“Vidas Duplas”: Tudo ficará para trás

Em filme em que mescla paixões furtivas, mudanças nos costumes e na tecnologia, cineasta francês Olivier Assayas opõe a linguagem escrita à digital

De repente pode parecer um vendaval passageiro e logo tudo voltará ao normal. Afinal, as velhas estruturas científicas e tecnológicas ainda não ruíram. E a eterna convivência do passado com o presente nos impede de ter a exata percepção do que o presente, não o futuro, nos reserva. Com esta visão, o cineasta francês Olivier Assayas (25/02/1955) constrói neste seu “Vidas Duplas” múltiplas subtramas para discutir as radicais mudanças provocadas pelas mídias digitais nos costumes de todo o Planeta. Nenhuma classe social escapa às sedutoras novidades, como o celular e a internet.

O espectador se vê, desde o início, preso à discussão que opõe as estruturas de comunicação impressa às digitais. Assayas não se prende às dualidades mercadológicas. O que lhe interessa são as novas invenções e a forma como elas permitem seus usuários criarem novas linguagens. E deste modo soterrar as estruturas de comunicação brotadas da invenção da prensa e dos tipos móveis (as letras) pelo impressor alemão Johannes Guttemberg (1396/1468) em 1439. E aperfeiçoados até surgir o computador pessoal na década 80. Hoje milhões de pessoas o utilizam.
Assayas põe as editoras de livros no centro de sua narrativa, a partir das preocupações do empresário Alain (Guillaume Canet), dono de uma grande editora em Paris. Em suas conversas sobre o novo livro do escritor Leonard Spingel (Vincent Macaine), os dois expõem seus temores sobre a ameaça que o livro digital, o ebook, representa para os dois. Este dilema chega aos debates promovidos com potenciais leitores em universidades. A obra impressa cede, aos poucos, seu espaço à digital, segundo os jovens. Eles não acham que ela prejudique o escritor e o editor.

É mais prática.

Livro representa o corte de milhares de árvores

São duas visões opostas sobre o avanço da tecnologia e, em princípio, pontuam a convivência do novo e do ainda em curso. O livro, para os ecologistas, embora simbolize a cultura, representa a ocupação de milhares de hectares de terras por árvores nativas, como a araucária, ou exóticas iguais ao eucalipto e os pinos. O resultado é o corte de milhares delas para abastecer a indústria de celulose e papel. Num ciclo que resulta na impressão do livro, jornais e revistas, as mídias publicitárias (cartazes, outdoor, folhetos, etc.) e a produção de embalagens. É uma poderosa indústria ainda ativa, que contribui para a corrosão do meio ambiente.

Quanto ao livro-digital, o e-book, se restringe à gravação de romance, novela, contos, obras didáticas, num disco, como o DVD. E tem o mesmo processo de mudar página por meio de aplicativos. Pode ter tela sensível ao toque e ser lido inclusive no tablete em qualquer lugar. Enquanto o livro de papel pode deixar de ser uma das causas da devastação florestal. Contudo seu legado é a elevação cultural e a sensação de expandir seu universo com novos conhecimentos. Devagar o e-book poderá se tornar exemplo de mutação tecnológica ao manter a curiosidade e a concentração da primeira à última frase a unir diversão, elevação psicológica e reflexão.

Assayas não entra nestes detalhes, nem faz contraposições, deixa o editor Alain avaliar as potencialidades mercadológicas do e-book com sua jovem gerente Laure (Chista Theret). Ele ainda não encontrou justificativas para mudar sua política editorial. Sua conversa com o também editor Marc Antoine (Pascal Gregory), com experiência em livro digital, leva-o a manter sua posição. A novidade, por mais atraente que seja, carece ainda de ser atraente para o leitor, cuja ânsia para ler é medida pelo que dispõe no bolso. Este ainda é o problema do e-book. Custa caro e há poucos títulos.

Alain representa o poder e o capital

Não é fácil discutir temas tão complexos através de imagens, diálogos, interpretações e cenários sem ser enfadonho ou didático. Assayas não cai nestas armadilhas, prefere centrar as discussões em dois personagens centrais: Alain, representa o poder e o capital, enquanto Leonard é o escritor a depender dele para continuar a publicar seus romances. São eles os canalizadores das discussões, sobre os quais recai a força da narrativa. O primeiro é centrado, o segundo é discursivo. Não se dispersam ou elevam a voz nos debates com os universitários, público alvo do livro de Leonard em lançamento e noites de autógrafos.

É quando Assayas envolve o espectador numa teia dramática cujas pontas ele mesmo terá de amarrar. Não se trata de uma história linear, mas o entra e sai de uma subtrama e o repete na outra. E exige dele mais do que atenção e reflexão para não se perder na variedade de temas. E todos remetem ao seu cotidiano sem que se dê conta de quanto mudam sua vida. No centro, estão Alain e Leonard como se fossem coordenadores do encontro com os universitários. De novo é com eles que irão debater a mais radical mutação dos costumes e linguagens dos habitantes do Planeta.

Como um dos principais catalizadores das atenções está o computador, surgido da ação conjunta de professores/pesquisadores universitários e militares estadunidenses concentrados na produção de equipamentos de alta tecnologia para fins bélicos. Alain e Leonard se vêm, de repente, envolvidos num debate sobre o computador e a internet. Um não se descola do outro. E o jovem estudante os desafiam a contestar a crise e o ocaso da mídia impressa. Ele destaca a capacidade dos blogs e sites em veicular informações rápidas e bem apuradas para manter o leitor bem informado. Principalmente sem defender os interesses do status quo.

