Eu vi o “Cansei” por dentro

Passei parte da tarde do dia 17 de agosto de 2007 acompanhando a manifestação do grupo “Cansei” em São Paulo. Depois, participei da entrevista coletiva de um de seus líderes, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – seção São Paulo (OAB-SP), Lui

Cheguei à Praça da Sé às 12h30min, quando uma pequena aglomeração já ouvia um discurso inflamado do conselheiro da Ordem dos Advogados do Brasil — seção São Paulo (OAB-SP) João Baptista de Oliveira pedindo “a volta do Brasil de paz, sem corrupção e crime organizado”. “Mais vale ascender uma vela do que maldizer a escuridão. Viemos aqui ascender uma vela na frente da casa de Deus”, disse ele, voltando-se para a catedral que estava atrás do palco. “Os brasileiros de bem estão aqui representados”, decretou.


 


À frente do palco, seis pessoas formavam uma barreira com cartazes agressivos contra o presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva. “Incompetente, enganador, mentiroso e falastrão”, dizia um deles. O autor, que se identificou como Paulo Roberto e disse ser industrial, afirmou que estava ali porque o governo Lula era um “desastre”. “Por quê?”, perguntei. “Porque só se vê corrupção neste país”, disse. Ao lado, Ricardo Fernandes, que se identificou como assistente administrativo, atalhou: “Eu odeio este barbudo.”


 


Protesto contra corrupção e bala perdida


 


No Palco, João Baptista Oliveira insistia que “queremos de volta o Brasil que enche nossos corações de orgulho”. “Minha filha, que se esforçou para ter um diploma, só conseguiu emprego na Europa. Agora, para eu visitar minha netinha, de um ano, preciso cruzar o oceano”, afirmou. “Chegou o Osmar Santos, que perdeu os movimentos físicos, mas não os cívicos”, disse ele, interrompendo o discurso para anunciar o locutor esportivo vítima de um grave acidente automobilístico. Mais à frente, outro cartaz dizia: “Cansei de pagar os altos salários dos políticos.” Perguntei para a portadora da mensagem: “A senhora acha que todos os políticos ganham muito?” “Eles não ganham muito, mas só atrapalham o país”, justificou.


 


Outro cartaz dizia: “Cansei de pagar para o avião do presidente ser seguro e o meu não.” Ao lado, Lucci, uma “secretária aposentada”, disse que estava ali porque era contra “todo esse estado de coisas”. “O que, especificamente?”, perguntei. “Ao Lula, ao PT à CUT…” Indaguei: “A senhora acha que está ajudando a melhorar o país participando desta manifestação?” “Uma ajuda nunca é demais”, respondeu ela. Do outro lado, a fisioterapeuta Luciana Leme e o marido, cirurgião, disseram que vieram da cidade de São Sebastião, litoral paulista, para a manifestação. “Viemos protestar contra a corrupção, a bala perdida e o crime organizado”, explicou Luciana.


 


Presidente da OAB é ligado aos tucanos


 


À essa altura, o palco já estava tomado por artistas, apresentadores de televisão, cantores e um mar de ternos escuros. No corredor que dava acesso ao local, câmaras e microfones dominavam a paisagem. Ouvi alguém dizer: “Os tucanos realmente conseguem mobilizar a imprensa.” Era um casal, que observava a cena com atenção. Pedi uma breve entrevista. “Não posso”, disse ele. Falei que tinha ouvido a frase sobre os tucanos e me apresentei como jornalista do Portal Vermelho. Eles riram e se dispuseram a falar desde que não fossem identificados.


 


Disseram que eram jornalistas e estavam ali para ver se havia público e ouvir o teor dos discursos. “Este evento é da elite, que só quer benefício para ela. Eles não estão preocupados com o povo. Preocupação social não existe para essa elite”, disse ele. Perguntei se a manifestação era uma iniciativa tucana, ele respondeu: “Claro. O presidente da OAB é ligado aos tucanos, todo mundo sabe, por isso toda a imprensa veio para cá.” O casal logo pediu licença para se retirar dizendo que não queria engrossar o número de manifestantes mobilizados pela elite.


 


O povo está representado aqui?


 


Em volta do palco, uma multidão de seguranças e moças vestindo camiseta preta com a inscrição “Cansei” dominava a cena. Perguntei para uma delas qual era a sua função ali. “Somos funcionárias do Dória (João Dória Jr, um dos líderes do grupo), mas a gente é instruída a dizer que somos voluntárias”, disse ela, reduzindo a altura da voz. Ao lado, uma mulher dava entrevista falando alto e gesticulando muito. “Cansei deste governo irresponsável e de pagar 54% de imposto em cascata”, esbravejou.


 


Me aproximei e perguntei: “A senhora acha que este ato é contra o governo?” “Não é contra o governo, mas é para cobrar do Lula responsabilidade com o povo”, disse ela, que se identificou como Sandra Freitas, advogada. “O povo está representado aqui?”, perguntei. “Não, mas a crise é tão brava que chegou aos pés da elite”, respondeu. “Então o ato é da elite”, emendei. “É da elite, mas a crise também chegou aos pés do pobre. A crise é tão brava que os protestos começaram pela elite”, teorizou.


