FHC e “o carreirista da traição”

Em sua lamúria recente, quando deplorou a falta de um tribuno de direita do porte de Carlos Lacerda, o ex-presidente tucano Fernando Henrique Cardoso abriu a brecha para uma comparação quase didática entre a situação atual com a crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas há 52 anos, no dia 24 de agosto de 1954.



O comentário do ex-presidente e expoente da moderna direita brasileira só pode ser compreendido no contexto das dificuldades enfrentadas pela campanha de Geraldo Alckmin, que não decola e acumula deserções por todos os lados. Diz-se mesmo que há um prazo fatal fixado pela cúpula tucana, a primeira semana de setembro. Se, até lá, Alckmin não alcançar pelo menos 30% das intenções de voto, assegura a colunista Dora Kramer (O Estado de S. Paulo, 24 de agosto de 2006), o PSDB vai “cuidar da vida”.



É significativo que Fernando Henrique Cardoso tenha invocado a memória de Carlos Lacerda, um político que -como o ex-presidente – começou sua carreira pela esquerda: ele  foi da Aliança Libertadora Nacional, em 1935, e depois da Juventude Comunista Brasileira.Lacerda recebeu o apelido de “carreirista da traição” por sua falta de escrúpulos na luta pelo poder. Cognome que tinha fundamento: ao ser preso na Bahia, em 1937, Lacerda livrou-se depois de entregar à polícia tudo o que sabia, além da lista com os nomes e endereços de seus companheiros da Juventude Comunista.



Lacerda passou para a história como um orador histriônico, capaz de mobilizar multidões – e, nessa qualidade, foi o principal instigador da crise que, em 1954, levou ao suicídio de Getúlio Vargas.



Mas engana-se Fernando Henrique Cardoso e todos aqueles que supõem que Lacerda tenha empolgado as multidões trabalhadoras – seu público foi a classe média das grandes cidades, como  Rio de Janeiro e São Paulo, extremamente sensíveis ao discurso moralista, mesmo que baseado em calúnias e invenções. O povo ficou à margem daquela pregação direitista, e demonstrou isso quando, após o suicídio de Vargas, depredou jornais conservadores envolvidos na campanha contra o presidente e atacou a sede de empresas estrangeiras, no Rio de Janeiro e em outras cidades. E a enorme multidão que compareceu ao funeral de Vargas, consagrando sua entrada na história como um dos destacados presidentes que o país já teve, foi outra demonstração de que a massa trabalhadora fora impermeável àquela campanha derrisória da direita.



Na pregação feita por Lacerda destacavam-se as arengas moralistas e o claro chamamento para saídas institucionais fora da lei, para o golpe de Estado. Ele foi o autor da frase que dizia, na campanha eleitoral de 1950, que Getúlio não devia ser candidato; candidato, não podia ser eleito; eleito, não podia tomar posse.



O país era outro, as conquistas democráticas ainda eram frágeis e a capacidade da direita  atentar contra a democracia ainda era grande. A direita e seus porta-vozes tinham ambiente para pregar claramente seus propósitos – entre eles o de que os brasileiros não estavam preparados para votar. Um corifeu da UDN, o grande partido da oligarquia financeira daquela época, o jornalista Afonso Henriques, chegou a defender a adoção do voto de qualidade segundo o qual o voto do eleitor meramente alfabetizado valeria um; se tivesse curso primário completo, valeria dois, até chegar aos que tivessem diploma universitário, quando valeria quatro.



Hoje o país superou estas fantasias conservadoras, e já não existe clima para elas. O país evoluiu, a consciência do povo avançou, há um anseio pela consolidação da democracia e da soberania, e tudo isso cria um ambiente onde não existe espaço para a pregação aberta de saídas institucionais fora da lei ou da criação de desigualdades entre os brasileiros.



É por isso que FHC busca um novo Lacerda, sem ousar confessar para quê. E mesmo aqueles que querem preservar o poder da elite já não podem exprimi-lo com a clareza de um Afonso Henriques. Por exemplo: recentemente, Octávio Frias Filho, dono da Folha de S. Paulo, escreveu um artigo onde defendeu, de maneira envergonhada, a mesma tese de que o povo é incapaz para fazer escolhas políticas acertadas. Se Lula for reeleito, escreveu, a qualidade democrática desta eleição estará prejudicada por que isso significará que a “mais alta corte do país”, o eleitorado, terá anistiado o presidente das culpas que a direita atribuiu a ele desde o início da crise, em maio de 2005. O subtexto é claro: a eleição só será democrática se Lula for derrotado! A direita brasileira não perde a empáfia nem abandona aquelas teses que, já há meio século atrás, atentavam contra a democracia brasileira.



Falta pouco mais de um mês  para a eleição de 1o de outubro, e o sonho da direita – de sangrar Lula até a exaustão, levando-o à derrota eleitoral – não se concretiza. Ao contrário, tudo indica que ele será reeleito e, agora, com um compromisso mais claro e definido com a busca do desenvolvimento e de mais justiça social.



Este mês que antecede a eleição será decisivo e exige todo esforço dos progressistas, democratas e patriotas para derrotar a direita e assegurar o caminho para superar as tramas elitistas e levar o país ao rumo do crescimento e da conciliação entre as instituições e o povo. A direita vai espernear, como sempre fez. Mas isso vai acontecer em um ambiente diferente de 1954 ou de 1964, onde a pregação infame de oradores como Carlos Lacerda conseguia repercussão na classe média capaz de dar um verniz de legitimidade para ações golpistas.



Hoje, com um Lacerda ou sem ele – e, é preciso registrar, as CPIs e o histrionismo da imprensa conservadora nos últimos meses indicou a existência de vários candidatos à sucessão daquele cacique direitista, sem chegar a seus pés – o povo brasileiro avança, a democracia se consolida, a soberania nacional se eleva e a retomada do crescimento, da distribuição de renda brilham no horizonte.