Todos Já Sabem”, Golpes arriscados

Entre o drama familiar e o melodrama, cineasta iraniano Asghar Farhadi expõe as fraturas de uma família arruinada em dia de festa de casamento.

Nos filmes do iraniano Asghar Farhadi (07/05/1972) o encontro familiar nem sempre é seu instante de união. Assim foi em “Procurando Eli (2009)” quando um fim-de-semana na praia se transforma em tragédia. Não menos elucidativo de suas escolhas temáticas é o casal que se esforça em reativar a união em “O Passado” (2013). Neste “Todos Já Sabem (2018)”, ele mantém seu foco ao desenvolver a narrativa a partir da festa de casamento da filha do idoso empresário rural espanhol. Sua câmera circula pelo sobrado de uma cidadezinha do interior, flagrando a ebulição das gerações dos descendentes do oligarca Antônio (Ramón Barea).

Cada um alegra-se ao seu modo. Os netos e netas se entretém, os genros e noras põem os assuntos em dia. E as filhas repassam suas vidas. Tudo se dá num contínuo sobe e desce das escadas e entrar e sair de quartos. Nada escapa ao curioso olhar de Farhadi. Os aficionados de seus filmes, contudo, procuram localizar o instante detonador da verdadeira ação do filme. Ele se mostra no reencontro do casal Paco (Javier Bardem) e Bea (Barbara Lennie) com a irmã desta, Lucia (Penélope Cruz). Através deles, Farhadi irá entrelaçar a história cheia de desconfianças e surpresas.

O que concentra a atenção do espectador é a ausência do companheiro de Lucia, o enigmático Alejandro (Ricardo Darin) que, embora devesse estar na cerimônia de casamento, se ausenta e gera indagações. Com estas simples sequências, Farhadi monta seu mosaico familiar. Paco é o centro das atenções, entretanto, as menções ao ausente lhe causa mal-estar, disfarçado em sua frieza com Lucia. Visto deste modo, este “Todos Já Sabem” parece não ter um centro irradiador da ação. Mas o interessante é Farhadi, seu roteirista e diretor, ter estruturado uma narrativa circular.

Farhadi não entrega trama ao espetador

No início sua câmera foca a jovem e bela Irene (Carla Campra) em apressadas conversas com suas primas e primos. As atenções logo mudam para Paco, Lucia e Bea. Adiante centra-se na ausência de Alejandro (Ricardo Darin), companheiro de Lucia. Farhadi não é de entregar logo ao espectador o que sua trama aos poucos irá desvendar. Mesmo em seu filme “O Apartamento (2016)”, com várias histórias paralelas, o comportamento dos personagens dita o desenrolar da narrativa. Não há uma trama propriamente dita. É o caso do desesperado idoso a assediar a moradora.

As sutilezas na estruturação da história em “Eles Já Sabem” levam sequências para situar o espectador no que o levará a uma misteriosa e intrincada trama. E nela estará justamente o que separa os membros da família de Antônio. Mesmo assim, Farhadi nada adianta sobre os interesses de cada um deles. O próprio oligarca não é individualizado até a segunda parte do filme. Só Paco, Lúcia e Bea e os jovens perambulam pelos cômodos como qualquer membro da família. Estão por demais entretidos consigo para atinarem às contradições que poderão antagonizá-los.

Acostumado a cativar o espectador por sua inteligência e percepção sem lhe entregar todas chaves da história a um só tempo, Farhadi desmonta adiante a suposta harmonia da festa de casamento. Ela é chocante o bastante para ele, espectador, não se desgrudar mais da tela. A alegria se transforma a tal ponto que ninguém mais se atém aos agora casados. E o centro da narrativa muda das relações familiares para o suspense, o medo, a tragédia. Então emerge o que é, de fato, o centro deste “Todos Já Sabem”: a feroz disputa pelo patrimônio de Antônio.

Alegrias da festa ficam para trás

Desta forma, Farhadi divide a narrativa em bem articuladas estruturações dramáticas: I -O que aconteceu à neta de Antônio; II – Por que todos culpam Paco; III – Qual o papel do enigmático Alejandro na festa de casamento. Todas estas subtramas se desenrolam ao mesmo tempo. A preocupação de toda a família se concentra em sobreviver para voltar à normalidade. Farhadi utiliza o suspense, a concisão e tão só os cenários da casa, para tornar o clima mais opressivo. Não há sombras, mas apenas a luz mortiça criada por seu diretor de fotografia, José Luiz Alcaíne.