 


Voz do palco pede “fora, Lula”


 


Na passarela que dava acesso ao palco, Ivete Sangalo falava com uma jovem repórter de rádio, que depois da entrevista anunciou para os ouvintes que uma multidão demonstrava ''sua indignação na Praça da Sé.” Para todos os lados, circunspectos senhores de terno acompanhavam a agitação em silêncio. Conversei com alguns e todos repetiam o discurso padrão da manifestação. Um deles disse que Lula era incompetente porque não aproveitou o bom momento da economia mundial — como fizeram a China e a Índia. “Agora a crise chegou e eu quero ver como fica”, disse.


 


No palco, Luiz Flávio Borges D'Urso agradecia aos “cinco mil presentes” — haviam no máximo duas mil pessoas — e repetia com ênfase que a manifestação não era contra o governo, mas “a favor do Brasil”. Às 13h, todos fizeram um minuto de silêncio. Às 13h15min, depois do culto ecumênico, Agnaldo Rayol cantou o hino nacional, terminando com um “il” de Brasil trinado e longo. Uma voz saiu do palco: “Fora, Lula!” À frente, a palavra de ordem ressoou.


 


Para tentar encobrir, D’urso gritava no microfone: “Viva o Brasil!” Na passarela de acesso ao palco, o tumulto voltou a se instalar. Eram os artistas deixando o local. À frente, um sujeito vestido de palhaço mostrava um cartaz com seu endereço no Orkut e seu nome: Brasilino da Silva. “Você tem esperança de que esse pessoal te contrate?”, perguntei. Ele fez sinal que não podia falar. 


 


Popular manda Agnaldo Rayol descansar


 


Vi um tumulto que se aproximava de mim. Eram seguranças empurrando os jornalistas que cercavam o ator Paulo Vilhena. Por sorte, fiquei cara a cara com ele. “Você acha que este ato é contra o governo Lula?”, perguntei. Ele balançou a cabeça e hesitou. “Acho que não. Eu não sou”, disse. “Você não viu manifestações contra Lula?”, insisti. “Vi, mas eu não concordo com isso”, respondeu. Atrás dele, Agnaldo Rayol falava com os jornalistas quando uma voz alta surgiu do meio de uma pequena aglomeração de populares, de aparência totalmente distinta dos manifestantes e isolada pelos seguranças em cima de um canteiro elevado e afastado: “Está cansado, Rayol? Vai descansar!”


 


Algumas pessoas vestindo uma camiseta com a inscrição lembrando os mortos na tragédia do vôo da TAM protestavam contra os organizadores do ato, que proibiram a sua presença no palco para dar lugar aos artistas. Vera Lúcia Lopes, uma senhora de 67 anos, erguia solitária uma camiseta com a foto de um jovem e o nome “Cecel”. Era Marcel, de 20 anos, seu neto, assassinado no começo deste ano dentro do seu carro durante um assalto na Avenida Sapopemba. Chorando, ela disse que veio só porque a família estava trabalhando. “Alguém filmou ou entrevistou a senhora?”, perguntei. “Não, só tiraram foto”, respondeu.


 


Crescimento do setor de construção civil


 


Uma parte da trupe de animadores do ato se dirigiu ao auditório da OAB-SP, onde D’urso daria uma entrevista coletiva. No caminho, cercado por grades e seguranças, populares observavam a passagem do cortejo. Ouvi uma senhora dizer que aquilo era um ato dos “gravatas”. Era Aparecida, modelista aposentada, para quem aqueles que vaiaram Lula deveriam “ter vergonha na cara”. “Eles estão mesmo é pensando nas eleições”, disse ela. Ao seu lado, um grupo de Curitiba, que estava passando férias em São Paulo, concordou.


 


Suzane Martins disse que era empresária do ramo da construção civil e pediu para eu ver como o Brasil estava melhorando com Lula na Presidência analisando o crescimento do setor. “Eles querem derrubar o governo”, afirmou. Ao seu lado, o casal Nelson e Otília concordou. “É um ato contra Lula. Vaiaram o presidente várias vezes”, disse Nelson indignado. Na entrada da sede da OAB-SP, o deputado federal Vadão Gomes (PMDB-SP) disse que o ato não era contra Lula. “E o senhor, é contra Lula?” perguntei. “Sou a favor de Jesus Cristo”, desconversou.


 


O auditório da OAB-SP ficou tomado por jornalistas. Na mesa, além de D’urso estavam o ator Paulo Vilhena, o nadador Fernando Sherer, João Dória Jr e João Baptista Oliveira. D’urso fez um rápido balanço da manifestação. Elogiou a imprensa pela divulgação do evento, os artistas, desportistas, taxistas, trabalhadores e “todos” que estiveram no “solo sagrado da Praça da Sé” para “um ato cívico”. Mais uma vez, ele repetiu insistentemente que o ato era “a favor do Brasil” e não contra “quem quer que seja”. Sobre o “fora, Lula”, ele disse que não ouviu nada. “Pode ser coisa isolada, mas não é do movimento”, afirmou.


