O crime do Lula contra a escravidão e as lições a aprender

O "crime" do Lula foi o mesmo de Getúlio, JK, Jango e Dilma: o amor do povo e o amor ao povo. Esse tipo de amor, correspondido, é capaz de parir CLT, Petrobras, Brasília, pré-sal, universidade para os pobres, Minha Casa Minha Vida, salário-mínimo, democracia popular, é capaz até de fazer um banco receber um(a) pobre. É o amor que nos faz ver a grandeza do Brasil em seu povo e faz o Brasil dar certo.

E quando o Brasil dá certo, amigos e amigas, um soturno silêncio se ouve na Casa Branca. Só os ingênuos à exasperação (idiotas e cínicos) menosprezam o peso do imperialismo estadunidense e os tentáculos pútridos que espalham pelo mundo seu toque nefasto, que espalha guerras, golpes e ditaduras, mentiras, desunião. Se quando Bolsonaro visitou a CIA não ficou claro, que fique: foi lá fora que o golpe foi urdido e vivemos sob intervenção estrangeira.

Como trata-se de um "crime" de amor- e Shakespeare o ensinou há muito em Otelo – é preciso tramar, mentir, desunir, espalhar a desconfiança, opor brasileiros e brasileiras até nas famílias. E para isso, há que inventar um Iago, um parasita, um alcagüete, um espírito de porco, cuja voz melíflua e cínica é capaz de sussurrar mentiras entremeadas com verdades – o que torna a mentira mais sedutora, destrutiva das bases da confiança. A intriga, o ciúme, são aqui "as tensões no seio do povo". É sempre necessário dividir o Brasil, mas esse sentimento só perdura porque tem bases bem reais.

Infelizmente, a alma brasileira está cheia de escuridão e rutilância, citando o poeta paraibano Augusto dos Anjos. Como se explica essa nossa deformação cultural e moral que nos faz continuamente desviar o olhar do outro que sofre, de fome, de miséria, de abandono… É ilustrativo que vejamos ao redor de nós a vida se degradar e não consigamos nos envolver e chamar os demais a mudar isso, pelo trabalho solidário, voluntário. Há essa insensibilidade que permite que até os sindicatos – a casa dos trabalhadores – se tornem espaços burocráticos, isolados de todo o contexto social que os cerca. É isso que afasta as nossas universidades das comunidades que as cercam. É isso que permite não construirmos os verdadeiros templos do povo nas escolas, sindicatos, universidades. Como disse Brecht: "Também o ódio à baixeza / Deforma as feições./ Também a ira pela injustiça/ Torna a voz rouca. Ah, e nós / Que queríamos preparar o chão para o amor/ Não pudemos nós mesmos ser amigos.*

Há no Brasil e em cada um de nós casas grandes e senzalas escondidas e expostas – o melhor modo de esconder. E é para isso que existem os capitães do mato, os doutores sabujos, os sacerdotes de Mamon (sejam inquisidores, mercadores do templo ou "teólogos da prosperidade"), os dândis e dondocas, sinhozinhos e sinhás degenerados até à medula, e também suas bestas assassinas, a mando de uma justiça dos senhores contra os escravos.

Os anúncios de outrora sobre os escravos fugidos retratam muito bem que o juiz, a imprensa a soldo e o senhor da casa grande estiveram sempre em sintonia, com as correntes, algemas, chicotes, forca, espada, tortura à espreita. Esses tristes personagens compuseram um Brasil seu, contra os de dentro e a serviço dos de fora. Apropriaram-se do Brasil, moldaram suas instituições e o estado nacional mediante o saque, o roubo, a corrupção, o genocídio de indígenas e negros, o assassinato dirigido contra líderes do povo e, como não poderia faltar, com a absoluta sujeição da mulher, pelo estupro, pela porrada, pelo trato como objeto de quem nos pariu a todos e todas.

Essa camada praticou tais crimes para participar dos banquetes de seus confrades no exterior, aonde estavam escondidos os banqueiros que regiam e regem todo o circo de horrores, a "gente fina", seus parentes, refastelando-se nas orgias da acumulação primitiva do capital, em que o capitalismo exerceu com todas as armas e requintes de crueldade o seu pecado original, submetendo, escravizando, assassinando tantos milhões que até Hitler – seu garoto – coraria. É essa a herança suja de exploração do trabalho escravo, de sangue e suor de nosso povo, indígenas e negras(os) que a Europa nos deixou, e que destrói as fundações da Nação Brasileira.

Mas entre nós também havia José Bonifácio e Castro Alves, que eram capazes de pensar no país a despeito de suas origens privilegiadas. José Bonifácio propusera já em 1825 a "civilização dos índios" e a abolição progressiva da escravidão em termos que ainda hoje soam espantosamente aos nossos ouvidos pós modernos: "Se o antigo despotismo foi insensível a tudo, assim lhe convinha ser por utilidade própria: queria que fôssemos um povo mesclado e heterogêneo, sem nacionalidade, e sem irmandade, para melhor nos escravizar. … é tempo que vamos acabando até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes… cuidemos pois desde já em combinar sabiamente tantos elementos discordes e contrários, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto"**.