Ao entrelaçar os fios dramáticos, Farhadi dota a narrativa e as subtramas de um pesado clima a levar os personagens a perderem o equilíbrio, dada à exacerbada tensão. As motivações e as alegrias da festa de casamento ficam para trás. O que motiva os adultos da família de Antônio, principalmente de Fernando (Eduard Fernánde), é a desconfiança dos atos de Paco. Sobre ele recai a acusação de ter se enriquecido às custas da venda das terras da família. Assim, Farhadi muda o foco narrativo do que aconteceu a Irene, para o ataque ao seu “ganancioso” tio Paco.

Este, sim, é o tema central de “Todos já Sabem”, ou seja, como a fortuna da rica família rural pode ser concentrada num só de seus membros. Empobrecendo, inclusive, a todos os demais pela forma como Paco é acusado de agir. São nestas sequências que Farhadi reúne todos os personagens e a partir daí eles se unem não só para desvendar o que aconteceu a Irene, mas sim tentar desmascarar o ardiloso Paco. E a história ganha tal dramaticidade que o espectador atenta mais ao acusado. E toda família passa a vê-lo como espertalhão por tê-la “ludibriado”.

Jovem Irene age com a frieza dos adultos

Embora as acusações a Paco deslindadas por Farhadi provoquem reações no espectador, o que conta é a mutação dramática em melodrama. Inexiste uma narrativa em contínuo. Ela é dividida em furtivas e silenciadas relações amorosas na família de Antônio. Ressurge então o submerso triângulo amoroso a pôr em confronto os esteios da história central. Reflete a paixão, o reprimido ódio e as mutuas acusações. É uma subtrama a revelar o passado que a família de Antônio busca soterrar. Na verdade, são os esqueletos presos no porão que retornam em flashes do subconsciente.

Esta multiplicidade de subtramas e a transição de drama para melodrama, dotam “Eles já Sabem” de sequências bem estruturadas e dirigidas com maestria por Farhadi. Ainda mais ao incluir a subtrama do que aconteceu, de fato, a Irene. É de rara competência tanto em construção dramática quanto em manter o suspense até a derradeira sequência. E, sobretudo, por exigir do espectador redobrada atenção para entender como Irene se submeteu ao que lhe foi exigido e se envolveu com os trabalhadores rurais. A revelação é tão chocante que exige dele reflexão.
A riqueza, como mostra Farhadi, não advém apenas da produção, da exploração do trabalhador rural e dos expansivos lucros, depende da forma como a terra é acumulada. Paco, experiente manipulador, agiu de modo a que as áreas mal administradas lhe permitissem aumentar seus domínios na área do oligarca. A simples ameaça feita por Fernando e, pelas vias transversas pelo próprio Antônio, lhe possibilitam enxergar como é visto pela família. E sua frieza e esperteza ainda lhe permitem o duplo ato.

Espectador tem que construir o desfecho

A forma como Farhadi constrói o desfecho é exemplar e de múltiplos sentidos. Além de não se deter em demoradas explicações que revelem o que, de fato, ocorreu a Irene, não explicita em algumas cenas o papel de Paco numa tramoia a exigir dele frieza e pronta intervenção, Isto contudo não é o bastante. É necessário atinar para o significado de seus atos de forma a antecipar a rapidez com que ele interfere no caso de Irene e ao mesmo tempo dá um fim ao seu. Com esta dupla estruturação, Farhadi deixa o fim desta história ao entendimento de cada expectador. Não é tão árduo desvendar o final em aberto, o que não é caso aqui. Um belo filme!

“Todos Já Sabem” (Todos Lo Sabem) Drama familiar/Melodrama. Espanha. 2018. 132 minutos. Trilha sonora: Javier Limõn. Montagem: Hayedeh Safiyari. Fotografia: José Luiz Alcaine. Roteiro/direção: Asghar Farhadi. Elenco: Javier Bardem, Penélope Cruz, Ricardo Darin, Barbara Lennie, Carla Campri, Eduard Fernánde, Ramon Barea.

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