 


Descompasso entre líderes e manifestantes


 


Perguntei se ele tinha expectativa de contar com a participação no movimento de outras organizações da sociedade. Ele disse que sim e que estava com “vários pedidos no bolso que acabaram de chegar”. Um sujeito que se identificou como Roberto e presidente da “associação dos bacharéis de direito” pegou carona na minha pergunta para declarar seu apoio ao movimento. Depois da entrevista, fui falar com ele. Ao saber que eu era do Vermelho, pediu desculpa e disse que não falava com veículos de esquerda. “Você sabe, existem radicais em todo lugar e já fui chamado de fascista”, justificou.


 


Sobre o fato de o arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, não abrir as portas da catedral da Sé para a manifestação, D’urso disse que foi a “mão de Deus” que levou o ato para a Praça da Sé, onde “todos puderam participar”. Quando um jornalista perguntou sobre os custos da manifestação, ele disse que ninguém estava ali por dinheiro, mas por um ideal. Durante toda a entrevista, ele se esforçou para explicar o descompasso entre o que os líderes diziam e os pronunciamentos dos participantes contra o governo Lula.


 


D’urso finalizou a entrevista dizendo que dentro de 15 dias falará com o ministro da Justiça e que a partir dali não havia mais motivo para críticas ao movimento. “Críticas são coisa do passado. Não há mais sombras para alguém dizer que somos contra o governo Lula, que somos golpistas. Quem disser isso, por óbvio está a favor da corrupção, da criança abandonada e da insegurança. Defendemos que a mudança deve se dar de forma ordeira”, finalizou.


 


Fala do presidente Lula tem peso maior


 


Na saída, João Dória Jr falou com alguns jornalistas. Ao contrário de D’urso, ele disse que ouviu muito bem o “fora, Lula”. “D’urso saiu com os artistas, por isso não ouviu”, justificou. Perguntei se o ato era contra o governo Lula e ele disse que não porque seu pai foi cassado pelo regime militar. “Vivi com ele o exílio na França. Pouca gente sabe disso”, afirmou. Perguntei também se a manifestação não lembraria a “Marcha com Deus pela Família e a Liberdade”. “O Cansei não é golpista”, respondeu. “O senhor está cansado de que, exatamente?”, indaguei. “Do caos aéreo, por exemplo. Cobro do governo respeito aos passageiros. Nunca cansei do governo”, disse.


 


Perguntei também se a declaração preconceituosa de Paulo Zottolo, presidente da sucursal brasileira da multinacional holandesa Philips, sobre o Estado do Piauí, não comprometia a credibilidade do movimento. Ele disse que todas as pessoas deveriam ser tolerantes. “A intolerância começa pelas autoridades”, justificou. “O senhor acha o Lula intolerante?”, perguntei. “Em alguns momentos ele não é tolerante”, respondeu, com fisionomia nervosa. “Quando tem uma manifestação contra o governo, por exemplo, às vezes ele reclama”, emendou. “Mas o senhor não acha que ele tem o direito de manifestar a sua opinião?”, insisti. Mais nervoso ainda, Dória Jr respondeu: “Mas ele é presidente, sua fala tem um peso muito maior.”


 


Alguém precisa trabalhar neste país


 


Perguntei ainda a sua opinião sobre a decisão do arcebispo dom Odílio Scherer de não permitir o ato na catedral. “É uma situação estranha, porque fiz passeata na minha juventude e nunca tive notícia de proibição deste tipo. Foi bom, porque ele levou o ato para a Praça da Sé, onde coube mais gente. Acho que ele deveria entender que o ato não era político, não tinha bandeira de partidos e nem manifestações a favor ou contra este ou aquele candidato”, falou.


 


Na saída para a rua, todos foram escoltados por seguranças particulares. Ao lado, uma vistosa viatura da empresa “Homens de Preto” esperava a passagem. “Esse Dória tem dinheiro para caramba”, comentou um jornalista ao meu lado. As escadarias da catedral da Sé já estavam ocupadas por outra manifestação. Eram mulheres e policiais aposentados protestando contra a degradação dos serviços do setor e os baixos salários. “Serra: exterminador de policiais paulistas”, dizia um cartaz.


 


Mais adiante, na Praça Ramos de Azevedo, os metroviários começavam a chegar para uma manifestação também contra Serra. Dei mais alguns passos e uma jovem me estendeu a mão perguntando: “Tudo bem, meu jovem? Estava na manifestação do Cansei?” Era uma daquelas meninas que ganham a vida desempenhando um papel degradante a fim de arrastar clientes para as financeiras. Perguntei: “E você, foi na manifestação do Cansei?”. “Não, alguém precisa trabalhar neste país”, respondeu.   


 


 


 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor