“Um Ato de Esperança”: Entre a crença e o sacrifício

Em equilibrada visão sobre a fé extremada e a rigidez ética, cineasta inglês Richard Eire explora os espinhosos temas da religião e dos limites da lei

Na sequência e nos diálogos que bem definem este complexo e intenso drama “Um Ato de Esperança”, a juíza Fiona Maye (Emma Thompson) conduz o julgamento com uma frase lapidar: “Tratamos aqui de justiça, não de moral”. Não estava diante de uma fácil sentença, pois envolvia a vida do jovem Adam Henry (Fionn Whitehead), de 17 anos e seis meses. Era deixá-lo viver ou morrer em estado avançado de leucemia. A pressão de seu pai Kevin Henry (Ben Chaplin) e da mãe (Ellen Walsh) era para que ela respeitasse os preceitos da Igreja Testemunhas de Jeová.

É com este leque dramático, a oscilar entre a fé, a ciência e a lei, que o cineasta inglês Richard Eire (28/03/1943) constrói, a partir do romance de seu compatriota Ian McWan (21/06/1948), uma narrativa que opõe a defesa da vida ao fundamentalismo. Abordagem que faz a própria Maye romper a ética e o rigor com que devia conduzir o julgamento, Não menos impactante é o moribundo jovem estirado na cama do hospital. Adam agoniza, nem por isto deixa de defender sua crença. E se aferra à certeza de que ela não devia interferir na decisão de seus pais e nem na sua.

As frases, os olhares, os gestos e os movimentos do jovem ator Whitehead dão ao espectador a certeza de que ele se “entregara a Deus”. Trata-se da ficção encenando a realidade hoje no Planeta, diante do avanço do fundamentalismo, não só muçulmano, nas também evangélico. Por que você faz isso?, indaga Maye. “É porque Deus quer”, lhe responde ele. E mostra o quanto internalizara a fé em seu subconsciente. Mais significativa é sua resistência à transfusão de sangue. Simplesmente alega que esta intervenção o tornaria outra pessoa e não seria mais quem é.

Adam se oferece para o sacrifício

Uma opção a remontar o tribalismo quando os chefes das tribos e o curandeiro aplacavam a ira dos espíritos oferecendo-lhes uma virgem ou um animal para o sacrifício. A exemplo deles, Adam se oferece a Deus para livrar-se da letal doença. E no sentido inverso, seus pais o ofertam em nome da pureza do corpo e do sangue. Não bastasse, em situações concretas, nos dias correntes, muitas seitas, igrejas e segmentos religiosos se negam a se vacinar por não acreditarem na cura, pois ela só pode vir direto de Deus. Existem, porém, correntes religiosas que seguem a Bíblia e creem em Deus, mas não negligenciam a medicina, a ciência, a tecnologia e o Estado Laico. É um avanço, pois se livram da estigmatização.

Nestas sequências bem estruturadas, a partir do roteiro adaptado por McEwan de sua própria obra, Eire configura o jovem Adam como vítima de suas próprias crenças. Seus entrecortados diálogos com Maye reforçam esta impressão. São dois seres a se especular, temerosos de deixarem suas carcaças serem rompidas. Vale aqui a entrega de Thompson e Whitehead aos personagens. Ela maleável, dando impressão de que fora ali para uma conversa não para demovê-lo de sua crença. Ele fechando-se para evitar que ela avançasse. Procura demovê-la da ideia de convencê-lo a aceitar a fazer a transfusão de sangue. Às vezes chega a ser ríspido.

Como se trata de um filme no qual os personagens concentram a tensão do espectador, Eire desenvolve o tema central de modo a deixar o pesado clima predominar. Há uma clara oposição entre a vida e o sacrifício. Noutro tipo de encenação seria de fácil resolução. Maye simplesmente optaria pela sentença que não penalizasse o jovem Adam. McEwan encontrou outra saída, o que sustenta a segunda e a terceira parte do filme. É brilhante quando Maye percebe o quanto ele foi forçado pelos pais a reprimir suas potencialidades e, assim, não expôr seu talento e energia.

Maye rompe com o rito do tribunal de Justiça

A narrativa ganha outra configuração. Não se trata mais de uma construção dramática centrada na dualidade vida/morte. Maye faz emergir tudo que o martirizava. Dos poemas do poeta irlandês Willian Butler Yates (1865/1939) que lia e às músicas que gostava. Chega a lhe indicar as notas musicais e fazê-lo superar a resistência a ela. Não são mais a juíza que rompeu o ritual do tribunal e o jovem evangélico a descobrir em si a capacidade de mostrar-se para o outro, sem condicioná-lo à sua crença. A identidade entre eles é mediada pela arte que o leva a sorrir e viver.

De forma indireta a dupla McEwan/Eire critica a educação que lhe foi dada por seus pais. Não o deixaram descobrir outro universo para além da religião. Seu mundo é fechado, sem as tendências, buscas, brincadeiras, aventuras, erros, desconfianças e acertos da juventude. Num lapso de tempo, Myae lhe mostrou as possibilidades e ele renasceu. Inexistem, inclusive, diálogos em que ela questiona sua crença ou culpa seus pais. A sutileza com que o reanima mostra o quanto valeu sua experiência de juíza ao julgar processos como os dele e dos gêmeos e ainda ousar fugir ao rito.

