“Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”

Quando os vivos libertam os falecidos

Em rito de passagem de jovem índio Krahô, cineastas João Salaviza e Renêe Nader Messora discutem os mitos e a crença de tribo brasileira

Não se trata só de tradição, mas também do ritual dos índios Krahô de Tocantis para liberar o espírito do morto. Enquanto este não é realizado, ele fica preso às águas do rio e, portanto, à aldeia. Com esta construção dramática a oscilar entre a realidade e a ficção, o duo de cineastas, o português, João Salaviza, e a brasileira, Renée Nader Messora, mesclam crença e realismo ao encantatório neste belo ”Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”. E com tal economia de meios que o leva a fluir com naturalidade. Nada foge aos costumes, à língua e à simplicidade dos Krahô, que nele atuam como experientes atores de cinema.

Toda a narrativa se prende desde o início numa frase do falecido pajé, pai do jovem Henrique Ihjãc Krahô: “Vocês esqueceram de minha festa”. Não bastasse esta cobrança, ele se materializa no fogo a flutuar nas águas do rio, em que seu filho se banha. Salaviza e Messora fundem nesta sequência a lenda da Mâe D´água e a crença dos índios krahôs da aldeia Pedra Brança, localizada no município de Ytacajá, no estado de Tocantís. A partir daí o fato detonador da narrativa se impõe, através de uma simples história, pois pelo ritual Krahô o filho sucede ao pai sem qualquer oposição.

Ao contrário dos costumes de outros povos, centrados muitas vezes nas orientações dos mais velhos da família, quem deve decidir se respeitará a tradição ou a subverterá é o próprio Krahô. Em toda a primeira parte do filme, a dupla Salaviza/Messora faz o espectador tomar parte das dúvidas e recusas do jovem. Embora sua companheira Kotô (Raene Kotô Krahô), mãe de seu filho de colo, sua mãe, o avô e o tio insistam, ele não deseja ser pajé. E não lhes explicita a razão. Pode ser devido à pouca idade, ou à falta de conhecimentos para curar as doenças a acometer os Krahôs.

Ihjãc hesita entre a tradição e o ritual

Esta indecisão termina por concentrar a atenção do espectador neste ”Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos”. Tem-se um jovem a hesitar se a tradição de sua família e o ritual dos mortos devem ser preservados por ele. Suas dúvidas e recusas poderiam ser creditadas, em princípio, ao contato com a diversidade de religiões e seitas do universo urbano. Entretanto, sua aldeia está longe demais da cidade de Ytacajá. Ele se vê

mais à solta com Kotô e o filho em longas caminhadas pela floresta, nadando no rio e consertando o telhado e as estruturas de sua maloca para se precaver das chuvas já a caminho. E não reflete sobre o ritual Krahô.

Há neste seu comportamento muito dos jovens e noviços a descobrir sua falta de crença e de interesse pela religião. Ihjãc, contudo, se sente incomodado, seus sonhos são outros. Neles a dupla Salaviza/Messora concentra segunda parte do filme. E desta forma, irá discutir a religião e a subversão da crença. Mostra Ihjãc incomodado, parecendo estar passando por uma crise existencial ou talvez esteja mesmo doente. Ainda assim, prefere ter outro tipo de experiência. Mesmo ao custo de abandonar Kôtô e o filho de colo. Não é tomado nem pelo etéreo ou a metafísica, só tem urgência de fuga. Assim, dá a impressão de estar em crise existencial.

Desde o início da narrativa, o espectador entende a complexidade do tema desenvolvido pela dupla Salaviza/Messora. Não se trata de contar uma história através de belas imagens de malocas, florestas, rios, danças e rituais krahôs. Nem eles enfrentam grileiros, garimpeiros e madeireiros. Os submersos conflitos de Ihjãc beiram a fuga. Nem reflete sobre a falta de um curandeiro na tribo. O que demonstra ser negação do ritual e da crença dos índios Krahôs. Nenhum deles nega-os ou se opõem à sua continuidade através de um jovem ainda inexperiente como ele.

Crise e refúgio de Yhjãc na cidade é calvário

Esta aparente negação, causa perplexidade neste momento de fusão de ideologia, fundamentalismo e extremismo de direita em busca do Santo Graal e da Terra Prometida. Ihjãc tanto foge ao padrão dos que negam o poder da religião quanto daqueles a ela apegados como panaceia para frear o desmonte de seu universo conservador. Isto numa época de transição em que a ciência e a tecnologia apontam novos padrões de vida e costumes. E a prolongada crise do capitalismo neoliberal escancara a crise de seu modelo de sociedade e não mais atende a contento suas populações maduras, jovens e o crescente número de idosos neste terceiro milênio.

Tudo isto leva-os a pensar que a salvação está no retorno à Idade Média. Ou que na corrida contra o tempo, os pastiches de Trump possam urdir a implantação do híperliberalismo, com direito de os capitalistas explorarem trabalhadores através da retirada de direitos, do programado desemprego e, além disso, anular sua representação sindical. Suas lideranças estão, na verdade, assustadas com o avanço do modelo chinês de país socialista e a mudança do centro político-econômico para a Ásia.

