado contra o povo no Rio Centro, feito pelos militares para culpar os comunistas. Deu errado prá eles e estourou no colo dos milicos, com muita repercussão. O jornal Tribuna Operária, onde eu trabalhava, foi apreendido pela Polícia Federal, portanto depois da Anistia, e fui detido por tentar impedir que o mesmo fosse recolhido. E em abril de 1982 a censura, através da Polícia Federal, apreendeu na sede e nas livrarias o livro/revista Guerrilha do Araguaia, quando fui novamente detido e depois aberto inquérito que foi arquivado. O relatório que solicitei à Abin consta que os serviços de informação do governo seguiram meus passos e fizeram relatórios de minhas atividades públicas até o final de 1989, ou seja, 10 anos depois de publicada a Lei da Anistia.

O Brasil teve 5 presidentes, entre 1964 e 1985, todos generais, escolhidos pelos militares, sem o voto do povo. Mesmo a eleição de Tancredo Neves e José Sarney em 1985, que marca o fim da ditadura, foram eleitos pela oposição, no Colégio Eleitoral. Depois de 1960, Collor foi o primeiro presidente eleito pelo voto popular , no final de 1989.

Com este depoimento pretendo mostrar que a democracia que vivemos no Brasil custou o sacrifício de muitas milhares de pessoas, das quais alguns milhares foram perseguidas, presas, torturadas e centenas delas mortas e muitas ainda continuam desaparecidas. Enquanto houver um desaparecido, a luta deve continuar até que os familiares possam receber seus restos mortais e sentir-se seguros de que nunca mais se repitam esses fatos. Todo apoio à luta da Comissão da Verdade e pelo fim da Anistia aos torturadores.
Liberdade abre as asas sobre nós! Prá voar. Ditadura nunca mais!

*Divo Guisoni
Perseguido e anistiado político