A considerar estas rigorosas estruturações de personagem nas quais ela se mostra sensível e cativante, tanto Eire quanto MacWan desconstroem esta imagem ao matizá-la em sua vida particular. Menos atenta e centrada se mostra uma juíza de meia idade, entregue a processos e leis e tribunal. Seu companheiro, o professor Jack (Stanley Tucci), chega quase a lhe pedir uma agenda para beijá-la no rosto e irem jantar juntos. Seu humor antes sob controle, se torna oscilante, chegado aos monossílabos e à irritação. E mostra seu casamento à beira do rompimento.

É difícil separar Emma Thompson da personagem

Este é outro vértice da eficiente juíza Maye. Chegada aos silêncios, à música de câmera com seu parceiro George (Andrew Havill), ao pouco cuidado com o apartamento. Uma personagem na qual a sempre brilhante Emma Thompson se encaixa, sendo impossível separá-la da juíza Maye com seus cabelos curtos de mexas brancas e um olhar de quem exala autoridade, rigidez e ética. É dada a olhares, dar de mão, fala exata e contundente. Jack já nem a percebe, pois não compartilham mais o cotidiano. Certamente não é esta a Maye que o espectador viu com Adam.

O filme ao longo de seus 106 minutos tem suas variações dramáticas fixadas em suas subtramas. E são restritas às que envolvem a relação Maye/Adam; as circunscritas ao apartamento dela e Jack e seus instantes de musicista em duo com George. Sua linearidade é traçada de modo a se dividir nas sequências a envolver Adam, sem a participação de seus pais, para depois voltar a se tornar o tema central do filme. É quando a confortável posição de Maye começa a se tornar aflitiva e reveladora.

O expectador se vê envolvido numa sucessão de ações, a partir de uma angustiante realidade. O Adam real era Testemunha de Jeová. Ewan o revela em entrevista sobre seu romance a “Balada de Adam Henry” ou “The Children Act“ (O Ato da Criança)” (2014), baseado num fato ocorrido em Londres. O próprio Eire, construtor da veracidade, filmou várias sequências na Corte Real de Justiça de Londres. O que lhe permite registrar a exata dimensão de uma Vara de Família onde Maye julga os casos mais complexos. Os personagens a emergir neste cenário reagem às intervenções da rigorosa juíza, como se inseridos no próprio julgamento.

Certezas e eficiência de Maye se desmontam

Contudo a melhor construção dramática deste “Um Ato de Esperança” é o desmonte das certezas e eficiência de Maye. Se no tribunal diante dos réus, advogados, especialistas, testemunhas e os presentes ao julgamento, ela predomina com argumentos precisos e incontestáveis, agora sua autoridade começa a claudicar. É o instante em que Eire e seu diretor de fotografia Andrew Dunn reduzem a iluminação para tornar o clima angustiante. O jovem a emergir diante dela é um ser desesperado com a aparência de mais de trinta anos. Estarrecida ficam a se medir, ela tem diante de si outro ser, não aquele que a tornou seu objeto de paixão.

Em princípio poderia ser o reencontro de dois amantes, porquanto o que ele lhe propõe é o que ela nega a Jack. Adam não tem mais em quem se apoiar, clama por compaixão. São instantes de dois grandes atores contracenando com outros interpretes da sequência no mesmo cenário. Eire fixa sua câmera apenas nos dois. Adam não é mais o jovem que ao ser questionado por ela sobre a transfusão lhe responde: “O sangue pertence a Deus” Naquele instante na ante-sala do salão do concerto dela e George, ela mostra, afinal, não ter a ética e a moral suficiente para apoiá-lo.

É uma sequência de arrepiar. Se os pais de Adam falharam, ela fica contra a parede. Tudo que lhe diz “é ser impossível”. Se Jack para ter seu instante de afeto com ela precisou mostrar que não precisavam mais conviverem, o desesperado o ex-evangélico, não tinha tal opção. Sua rigidez ética, moral e de justiça a impede de mostrar a devida flexibilidade para evitar que ele entenda porque fora mais profissional do que humana. E o quanto o sistema capitalista, ciente de seus direitos, esconda a razão de estar sendo cruel com ele. É como se lhe dissesse: se não lhe demos a consciência de seus direitos, nada faremos para salvá-lo de si mesmo.

Eire e McWan deixam o espectador refletir

Com esta visão nada lisonjeira tanto do sistema quanto dos fundamentalistas, a dupla Eire/McWan deixa ao espectador a profunda reflexão sobre as engenhosas armadilhas da crença, da ética e do capital. Destitui o cidadão de sua potencialidade, liberdade de escolha e direitos essenciais à sua sustentação e, ao final, lhe resta a frieza e o retorno à agonia. Um filme e um livro a assistir, ler e refletir sobre os descaminhos das relações de humanas e de classe no ápice da crise do Neolibralismo.

Um Ato de Esperança. (The Children Act). Drama. Reino Unido. 2019. 106 minutos. Trilha sonora: Stephen Warbec. Montagem: Dan Farrel. Fotografia: Andrew Dunn. Roteiro: Ian McEwan, baseado em seu romance “A Balada de Adam Henry”. Direção. Richard Eire. Elenco: Emma Thompson, Fionn Whitehead, Stanley Tucci, Ben Chaplin, Eleen Walsh.

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