Não é esta, claro, a preocupação de Ihjãc. O duo Salaviza/Messora monta uma engenhosa trama, onde ele é o doente em busca da cura no meio urbano. E age como se realmente estivesse precisando de ser internado. É o chamado doente imaginário. E a previsível tensão de quem é dotado de poder de cura sem o saber. A ansiedade, o temor de suceder o pai o transforma num retirante em Ytacajá. Isto se percebe num diálogo dele com a médica do posto de saúde onde foi tratado. Ela lhe diz que ele está bem e lhe dá alta, mas sua insistência é para continuar internado.

Além disso, o espectador percebe em suas atitudes as do “Escolhido!”, que faz retiro no deserto onde se prepara para o que lhe espera. É uma boa construção do duo Salaviza/Messora a unir religião e crença, ainda mais para o ritual de pajé. Chega, inclusive, ao calvário, quando Ihjãc não pode mais ficar recolhido no abrigo da FUNAI. Resta-lhe percorrer a cidade em meio ao trânsito a pé, dormir na calçada molhada e a fome apertar. Ainda assim, este Chuva e Cantoria na Aldeia dos Mortos” não é um filme religioso, como muitos poderão vê-lo. É um bom drama sobre um povo milenar entregue a si mesmo e à perseguição contínua.

Filme tem força dramática e visual

O duo Salaviza e Messora levou nove meses para rodar com uma câmera de 16 milímetros os 114 minutos de seu filme. E como bons diretores-roteiristas encontraram boa construção para o desfecho. O espectador ao prender-se ao fio narrativo de Ihjãc ser ou não pajé perderá o centro real da discussão levantada pelos dois. O que importa a Ihjãc e também a eles é atender ao reclamo de seu pai. Este é o fato detonador da ação e, ao mesmo tempo, das hesitações do personagem-principal. As sequências de toda a aldeia presente é de uma força dramática e visual impressionante. Não só devido aos cenários, mas como foram fotografados.

Desde o início da narrativa na mística sequência do rio, quando Ihjãc deparara-se com o fogo a simbolizar o pai, Messora, como diretora de fotografia, estabelece o clima ditado pelo sagrado. Não no sentido cristão de os mortos descansarem em paz, mas de quem parte dar conta do mistério ao se comunicar por símbolos com os vivos. Ela usa não o verde, mas o azul a destacar o fogo. E não se limita a isto. Mesmo nas belas e bem construídas sequências em Ytacajá, ela deixa o claro-escuro ditar o estado psicológico de Ihjãc. Deste modo, quando ele perambula pelas ruas à noite, os contrastes ajudam o espectador a refletir sobre seus impasses.

Mesmo nas belas sequências finais do ritual configurado pela festa de liberação do falecido pajé, o espectador se prende ao ritual. Não só ao impacto das imagens da cobertura de mandioca cozida nas folhas de banana, mas, principalmente pela forma como Renée fecha o foco para mostrar toda tribo a se mover. É a metáfora da libertação do espírito, agora entregue ao etéreo. Bela opção de Ihjãc a reafirmar sua posição pelo que só a ele cabia. Salaviza e Messora encontram a forma de liberá-lo do que se opunha, Sua opção é ditada pela crença, não imposta por interesses de outros. Cada um segue o que lhe dita o subconsciente e, por que não, a busca da eternidade, ainda que imprecisa e não factível.

Espectador, extasiado, não deixa logo o cinema em BH

Devido não só à fotografia, mas à força da história e a eficiente direção do duo Salaviza e Messora, ao subirem os letreiros finais, na tarde de segunda-feira, 23/04, no Belas Artes de BH, muitos espectadores se mantiveram sentados devido ao emblemático desfecho. Não é todo dia que fatos como estes ocorrem. Nem tudo se esclarece, fica no ar, exigindo atenção deles, O primitivismo imputado ao indígena não tem razão de ser. A crença e o luto são indissociáveis de qualquer religião. O pajé é o curandeiro, espécie de médico, a conhecer a fauna e s flora e usar ervas para evitar os males. A medicina indígena passou milênios cuidando dos seus, até a chegada dos colonizadores europeus e suas pestes. Grande filme!

Chuva é cantoria na aldeia dos mortos. Drama. Costumes indígenas. Brasil/Portugal. 2019. 114 minutos. Som direto: Vitor Aratanha. Montagem: João Salaviza, Renée Nader Messora, José Edgar Feldman. Fotografia: Renée Nader Messora. Roteiro/direção: João Salaviza, Renée Nader Messora. Elenco: Henrique Ihjac Krahô. Raene Kôtô Krahô. Prêmios: Festival de Cannes 2018 – Mostra Um Certo Olhar: Prêmio Especial do Júri. Festival do Rio – 2018: Melhor direção/|Melhor Fotografia.

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