O Anjo – Estranhos prazeres

Em drama sobre a compulsão e a psicopatia do sentenciado Carlos Robledo Puch, cineasta argentino Luis Ortega matiza o crime na alta classe média

Não cabe neste drama biográfico “O Anjo” apenas a configuração social do argentino Carlos Robledo Puch, condenado à prisão perpétua por 11 assassinatos e 42 roubos em sua juventude. Não por ele ser de alta classe média, morador de apartamento de luxo e aluno de escola de alto nível, tampouco por ser belo, loiro e caucasiano. O cineasta Luis Ortega e seus coroteiristas Rodolfo Palácios e Sergio Olguina usam estes dados para, a partir das benesses de sua classe no sistema capitalista, explicitar sua frieza, compulsão e psicopatia com que praticou seguidos crimes.

Para ele o outro, ou seja, a vítima, era apenas o obstáculo a destruir para alcançar seus objetivos. Não que as joias, as armas e as obras de arte ou o dinheiro fossem lhe fazer falta. Era tão só o modo de ele sustentar seus desejos e obter prazer ao humilhá-lo. O sadismo e a violência com que a atacava tendia a reforçar sua compulsão pelo perigo. Na sequência em que ataca e submete o idoso aos seus caprichos, ele, além de levar as caras pinturas, apoderou-se do fuzil dele. E, ao contrário do que o espectador espera, ele não foge logo, prefere continuar a correr risco.

Ortega constrói esta sequência em arco. Começa no luxuoso apartamento do burguês e termina numa tranquila rua, onde ele caminha tranquilo em direção à sua escola. É como se nada tivesse ocorrido. Brinca e ri com seus colegas de classe, sem qualquer temor de ser alcançado pela polícia. É uma eficiente construção dramática de Ortega a atestar o alheamento e a certeza da impunidade por parte de Puch. Esta configuração se estende ao retorno dele ao seu apartamento, onde toca piano e conversa com o pai Hector (Daniel Farago) e a mãe Ana Maria (Mercedes Morán).

Puch vai da doçura à irracionalidade

Não fosse uma reconstituição biográfica, o espectador iria entender o mesmo que seu congênere daquela época no Brasil. A lei, a polícia e os tribunais jamais alcançam os ricos. À burguesia se permite tudo, ainda mais se inexiste testemunha. Tudo pode ser entendido como um lapso da juventude a ser corrigido adiante com uma viagem à Europa ou aos EUA. Nem Hector ou Ana Maria, em princípio, nada sabe sobre as perigosas

estripulias do filho. Afinal, ele não passa de um garoto de 17 anos ao qual nada falta, muito menos dinheiro para bancar seus divertimentos.

A adaptação de Ortega e seus coroteiristas Palácios e Olguina, no entanto, é mais complexa. As ações de Puch não são insoladas ou mesmo de ocasião, elas se tornam compulsivas, tal sua capacidade de desafiar o status quo e invadir a mansão alheia. O espectador tem, deste modo, a exposição do que é usar a violência para alcançar seus fins. Sua amizade com Ramón Peralta (Chino Darin, 14/01/1989), de 20 anos, irá acelerar ainda mais suas ações e mostrar seus proibitivos prazeres. Cada deles irá contribuir para elas se tornarem perigosas e nem por isso menos desafiadoras para os dois.

Não menos desafiador é a construção de um personagem tão nuançado quanto Puch para o jovem ator Lorenzo Ferro (09/11/1998). Ortega e seus coroteiristas o dotam de tal complexidade que ele vai da doçura à frieza e daí à irracionalidade de um psicopata. E além disso é dado à espirituosas tiradas tais como: “O mundo é dos ladrões e dos artistas”. É seu modo de dizer que ambos interpretam e se deixam levar pela encenação. Porém suas ações não têm o mesmo impacto criativo e de formação do inconsciente coletivo do que os reais encantadores do palco.

Puch diz ser o  “espião de deus”

O mesmo ocorre quando apregoa ser “espião de Deus”. Daí sua compulsão não só para roubar, humilhar e eliminar suas vítimas, como numa Missão Divina, sendo ele o único com poderes para tal pregação. Eram os anos da ditadura militar argentina (1966/1973), quando Carlos Robledo Puch (1954), aos 17 anos, em 1971, traçou sua participação como o maior matador em série da Argentina. E neste “Anjo”, sua primeira cinebiografia, ele oscila entre um roubo e frio assassinato e outro e relaxa ao piano na sala de seu apartamento. Nem mesmo sua parceria com Ramón não o impedia de desfrutar esses eruditos instantes musicais.

O estimulante neste “O Anjo” é Ortega não restringir sua narrativa as desafiadoras ações de Puch. O que tornaria o filme linear e o personagem principal cansativo. Percebe-se as pesquisas e as entrevistas com o próprio Puch para fugir a esta armadilha dramática. Embora jovem, ele é um ser multifacetado, devido ao rico universo frequentado por ele. E as brincadeiras com Ramón e as conversa com os pais mostram-no capaz de arquitetar seus planos e não seguir as orientações deles ou se submeter aos caprichos do amigo de escola. Para ele tratava-se de um principiante.

Numa subtrama a ligar as ações dos dois jovens, Ortega surpreende o espectador ao reforçar o tema central do filme de forma inusitada. Não é só a compulsão pelo crime e a psicopatia que estimula o prazer de eliminar suas vítimas, mas também o obter ganhos financeiros através destas ações. Não são mais os atos de dois jovens, mas o de uma inusitada organização da qual eles são os dois principais pilares. E deste modo Ortega amplia a visão da plateia sobre uma família disfuncional, organizada não para educar o filho, mas para valer-se dele para ampliar sua riqueza sem qualquer punição. E assim foge à visão conservadora tão em voga no Brasil extremista, mas destituída da racionalidade com que a burguesia conduz seus negócios. E por aí corre a sonegação e o envio para o exterior.

Ramón é menos  ativo nas ações

O trio Ortega, Palácios, Olguina constrói criativos fios dramáticos como o da sequência em que a bela e madura atriz argentina Mercedes Morán (“Um Amor Inesperado”), transforma sua personagem numa Ana Maria sedutora. Tem-se a sensação de que ela tem furtivas intenções às quais Ramón não reage. É o instante de variação do tema central, que reforça as necessárias dualidades do drama. Principalmente quando Puch e Román se mostram mais que amigos, fazendo a narrativa ganhar outro significado. Ainda mais quando Fernando (Peter Lanzani), atravessador de arte roubada, tenta se unir à jovem dupla e o velado erotismo gay se impõe.

Como bom construtor de personagens, situações e encenação, Ortega escapa aos lugares comuns e explícitos. Puch e Ramón variam seus instantes de desejo com suas jovens namoradas numa viagem. São sequências que ajudam a compreender as opções deles e a forma como a relação muda à medida que eles consolidam sua parceria. Ramón, o menos ativo nas ações, quer entrar na vida artística e seu parceiro não o desestimula. Vêm-se que sua vida foi mais variada do que a de Puch. Aos poucos eles sentem a intromissão de Fernando em seu universo de crime.

Mesmo em se tratando de drama biográfico de assassino em série, Ortega e seu diretor de fotografia Julián Apezteguia não o dotam de zonas sombrias, típicas dos filmes policiais noir. E muito menos de cenas cruas e violentas fora do contexto do tema central. Inexiste, inclusive, a predominância do claro-escuro. E a narrativa flui em amplos espaços, onde as cores matizam os estados psicológicos, não as sombras. Ainda que os crimes sejam bárbaros e Puch se delicie com joias roubadas, como troféu pela espoliação dos mais ricos do que sua família. Ser o famoso “Anjo da Morte” não o beneficia. Ser visível logo o transforma num alvo mais fácil.

Ortega não quer mitificar Puch

Por outro lado, Ortega não quis mitificá-lo, mesmo porque seus crimes foram urdidos em plena ditadura militar (1966/1973). Nestes sete anos, segundo o Movimento Mães da Praça de Maio, que lutava e ainda o faz pela identificação de seus filhos, foram executados 8.961 militantes dos grupos de resistência aos ditadores de plantão. Este comportamento ditatorial se vê na sequência em que Puch e Ramón se esforçam para escapar da delegacia para a qual foram levados. E a própria polícia não sabia como tratá-los. Um oficial, ao estar diante do jovem e angelical loiro a fitá-lo de forma inquisidora, afirma ver nele tão só “um desvio sexual”.

O mais intrigante neste “O Anjo” é o desfecho encadeado por Ortega. Tal era a fama de Puch como o “Anjo da Morte” que as sequências de sua fuga e a perseguição empreendida por dezenas de policiais armados remetem à violência orquestrada por Sam Peckinpah (1925/1984) em sua obra-prima no gênero faroeste “Meu Ódio Será sua Herança ”(1969). A força policial é descomunal para alguém tão frágil. Mas devido à sua fama de psicopata é montada não uma operação de captura, mas um espetáculo para a mídia. Assim as massas argentinas puderam elevar sua audiência.

“O Anjo” (El Angel). Drama policial-biográfico. Argentina, Espanha. 119 minutos. Edição: Guille Gatti. Fotografia: Julián Apezteguia. Roteiro: Luis Ortega, Rodolfo Palácios, Sergio Olguina. Direção: Luis Ortega. Elenco: Lorenzo Ferro, Chino Darin, Daniel Tarego, Mercedes Morán, Cecília Roth, Peter Lanzani. (*) Representante argentino no Oscar 2019.

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