Crítico literário não influência leitores

Segundo ele “o crítico literário da mídia impressa já não atrai ou exerce poder sobre os leitores. Os blogs e os sites são mais rápidos e eficientes do que ele para formar opinião”. Não só eles como também os produtores de fake News, com suas fofocas transformadas em “notícias”. Ninguém sabe quem são suas fontes e seus interesses. E se estão a cargo de algum esperto membro do poder conservador ou empresário interessado em ampliar suas fatias no mercado. Pela opinião do universitário a mídia não exerce mais o poder de antes. Perdeu seu espaço.

Talvez para não estender seu tema central, Assayas não tenha aprofundado a discussão sobre a capacidade de a ciência e a tecnologia mudarem os costumes e a visão dos habitantes do Planeta. Não é demais mencionar que o celular se tornou com a internet os propulsores das mudanças da linguagem, dos costumes e do poder de difundir informações por meio mensagens instantâneas. Do banco virtual, via computador, a foto da criança recém-nascida, da festa de formatura ao acidente que acabou de ocorrer. E principalmente o fim das cartas e dos telegramas.

Não bastasse a linguagem cifrada usada pelos internautas e agora por seus compartilhadores nos multiplicados grupos familiares, estudantis, trabalhadores da mesma empresa, etc. E, por que não, as indefectíveis redes sociais, tão ao gosto da extrema direita no poder. Ou seja, os difusores de fake news deixaram de ser amadores para se profissionalizarem vinculados a certas correntes políticas inclassificáveis. É disto que trata Assayas sem o mencionar, pois seu roteiro é de um drama, não um documentário sobre as mutações nas linguagens e costumes.

Assayas mergulha espectador numa revolução sem retorno

Mesmo não tendo encenado tais radicalizações, Assayas dotou sua narrativa de fogo bastante para o espectador entender o quanto foi mergulhado numa revolução tecnológica sem retorno. Entrelaçou várias subtramas ao tema principal que a tornou ágil e leve a um só tempo. Dentre elas as furtivas relações de sua companheira Selena (Juliette Binoche) com quem ele sabe, mas não interfere, pois têm um filho já crescido. E também a companheira de Leonard, Valérie (Nora Hamzawi) dá seus toques, ao ver traços da amiga nos romances dele. De fato, ele não disfarça ou é sutil.

Nestas construções dramáticas e amorosas, Assayas se permite criar personagens cuja ética e moral não desandam em ciúme ou, pior, em morte. Ninguém ao redor de Alain é dado a inúteis radicalismos. São mais conciliadores, como o próprio Leonard. Nem Lauren revela suas reais intenções a ninguém da editora. Sai à francesa, de leve, por acreditar na almejada revolução e-book. Esta é a terceira subtrama da narrativa entrelaçada nos demais fios dramáticos. Assayas tem o cuidado de não os deixar fluir sem estarem sustentados pelo tema central do filme.

De modo a completá-lo, Assayas inclui a quarta e expositiva subtrama para desvendar o traço político deste seu “Vidas Duplas”. O que realça não só Valérie como importante personagem como permite a Nora Hamzawi se destacar. É uma sequência de grande diretor e ótimos interpretes. Como assessora de marketing do deputado David (Nicolas Bouchaud), a morena Valérie atende a contragosto à sua urgente chamada. O homem que encontra no carro está em pânico. E ao revelar-lhe o que aconteceu parece um garoto em sua primeira derrocada noturna.

David não teme perder confiança dos eleitores

O diálogo construído por Assayas tende a torná-lo destituído de qualquer dignidade. Valérie o recrimina por não atender suas orientações, sob o risco de desandar num escândalo. E ele lhe responde que seus eleitores não atentarão para o que lhe aconteceu, pois atendeu a todas às suas reivindicações e terminarão por acreditar nele. A reposta dela é digna de figurar entre as melhores dentre as obras-primas do cinema. “Nenhum deles acredita no que acabou de me dizer. Eles acham que o elegeram para se enriquecer e se valer das oportunidades que surgem (citação não literal). Mais atual do que estes diálogos, impossível. Parece tudo igual.

Enquanto os jovens apregoam terem se libertado do controle da mídia burguesa, ficando livres para produzir suas próprias ideias e visões de mundo, seus representantes burgueses perpetuam o saque. E com isto, se distanciam de seus representados, abrindo caminho para avançadas construções de outro tipo de sociedade, onde os Davis ficarão nas trevas. Com este “Vidas Duplas”, Assayas traz ao debate mais do que novas mídias e a crise da mídia burguesa, mostra porque a tecnologia brotada dos monopólios tanto pode servir à liberdade como agir contra ela.

Ao invés de tornar a atmosfera de sua narrativa opressiva, Assayas e seu diretor de fotografia Yorick Le Saux optaram por manter a iluminação suave. Mais claro do que escuro. Os ambientes são coloridos de forma a realçar a leveza. Os personagens não se exaltam, os choques entre eles inexistem. Há certa harmonização entre os dois casais, como se vê no desfecho. Trata-se mais de contenção e interiorização dos sentimentos e busca da convivência pacífica. Ninguém se diz traído, nem expõe seus ressentimentos. As armadilhas estão lá fora, não é preciso interiorizá-las.

Vidas Duplas (Doubles Vies). Drama. França. 2018. 108 minutos. Montagem: Simon Jacquet. Fotografia: Yorick Le Saux. Roteiro/ direção: Olivier Assayas. Elenco: Guillaume Canet, Juliette Binoche, Nora Hamzawi, Vincent Macaine, Chista Theret, Nicolas Bouchaud.

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