“Um amor inesperado”: Nem ao sol ou nas sombras

O espectador não há de se surpreender com o inusitado tema deste “Um Amor Inesperado”. Em seu filme de estreia, o cineasta argentino Juan Vera ao invés de discutir os desencontros na relação de um casal de meia-idade, centra sua narrativa no vazio em que ela se encontra. 

Não de tudo inesperada, pois decorre da viagem do filho Luciano (Andrés Gil) para estudar na Espanha. E Ana (Mercedes Morán) e Marcos (Ricardo Darín) descobrem, finalmente, terem vivido 25 anos em função dele. Estão felizes e esperam que ele volte logo. Contudo terão de reconstruir sua vida a dois.

Vera estrutura várias sequências como se eles buscassem escapar às armadilhas engendradas pela ausência do filho. Desde o início da narrativa leva-os a preencher esta lacuna. Ora estão no cinema, noutra visitam Edi (Luís Rubio) amigo de Marcos. E numa variação desta busca, Ana encontra-se com a mãe de 82 anos (Claudia Lapacó). Numa das vezes em que estão na sala do apartamento, Marcos indaga: “Por que temos de ter todas estas coisas?” São os móveis a simbolizar seu gosto e o reflexo do modo de vida de classe-média argentina, Só agora o percebeu.

Deste modo, Vera faz o espectador de meia idade se dar conta de que Ana e Marcos levaram uma dupla vida: uma entregue à Luciano e a outra metade à/o companheira/o. Se ligar a sua à realidade se verá inteiro na tela. É neste dilema que Vera e seu co-roteirista Daniel Cúparo o fazem entender o desenrolar da trama na primeira parte do filme. Não mais dedicada ao vazio deixado por Luciano, mas em busca de novas identificações. Nem Ana nem Marcos encontra-as mais um no outro. Terão se descobrir novos espaços e companheiros/as, para continuar a viver.

Marcos e Ana tentam rejuvenescer

São estruturações dramáticas a mostrar o quanto se vêm deslocados, se esforçando para se localizar em bares e restaurantes e festas. Estão na meia idade, buscam ambientes que não os levem a se sentir deslocados. É interessante ver como Vera os filma aproximando sua câmera dos solitários ou grupos juntos aos balcões dos bares, rindo, dançando, livres para encontrarem seu novo espaço. Não são os únicos a se esforçar para “rejuvenescer”. Dividem essa busca do parceiro ideal com outros de sua idade e com os jovens loucos para compartilhar suas ansiedades.

Nem tudo nestas buscas tende à derrisão, muitos como Marcos e Ana estão nestes espaços para se divertir com as amigas e os amigos de sua idade. Mesmo para algumas aventuras e fugazes relações. O vazio criado pela emancipação de Luciano deixa-os livres para se reencontrarem, mesmo estando em diferentes ambientes, Pode parecer evasão, mas eles agora vivem suas próprias vidas, estão solteiros de novo. Inexiste culpa ou tédio, nenhum deles vigia o outro. Nenhum é dado a ciúmes, tampouco Marcos faz o gênero machão. Ana viver sua vida livre de controles.

É o tipo de abordagem que foge ao clichê, pois Vera está mais interessado no que farão Ana e Marcos para se readaptar à vida de solteiro. Não estão naqueles ambientes apenas por diversão, mas em busca do que os faça superar o bloqueio da idade. Numa das sequências, Ana defronta-se com o jovem e excêntrico especialista em ervas e perfumes. E Anselmo (Juan Minujin) a diverte por exibir-se para ela como se a atraísse para a libertá-la de sua “reprimida sexualidade”. Tudo evoca a luta pela liberação do corpo, numa sociedade retrograda concentrada na repressão da libido.

“Não é de tudo ruim ter uma amante”

Há sequências em que o diretor/roteirista satiriza o politicamente correto, fazendo o espectador rir. Na caminhada matinal de Marcos com Edi pelo parque, este se põe a comentar a vida dupla que passou a levar depois de se separar da companheira e reatar com ela em seguida. “Não é de tudo ruim ter uma amante (…)”, como se ela pudesse manter vivo seu casamento. E, assim, evitasse que ele rompesse com a amante e pudesse encontrar logo uma substituta. Não é tão fictício no universo do inconstante infiel que precisa reafirmar seu machismo como se fosse de sua natureza.