Os ouvidos moucos dos senhores e senhoras de escravos, em sua riqueza, poder, e no reconhecimento de seus pares, alhures, preferiram moldar um ouro tipo de Nação e de Estado. A escravidão conspurcou toda a possibilidade de que se visse o estado e a Nação como algo que servisse aos oprimidos. Por isso soou tão estranha a confiança de Lula e do PT na justiça brasileira, a tola ingenuidade de uma Dilma que já passara pelos porões da Ditadura e suas torturas, quando creram quase sem reservas no republicanismo de uma justiça com a sua história senhorial, numa imprensa a soldo e nos especuladores que lucraram no passado até com o tráfico negreiro.

Castro Alves, já fenecido, teve Os Escravos publicado 58 anos após a proposição luminar de José Bonifácio. Seus versos vivos e seus ossos já brancos ainda denunciavam a Escravidão – e o fariam, e o farão. Alertavam sobre sua consequência funesta, presente e futura, a manchar o auriverde pendão de nossa terra:

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!…
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!…
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa… chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!…

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança…
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!…***

Uma nação não pode ser feita de senhores(as) e de escravos(as). Uma Nação é feita de iguais cidadãos e cidadãs, e essa utopia, aqui, é o tipo de amor que fez Getúlio, Jango e JK, Dilma e Lula sentiram pelo Brasil, construindo um outro destino, em que o verde e o amarelo fossem de todos os brasileiros e brasileiras.

É por isso que jamais podia passar impune o crime de Lula, esse amor pelo povo, esse pertencimento ao povo, e a correspondência desse amor expressa na sua condição de candidato líder das pesquisas. É por isso que os deputados(as) e juízes(as) rasgaram o voto popular, "suspendendo" a democracia enquanto preparavam a destruição do Brasil que estamos vendo diante de nós. Havia ordens da metrópole. Era preciso fechar as escolas e universidades, ampliar as prisões, abrir covas, desmontar os frutos gerados pelo povo brasileiro em busca de sua liberdade, de um futuro digno, da utopia que Lula e Darcy Ribeiro partilharam: "o maior número de pessoas comer mais, morar decentemente e educar-se", "alcançar assim os níveis de fartura, de salubridade e de educação viabilizados pela tecnologia moderna".

Então, mais uma vez, a vida de Lula e a do povo brasileiro se misturam numa metáfora cheia de trevas e de luz. Isso não foi uma exclusividade sua; Getúlio, JK, Jango e Dilma também partilharam esse cálice, mas nenhum tão dramaticamente como Lula, pela sua representatividade vívida e vivida. Mas é preciso refletir sobre tantas vicissitudes que ainda nos atam a um passado de escravidão do nosso povo e de submissão a uma metrópole. E o desafio de superar politicamente essa camada sabuja com os de fora e despótica com os de dentro, que vive e goza os privilégios arrancados do trabalho da grande maioria do povo, esse pessoal que não ama o Brasil, simplesmente porque não ama seu povo, seduzida pelas perversões e privilégios de quem vive do trabalho dos outros. A vitória desses torpes está exposta claramente na figura de seus líderes, sua burrice, sua truculência, sua vileza, seu ódio, sua crueldade, porque é disso, e não de virtudes, que se fazem senhores. E a eles se dê o supremo privilégio da desigualdade social: o medo dos escravizados. Podem ter o poder, podem. ter o dinheiro, mas jamais terão paz. Podem negar a existência do racismo, do machismo, da homofobia, mas jamais poderão andar tranquilos nas ruas.

Fazer aos outros aquilo que se deseja que os outros façam a si mesmo(a), eis mais uma consigna que une cristãos e comunistas, que consta na justificativa de José Bonifácio lá em 1825, persiste como o caminho único possível para a paz longa e duradoura que jamais vivemos. Mas a paz e a justiça não vêm da passividade. A experiência histórica traz ensinamentos, talvez o papel de Lula não se esgote na Presidência, mas nas lições que deixa nesses tempos sombrios. E penso nessas antigas lições de Bonifácio e Darcy e penso-as à luz do socialismo, porque com elas corrobora, segundo a nossa experiência brasileira. Só a Nação e o Trabalho podem nos apontar uma saída da distopia odiosa que as elites querem perdure: esse Brasil de casa grande e senzala. Foi isso a Deforma Trabalhista. É isso a Destruição da Previdência. Foram isso os golpes contra Getúlio, Jango e Dilma. E foi para manter a casa grande que se prendeu Lula, que partilhou o sonho de justiça e o gradualismo bonifaciano, e ambos pagaram por isso. Talvez, a nós e ao nosso Lula, tenham faltado aquelas lições de Bonifácio e Darcy Ribeiro: Não podemos vencer sem unir a Nação e "essa situação de atraso só pode ser rompida revolucionariamente"****. Aprenderemos.

Notas:

* Brecht. Aos que Virão Nascer. http://www.fla.matrix.com.br/ticiano/Brecht/aos_que_vao_nascer.htm

** A Hora do Povo: A revolução abolicionista-republicana foi o movimento que constituiu, definitivamente, o povo brasileiro. Nenhum outro foi tão importante para definir a fisionomia da Nação www.horadopovo.com.br/2000a/maio/16-05-00/pag8a.htm

*** Jornal de Poesia. Castro Alves. O Navio Negreiro. http://www.jornaldepoesia.jor.br/calves01.html#.

**** Darcy Ribeiro. As Américas e a Civilização. Prefácio à Primeira Edição e Introdução. Companhia das Letras, 2007.

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