Cancelamento de viagem aos EUA é defesa da soberania nacional

A nota oficial com que o Palácio do Planalto confirmou o cancelamento da viagem da presidenta Dilma Rousseff aos Estados Unidos merece ser lida com atenção. 

Ela consolida a viragem da diplomacia brasileira ocorrida desde 2003, com o início da série dos governos democráticos e progressistas. Acabou desde então a era em que prevaleciam os rituais de obediência incondicional, da diplomacia descalça (em 2002, em visita oficial aos EUA, Celso Lafer, chanceler do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, humilhou a soberania nacional ao submeter-se à revista nos aeroportos de Washington e de Nova York, aceitando a imposição de tirar os sapatos). Esses rituais ficaram para trás, perdidos na vergonhosa subserviência aceita pelos governos de antes.

A diplomacia brasileira, hoje, é a diplomacia de uma nação soberana, que quer respeito à sua autonomia e independência.

Os episódios envolvidos na decisão de Dilma Rousseff têm imenso significado político. Informações divulgadas pelo ex-agente da CIA Edward Snowden revelaram que a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês) espionou telefonemas da própria presidenta brasileira, de ministros e autoridades, e de empresas como a Petrobras.

Dilma Rousseff reagiu à altura da gravidade do acontecimento e enfatizou os aspectos inaceitáveis dessa bisbilhotagem. Denunciou a violação da soberania nacional, agravada pela espionagem contra a própria presidenta. Outro aspecto é de natureza “econômica”, como na escuta ilegal das comunicações na Petrobras, envolvendo, pode-se supor, o interesse sobre o pré-sal e as políticas da empresa a respeito dessa riqueza gigantesca. Outro, ainda, diz respeito aos direitos humanos e à proteção do sigilo da correspondência, uma conquista democrática cuja idade já alcança alguns séculos.

A ação grotesca, inconveniente e criminosa dos arapongas estadunidenses não podia ser aceita, ou disfarçada, nem mesmo com o pretexto usado pelo governo dos EUA, de combate ao terrorismo.

Qualquer ação estatal, comercial, policial ou de defesa, só pode ocorrer de comum acordo entre duas nações independentes, nunca às ocultas, como gatunos que agem na noite.

A nota do governo brasileiro pode ser entendida como um “puxão de orelhas” quando afirma, com razão, “a importância e a diversidade do relacionamento bilateral, fundado no respeito e na confiança mútua”. Mas vai além, e considera “incompatível com a convivência democrática entre países amigos” o uso de práticas “ilegais de interceptação das comunicações e dados de cidadãos, empresas e membros do governo brasileiro”, claramente classificadas como “fato grave, atentatório à soberania nacional e aos direitos individuais”.

A nota não podia ser mais clara. E continua, no mesmo tom: “na ausência de tempestiva apuração do ocorrido, com as correspondentes explicações e o compromisso de cessar as atividades de interceptação”, e não tendo sido alcançada uma “solução satisfatória para o Brasil”, deixam de existir as condições para a visita da presidenta Dilma Rousseff.

Os argumentos da presidenta da República chegam a ser didáticos: o Brasil rejeita qualquer forma de violação de sua soberania nacional. Muitos dirão que se desenha uma crise na relação entre os dois países. É uma forma temerosa e submissa de ver a questão: o que houve foi uma intromissão abusiva e violenta dos serviços secretos dos EUA contra o Brasil. Se há crise, a espionagem foi o fato gerador, e não a reação altiva e soberana do governo brasileiro.