Vera mescla nestas sequências tanto as descobertas de Ana quanto faz o riso brotar dos gestos e ações do jovem em trajes orientais. O modo como ela reage as estas investidas dele reflete sua maturidade, por não se submeter ao prazer pelo prazer. Não é dada a experiências. É livre à sua maneira. Não deixa de voltar aos ambientes frequentados pelos de sua idade. Busca algo mais seguro, sem impor condições ou se aferrar à segurança da relação a dois, pois sua profissão lhe permite sustentar-se. É a legitimidade da mulher liberada e consciente de seus direitos.
Menos excitantes e menos expostos são os encontros e as buscas de Marcos. Mais contido, ele frequenta outros espaços, entre bares e restaurantes, onde encontra a jovem cantora Célia (Andrea Pieta). Tanto ele quanto Ana terão suas experiências, nas quais testam sua capacidade de se revigorar e tentar reencontrar a paixão que se esvaiu após vinte e cinco anos. É nesta terceira parte deste “Um amor inesperado”, que Vera mostra-se eficiente pensador e desconstrutor de clichês. As vivências de Marcos e Ana não passam de testes para testar sua capacidade de optar.

Marcos não é predador

É na bem estruturada sequência construída no apartamento que ele trabalha com os símbolos e as sensações submersas eivadas de tensões. Marcos e Ana se entrelaçam numa discussão em que discutem a pose de um e outro móvel. E o espectador percebe que na verdade se referem ao que faz parte de sua vivencia comum. O vazio por estarem separados logo se faz presente, não de forma explicita, mas como se referem a ele. Inclusive na indecisão de Marcos ao se interpor e levar Ana ao impasse. Contudo Vera deixa ao espectador o esforço para desvendá-lo por si.

Algo profundo entre eles se manteve, a separação os ajudou a redescobrir o quanto a experiência daqueles meses preencheu o vácuo de vinte e cinco anos. O que os deixou fora da realidade das ruas e das relações entre os de sua idade e os jovens para além do apartamento. Este abrir-se para o exterior de sua vivência comum deixou-os abertos ao que ambos pensam sobre a relação a dois. O contraponto a reafirmá-la vem justamente do equilíbrio de Marcos e a disposição de Ana em aceitar o que, na verdade, faz a paixão pesar mais na vida corrente do que o vazio.

Vera ao contrário dos cineastas sueco Björn Runge, em “A Esposa” e o mexicano Alfonso Cuarón em “Roma”, não configura Marcos como predador. Ou seja, o homem que usa a companheira e depois a despensa, como se usasse um objeto e o descartasse. Longe disso, ele não se mostra machista, autoritário ou se mesmo o chefe da casa. Prefere submeter suas ideias a ela, quando avalia o vazio a imperar em sua vida. É um personagem bem construído pelo sempre ótimo Ricardo Darín a lhe dar a exata dimensão do homem a ser modelado no século XXI. O q ue não é pouco.

Há quem viva a moral da idade média

Ele será tão só um dos vértices da relação amorosa/familiar, educado para dividir as tarefas caseiras e a educação dos filhos. E ser solidário às necessidades e às urgências da companheira. Nada idealizado, pois existem homens a agir desta forma nesta segunda década deste terceiro milênio. O próprio Marcos não deixa de se relacionar com o filho Luciano, embora este esteja no continente asiático e não mais na Europa. Os dois agem como amigos, ainda que hajam percalços, o vazio não deve se sobrepor a eles.

O espectador pode, enfim, notar a mudança das abordagens dos três filmes a tratar das relações amorosas e familiares. Runge e Cuarón centram suas narrativas na realidade imediata, embora formatadas pela ficção. Vera prefere estruturar o ficcional para refletir sobre o real e o cotidiano, dotando-os de construções que podem contribuir para a reflexão sobre as relações dos casais proletários ou de classe média. A burguesia, como classe dominante, tem suas relações amorosas e familiares ditadas pelos interesses financeiros e sociais, consignados em contratos registrados.

Nesta época globalizada em que as distâncias são diferenciadas pelos fusos horários, a mais significativa sequência deste “Um amor inesperado” vem através da conversa de Marcos com Luciano e sua agora nora vietnamita Lao Phen (Irene Tsou) via Skype. O tão criticado distanciamento, causador do vazio, se tornou apenas motivo para o casal Ana/Marcos perceber o cansaço de uma relação de vinte e cinco anos.

Mas a preocupação com o filho único foi a justificativa para os dois se situarem no universo onde a idade é só um dado a ser confirmado via certificação digital no celular. A tecnologia pode preencher o vazio por acesso virtual. E há quem ainda viva a superada moral da Idade Média.

“Um amor inesperado”. (El Amor Menos Pensado). Comédia dramática. Argentina. 2018. 136 minutos. Trilha sonora: Iván Wyszogrod.Montagem: Pablo Barbieri. Fotografia: Rodrigo Pulpeiro. Roteiro: Juan Vera, Daniel Cúparo. Direção: Juan Vera. Elenco: Ricardo Darín, Mercedes Morán, Claudia Fontán, Juan Minujin, Gabriel Corrado, Andres Gil.

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