“Quando Margot encontra Margot”: Lições do tempo

Em épocas e situações diferentes, cineasta francesa Sophie Fillières sintetiza a vida de professora quarentona no passado e nos dias atuais

Ao fugir aos costumeiros recursos narrativos neste seu “Quando Margot encontra Margot”, a cineasta francesa Sophie Fillières (02/11/964) deixa o espectador/a com a impressão de que duas mulheres amam o mesmo homem a um só tempo. Elas convivem com ele em várias situações e nenhuma delas se mostra ciumenta ou possessiva. Tampouco sente o transcorrer do tempo, pois nem elas ou ele envelhecem ao longo dos 95 minutos de duração da história. O único ponto comum entre elas é o nome Margot. É como se as duas estivessem fazendo uma viagem de trem-bala no trajeto Paris/Lyon e rememorassem suas vidas com ele.

Com estas estruturações dramáticas, Fillières mantém o espectador/a em seu ponto de identificação com os personagens. A começar pela jovem Margot (Agatte Bonitzer) que logo nas primeiras sequências se mostra decidida a levar adiante suas escolhas. Não fraqueja ao ser pressionada por seu chefe no escritório onde trabalha. E assim, a diretora/roteirista matiza a morena e logo estende a ação ao bar onde ela dança. Neste espaço, ela introduz outra personagem, a Loira à qual Margot irá se contrapor. Não o tempo suficiente para o espectador/a se dar conta de que Fillières está apresentando os personagens, sem se demorar neles.
Surpresa alguma, porquanto esta é a costumeira técnica de o cineasta irem, aos poucos, entrelaçando a narrativa através da introdução dos personagens. Fillières, porém, faz mais do que isto, começa por mudar rapidamente de cenário e situações, embora o espectador/a não se surpreenda com a rápida mudança de cenário. Ele já se acostumou com a linguagem cinematográfica, o diretor pode eliminar as transições com as cenas de ruas, a chegada à estação, a entrega do bilhete e o embarque no trem. Fillières faz isto, pois as rápidas ações permitem trais mudanças.

Espectador/a não entende o filme desde o início

A questão é que neste “Quando Margot encontra Margot”, o espectador/a não deve se prender a estas transições. Fillières se vale de outro recurso para apresentar os personagens e depois juntá-los. Se antes, em rápidas sequências, Marc (Melvil Poupaud) aparece rapidamente, ele ressurge no trem-bala em plena viagem ao lado da Loira (Sandrine Kiberlain). E para surpresa do espectador/a é homônima de Margot. São duas mulheres, uma jovem de vinte anos, a outra aos 45 anos. E esta logo percebe as situações que a outra enfrenta justamente naquele momento.
Através destes recursos narrativos, pois continua a se tratar disso, Fillières não só introduz seus personagens, como os põe em cenários tão caros aos filmes de mistério. O espectador não entende desde o início o tipo de história por ela contada. Margot-morena ao encontrar Margot-loira não se dá conta de quem é ela. Não está diante de seu duplo feminino bem mais velha do que ela. Mesmo porque encontrou-a poucas vezes e não fixaram amizade ou se mostraram atraídas uma pela outra. Nem adiaram qualquer encontro, só voltaram a se encontrar no vagão especial do trem.

O clima entre elas não envolve mistério, é o suposto resultado do acaso, diferente de William Wilson (Alain Delon) a atormentar seu sósia. No episódio homônimo, dirigido pelo cineasta francês Louis Malle no filme “Histórias Extraordinárias (1968)”, baseado numa das clássicas novelas do escritor estadunidense Alan Poe (1809/1849), ele persegue seu sósia por onde passa. Não é uma história macabra, como nos demais episódios do citado filme: “Metzengerstein”, de Roger Vadin; “Toby Damit”, de Federico Fellini. Fillières prefere reavaliar o presente e o passado de Margot-loira, centrado em sua juventude e na relação amorosa com Marc.

Não há ciúme entre as duas Margot

Não se assiste, por outro lado, a um hermético mergulho no subconsciente, a exemplo de “O Ano Passado em Marienbad (1961). Neste clássico o cineasta francês Alain Resnais (1922/2014) rompe a tipificação do tempo, valendo-se do fluxo de rememorações. Fillières busca outro caminho, ao tecer comparações entre o hoje e o ontem, ou seja, o que fui e em que me transformei. Tipo de avaliação a remeter ao longínquo do qual queremos esquecer, refazer ou, no limite, admitir quanto errou. Margot-loira, quarentona, não chega a tanto, nada comenta, só observa, como o faz a câmera da diretora/roteirista. Nem com Marc ela se abre.

São personagens classe-média a circular por hotéis e restaurantes não acessíveis ao trabalhador/a comum. Inexiste ciúme na convivência da Margot-jovem com a loira-Margot e em seus relacionamentos com Marc. Ele se divide entre uma e outra como se estivesse sempre no presente e não precisasse optar por uma delas. Os diálogos de Fillières são curtos e não há sequência em que as duas personagens expõem seus pontos de vistas sobre a relação dele com elas. Toda a ação se dá num contínuo, distanciado e misterioso em ambientes fechados. O exterior é passageiro.

Mesmo assim não se pode dizer que Fillières construiu uma intricada e hermética narrativa. O que transformaria este seu “Quando Margot encontra Margot” numa obra condenada a restrito circuito. Ela manteve a estrutura narrativa do princípio ao fim, mesclando o presente e o passado através das personagens femininas. O espectador/a fica diante de duas mulheres de nomes idênticos e do homem com o qual elas se relacionam amorosamente. E eles não envelhecem, tampouco se referem ao presente e ao passado em suas conversas. É eterno transcurso da vida.

