Um kafka cortado para o ministro

Das notícias de hoje:

“A livraria Leonardo da Vinci, do Rio de Janeiro, viralizou na internet com a foto de uma carta e um livro cortado, endereçados ao ministro Abraham Weintraub. A imagem exibe uma edição cortada do clássico “A Metamorfose”, de Franz Kafka, a quem o ministro se referiu como “Kafta”, confundindo o nome do escritor com um tradicional prato da cozinha árabe.

O livro aparece sem uma parte, em uma alusão aos cortes das verbas nas universidades federais. ‘Pedimos desculpas pelo corte de 25% no livro, mas a situação das livrarias brasileiras está difícil’”.

Então eu fiquei a imaginar como seriam os cortes em A Metamorfose para o senhor da educação de Bolsonaro. E foram surgindo estes:

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraçae, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos. – O que aconteceu comigo? – pensou”.

Corta!

“- Que tal se eu conti¬nu¬as¬se¬ dormin¬do¬ mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? – pensou”

Corta!

“- Ele não está bem – disse a mãe ao gerente quando o pai ainda falava junto à porta. – Ele não está bem, acredite em mim, senhor gerente. Senão como Gregor perderia um trem?”

Corta!

“- Você precisa ir imediatamente ao médico. Gregor está doente. Vá correndo ao médico. Você ouviu Gregor falar, agora?

– Era uma voz de animal¬ – disse¬ o geren¬te,¬ em voz sensivelmente mais baixa, comparada com os gri¬tos da mãe”

Corta!

“Não quero pronunciar o nome do meu irmão perto desse monstro. Por isso digo apenas o seguinte: precisamos nos livrar dele”.

Corta!

“Nesse momento, alguma coisa passou voando perto dele. Era uma maçã. A segunda passou voando logo em seguida por ele. Gregor ficou paralisado de susto. Continuar correndo era inútil, porque o pai tinha decidido bombardeá-lo”.

Corta!

“- Ele tem de ir embora – gritou a irmã de Gregor. – É a única solução, pai. Tem é de tirar da cabeça a ideia de que aquilo é o Gregor. A causa de todos os nossos problemas é precisamente termos acreditado nisso durante demasiado tempo. Como pode aquilo ser o Gregor?”

Corta!

“- Vejam só como ele estava magro. Há tanto tempo que não comia! Quando se ia buscar à comida, estava exatamente como quando se tinha posto no quarto. – Efetivamente o corpo de Gregor apresentava-se espalmado e seco, agora que se podia ver de perto e sem estar apoiado nas patas”.

Corta!

E corta e corta. O leitor já vê que se alguém corta o começo do livro, que conta o dia em que Gregor se acorda transformado em inseto, já não existe mais livro. E se a esse corte, “contingenciamento”, se acrescentam outros, de tantos cortes A Metamorfose perde completamente o significado.

Pois existem cortes que prejudicam todo o resto. Há mutilações que fazem uma obra perder em absoluto o seu sentido. Mas assim não é também com as universidades? Se cortamos as verbas para pesquisa, cursos de ciências humanas (como se toda ciência não fosse humana), se os estudantes e professores e funcionários deixam de usar o banheiro, durante as aulas ninguém urina ou defeca! Se não há mais vigilantes contra o roubo, se a luz foi cortada, se não tem nem mais água, a pergunta é com toda educação:

Que porra é essa que Bolsonaro chama de universidade?

Para esse sinistro da educação, arrancar 25 ou 100 por cento não faz qualquer diferença. Assim como fez, verbo e substantivo, nos cortes das universidades. Kafka, kafta, educação para ele tanto faz. Mas o Brasil já acordou contra esse Ministro Fez, o substantivo singular que virou adjetivo.

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