A reforma da previdência e a feminização da pobreza

Muito já foi dito que, se quisermos avaliar o padrão civilizatório de um país, de um povo, basta conferir como são tratadas as mulheres, as crianças e as pessoas idosas. Sendo esse o referencial, podemos tristemente constatar que poucos, pouquíssimos, são os povos ou países que mereceriam o título de “civilizados”.

No Brasil de nossos dias, uma modificação drástica nas regras da Previdência Social, eufemisticamente denominada de “reforma”, aproxima definitivamente o país da barbárie na mesma proporção do desmonte dos direitos e garantias relativos à proteção social arduamente conquistados.

A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 06/2019 apresentada com grande alarde no último dia 20 de fevereiro representa, na prática , o fim da previdência social pública brasileira. Significa também atirar à sanha dos mercados a vida de milhões de pessoas que dela dependem.

Sob alegativas mentirosas (déficit, fim de privilégios, etc.) buscam construir uma narrativa plausível para angariar adesão dos que, por ignorância ou por má fé apoiam essa tragédia anunciada . Uma tragédia para milhões de trabalhadores que, de acordo com as regras da proposta, sequer terão condições de acessar os benefícios da previdência social. Uma tragédia maior para as mulheres pra quem a PEC 06/2019 é particularmente perversa.

As regras para aposentadoria contidas na proposta extinguem a possibilidade de aposentadoria exclusivamente por tempo de contribuição, conforme está na norma vigente. Para conseguir a aposentadoria, o trabalhador ou trabalhadora, deve, segundo a proposta, combinar tempo de contribuição com uma idade mínima. Aqui, a proposta deixa claro o lugar que as mulheres ocupam: enquanto a idade mínima para os homens permanece a mesma da regra atualmente em vigor (65 anos para trabalhadores urbanos e 60 para trabalhadores rurais) as trabalhadoras urbanas, para se colocarem em condições para aposentadoria, terão de cumprir a exigência de idade mínima de 62 anos (aumento de dois anos em relação à idade mínima exigida atualmente), enquanto as trabalhadoras rurais terão de trabalhar mais cinco anos (aumento da idade mínima exigida para aposentadoria de 55 para 60 anos ) . Porém, direito à aposentadoria para essas trabalhadoras somente será alcançado se, juntamente com a idade mínima, comprovarem tempo de contribuição: 20 anos para receber 60% do benefício, ou 40 anos para fazer jus ao benefício integral.

Ora, a vinculação entre idade mínima e tempo de contribuição é nefasta para as mulheres . Na vigência do atual modelo, as mulheres já enfrentam dificuldades para acumular tempo de contribuição. A responsabilidade socialmente atribuída às mulheres quanto à execução das tarefas domésticas e ao cuidado de crianças, idosos, doentes no âmbito familiar, dificultam ou impedem as mulheres de construir uma trajetória profissional estável e a possibilidade de contribuição regular para a Previdência Social.

As mulheres são também maioria em postos de trabalho precarizados (baixa remuneração, intermitência e alta rotatividade). Por conta disso, a aposentadoria por idade tem sido a modalidade mais frequente entre as mulheres.

Assim, ao vincular tempo de contribuição e idade mínima, a PEC 06/2019 irá excluir um grande número de mulheres do direito à aposentadoria.

Para além desses mecanismos limitadores quanto ao direito à aposentadoria, o desmonte da previdência pública brasileira, contido na PEC 06/2019, afeta em cheio outros benefícios previdenciários nos quais as mulheres são maioria: a pensão por morte e o Benefício da Prestação Continuada – BPC. Dados do DIEESE mostram que, em 2017, 83,7% dos beneficiários de pensão por morte eram mulheres e apenas 16,3% homens. Diante disso, o estabelecimento da regra que limita o valor das pensões pagas em 50% do salário de benefício e definindo cotas de 10% para cada dependente, impactará negativamente um grande número de famílias cuja renda depende exclusivamente desse benefício recebido pelas mulheres. Também no BPC, que tem nas mulheres a maioria do conjunto de beneficiários, o impacto será negativo uma vez que só a partir dos 70 anos de idade o benefício alcançará o valor de um salário mínimo (dos 60 anos – idade mínima para requerer o benefício – até os 70 anos a proposta prevê o valor de 400,00 ). E ainda, profissões que apresentam a presença majoritária de mulheres, a exemplo das professoras, também serão atingidas pelo imposição da idade mínima ( 60 anos, quando atualmente inexiste idade mínima para requerer aposentadoria ) e pelo aumento do tempo de contribuição( no caso das mulheres, de 25 para 30 anos, enquanto esse tempo para os homens permanece inalterado – 30 anos de contribuição).

O argumento falacioso para a penalização das mulheres, uma espécie de justificativa cínica para as grandes desigualdades já existentes na divisão sexual do trabalho, é que as mulheres vivem mais, ou seja, “oneram” mais o sistema e contribuem menos. A penalização da longevidade é por si só um argumento desumano e irresponsável, embora perfeitamente condizente com um projeto de poder que se firmou com o discurso apologético da morte e da violência. Quanto aos baixos índices de contribuição, esse falso argumento desconsidera as duplas e triplas jornadas de trabalho vivenciada pela maioria das mulheres e que as obriga a abandonar o emprego, conforme já nos referimos.

Assim, a aprovação da proposta, tal como se apresenta, representará o aumento exponencial dos índices de pobreza no país. A pobreza que hoje tem cor, sendo composta por pessoas cujos ancestrais foram escravizados e seguem sendo vitimadas pela escravidão do abandono a que são relegadas , será, cada vez mais feminizada.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD/Contínua do IBGE (dados de 2017), do total de 69,8 milhões de domicílios existentes no país, 30,5 milhões são chefiados por mulheres. São dados que demonstram que PEC 06/2019, ao penalizar as mulheres, representa a feminização da pobreza.

Diante desse quadro, a luta em defesa da Previdência Social pública e inclusiva deve ser hoje a luta central de todas as forças democráticas, populares e progressistas. E, no âmbito dessa luta, as mulheres devemos desempenhar um protagonismo estratégico justamente por sermos a parcela mais atingida por esse atentado aos direitos dos trabalhadores e trabalhadoras representado pela proposta contida na PEC 06/2019.

Assim como em outras ocasiões em que os direitos e a democracia foram ameaçados, as mulheres são hoje fundamentais na construção de uma frente de lutas contra mais esse crime que o poder financeiro intenta contra o povo brasileiro.

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