Filme é rememoração de uma vida a dois

E, assim, ao invés de construir sequências que desmontariam este arcabouço dramático, dando algumas pistas ao espectador, Fillières opta por mantê-los em ambientes fechados. Nenhum deles revela realmente o que pensa em diálogos, fluxo de consciência e lembranças em flashbacks. Se o espectador mais atento quiser, terá de se ater ao que se desenrola na tela. E principalmente nas observações e indicações de Marc, sempre a referir à mais velha como Margot, como se a mais nova fosse seu duplo. É uma tipificação na qual as duas personagens se diferenciam mais pela cor.

Não é difícil captar a diferença entre as opções da reflexiva Margo-loira aos quarenta e cinco anos e da jovem Margot-morena, colérica e despachada aos vinte anos. O que a Loira faz todo tempo é avaliar o que era na juventude e no que se transformou na maturidade. Duas bem construídas sequências o confirmam. Fillières e sua diretora de fotografia Emmanuelle Callinot filma-as em separado com Marc. Há o amor tempestivo com a Morena e calmo com a Loira. Esta não age como se fosse a outra. São a mesma mulher em idades de vinte e quarenta e cinco anos,

A esta altura, ela ao conversar com Marc sentada na mesma cama no estreito canto do quarto do hotel em que se hospedam, demonstra mais entendimento. Eles se completam, amadureceram. A longeva relação entre companheiro e companheira é complementar, não de submissão. Os dois souberam mantê-la até ali. Marc é calmo e nas cenas em que estão juntos não se impõe. Margot-loira e ele seguem juntos. Estão sempre a lembrar momentos da vida deles, quando viajavam de trem. O filme, em si, é uma longa rememoração da vida a dois, ditada pelos ritos de passagens.

Margot-loira levou duas décadas para se livrar da culpa

O olhar de Fillières não é linear, centrado tão só na maturidade e na juventude de Margot. E nada houvesse a lamentar. Há o instante de apreensão, devido a imaturidade quando se engravidou ainda bem jovem. Deveria ser o momento de alegria durante as férias numa estação de esqui. Houve interregno de medo, os dois não agiram como deviam. Há uma elipse para o trem-bala em viagem que, a exemplo da vida, continua. Talvez seja esta a motivação do longo mergulho na juventude da loira Margot, agora quarentona. Ela se mantém serena, Marc foi tudo o que lhe restou.

Desta forma, Fillières mostra que durante toda a narrativa seu tema central foi sempre a culpa. E o modo como Margot na maturidade a tratou durante sua dupla visão do que transcorreu na agora longínqua juventude. Durante os noventa e cinco minutos de filme, ela mergulhou numa reflexão que não a deixou se afastar dela. Não à toa, diretora-roteirista enfatiza as sequências finais na estação de esqui, quando o espectador/a ainda vê duas, não uma só Margot. Suas rememorações têm mais a haver com o modo como ela aos poucos fez esvair o impacto da irreparável perda.

Pelo sentido dado por Fillières, Marc absorveu mais o impacto e soube lidar melhor com a perda do que Margot-loira. Não por ser mais forte, mas porque ela, como o espectador poderá avaliar, foi atingida mais profundamente do que ele e, portanto, levou duas décadas para livrar-se do peso. Trata-se de um trauma de difícil superação, ainda mais ocorrendo durante a juventude. O passado, cujas consequências não conseguiu soterrar, martirizou-a até alcançar o estágio em que se foi de mansinho.

Filme tem forte toque feminino

Com esta estruturação narrativa, Fillières escapou ao trivial. Seria outro filme se ela tivesse optado pela história narrada em flashback. E, além de tudo, com Margot aos vinte anos ao lado de Marc ainda jovem e depois na maturidade, aos quarente e cinco anos, quando ela está loira. Haveria diálogos, exposições, explicações, sequências e cenas que retirariam todo o mistério. Ficaria acessível, popular, só não causaria o mesmo impacto da “purgação de sua culpa”. A ousada duplicidade com três personagens ao longo de noventa e cinco minutos deixa tudo no ar.

Em suma a visão deste “Quando Margot encontra Margot” é essencialmente feminina. O homem não é visto como distanciado, que não ajuda a companheira a aliviar sua suposta culpa. Pelo contrário, mostra-o sempre presente. Fillières, diretora/roteirista, tem a contribuição de duas outras profissionais mulheres para dar sentido à sua narrativa: Emmanuelle Callinot, diretora de fotografia, e Valérie Loiseleux, montadora do filme. Então são três profissionais essenciais na moldagem estética/visual, rítmica/encadeamento de cenas e sequências e de conteúdo do filme.

Hoje as mulheres, não sem razão, estão, a passo largo a ocupar este nobre espaço na produção e criação da arte imagética. Basta assistir ao filme em questão para perceber a unidade entre interpretação, imagem, montagem e direção.

Quando Margot encontra Margot. (La Belle et la Belle) Drama. França. 2018. 95 minutos. Trilha sonora: Kasper Winding. Montagem: Valérie Loiseleux. Fotografia: Emmanyelle Collinot. Roteiro/direção: Sophie Fillières. Elenco: Sandrine Kiberlain, Agatte Bonitzer, Melvil Poupau

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