“Dogman” – Mútua dependência

Em fábula sobre as conflituosas relações entre traficante e dependente químico, cineasta italiano Matteo Garrone discute os limites do tráfico.

Com apurada sensibilidade para transformar um drama numa fábula moderna, o cineasta italiano Matteo Garrone (15/91/1968) troca os efeitos especiais hollywoodianos pela violência física extremada. Em filme aparentemente simples como este “Dogman”, ele explicita a conflituosa relação de um viciado em drogas com o traficante que o abastece na periferia de Roma. Inexiste uma relação de confiança, a dependência mútua termina por torná-los inimigos mortais. E como ocorre neste submundo as consequências são de tal brutalidade e sadismo que beiram o extermínio.

Visto desta forma, sem adiantar as motivações dos personagens, eles são frutos da mesma sociedade. A violência brota da busca incessante de prazer para o dependente e o dinheiro para o traficante. O confronto aqui é entre o miúdo e frágil Marcello (Marcello Fonte), dono de um pet-shop na periferia de Roma, e o gigante e irritadiço Simoncino (Edoardo Pesce), que a todos trata com extremada violência. Inexiste glamour e opulentas fortalezas. O que está longe das intenções dramáticas de Garrone “Gomorra” (2008) e de seus co-roteiristas: Damiano D'Innocenzo, Fabio D'Innocenzo, Giulio Troli, Marco Perfetti, Massimo Gaudioso e Ugo Chiti.

O modo como Garrone apresenta os personagens logo nas primeiras sequências é de elogiável concisão. Marcello está em seu pet-shop a atender clientes com seus cães, a exigir sua atenção. Seu tímido sorriso indica logo ser confiável. Impressão logo desmentida por Simoncino ao surgir de repente e em rápido contato com ele sair com pacotinhos plásticos de cocaína. Assim fica visível a furtiva relação deles. Além disso, Garrone expõe a dualidade existente o Marcello traficante e o Marcello pai de família. Ele não deixa de cuidar da filha adolescente Sofia (Alida Baldari Calabra) e da companheira, mas seu tempo para elas é escasso.

“Todos por aqui gostam de mim”

Com esta estruturação narrativa, Garrone leva o espectador a prender-se às ambiguidades que se estenderão pelos 139 minutos de duração do filme. Marcello, com suas fragilidades, não deixa de o cativar por sua relação com seus amigos e Sofia. Com ela, ele relaxa em mergulhos no fundo do mar Tirreno na costa oeste da Calábria. Mas é com seus amigos que ele se diverte nas mesas de bar e lhes passa os pacotinhos de cocaína. É o tipo de vida sub-reptícia apropriada para seus “negócios”.

Como se vê, é um personagem de ambiguidade extrema. Não se sente ameaçado, e além disso, proclama: “Todos por aqui gostam de mim”.

Inexiste nele sinais de perigoso traficante, a dominar sua comunidade através da violência. Pode circular sem guarda-costas algum. Por outro lado, ele não é um cappo a gerir os negócios do tráfico de cocaína. Sua relação com seus “consumidores” é de pura amizade e, sobretudo, de furtivos negócios. Portanto, um cidadão no “exercício de sua plena cidadania”. Ou seja, não põe em risco seus “negócios” em momento algum.

Não menos bem estruturado por Garrone e seus co-roteiristas, é o brutamontes Simoncino, traduzido no Brasil como Simone. Gigante, violento, dependente químico, ele mete medo apenas por ser visto. Não há limites para ele quando a carência da cocaína o deixa alucinado. Caça Marcello por toda a comunidade, obrigando-o arrumar para ele o pacotinho branco. Em longas sequências, a começar no pet-shop, ele o obriga não só abastecê-lo, como o acompanhar aos vareios noturnos e a intervalos entre as profsex cheirar carreiras da droga. É sua maneira de retribuir o modo como foi atendido, sem levar em conta que lhe fez velada ameaça.

Simoncino prende poodle na geladeira

Neste tipo de narrativa, centrada em dois personagens, tendo apenas alguns fios dramáticos, como o encontro de Marcello com os amigos e a filha Sofia, a trama é intercalada com as ações de Simoncino. Garrone utiliza-as para fixar na mente do espectador o quanto ele é capaz de forçar Marcello a se envolver em suas tramoias. É tão frio que ao roubar um apartamento prende a poodle na geladeira. Ou mesmo se irrita a ponto de esmurrar Marcello num instante de fúria. Se mostra assustador por inexistir limite para ele, tanto para obter ou consumir cocaína.

Ao contrário de Marcello, com ele a ambiguidade passa longe. Tudo gira em torno do vício, da dependência, que o torna incapaz de diferenciar as reais intenções de Marcello. Ele se acha no controle da ação, por dominá-lo ao seu jeito, aterrorizando-o, levando-o a sair à noite para entregar-lhe alguns pacotinhos de cocaína. Não entende que ao “deixar-se” controlar pelo vício, mantém o furtivo e lucrativo negócio de Marcello. Sua violência ao invés de intimidar seu fornecedor termina levando-o a associar-se a ele mais por interesse de não perder um fiel “cliente”.

Esta relação mercadológica entre traficante e dependente é sentida por Simoncino de outra forma. Sente-se ameaçado quando a polícia italiana intervém e desnuda a relação entre traficante e consumidor. Seu alvo, como não poderia deixar de ser, é seu fornecedor que ao contrário dele tem muito a perder. Então dá-se o choque entre ambos, espécie de vendeta para ele e queima de arquivo para Marcello. E o espectador vê as construções dramáticas de Garrone se mesclarem à reversão de quem deve ser punido e quem deve ser mantido em liberdade. Opção nada fácil.

Amigos de Marcello lhes dão as costas

Não se trata, porém, de ver quem é mocinho ou é bandido. Se antes, Marcello, em sua simplicidade, humildade e simpatia o cativava, a ponto de torcer por ele, agora deve ser analisado com cuidado. Garrone, em boa construção dramática, opõe Simoncino a Marcelo, forma de o dependente se vingar de seu fornecedor, embora este seja forçado a fazê-lo em várias circunstâncias. E estarem, além disso, implicados em outros delitos. O que se vê, em sequência de pleno amoralismo, é a engenhosidade superar a força e a brutalidade. O que surpreende o atento espectador.

A extrema violência, antes apenas insinuada por Garrone, assume outro caráter. Não se restringe a ameaças, leva em conta tudo o que é posto em risco pela atitude de Simoncino. Marcello, como se fosse personagem de filme do cineasta italiano Dario Argento (07/07/1940), mestre do suspense e do horror (Giallo – Reféns do Medo. 2009), se vale de extremo sadismo ao atrai-lo para a armadilha jamais imaginada por ele. Sua descomunal força e gritos de dor são respostas às suas brutalidades e torturas impostas aos que lhe negaram pacotinhos de cocaína. E seu algoz sente-se recompensado. Pelo menos ele reage como qualquer torturado.

Através desta fábula exemplar, Garrone atesta a desmedida compulsão e a ferocidade com que Simoncino torna sua dependência da droga incurável. Seus métodos são, assim, contestados com seu próprio descontrole. Não que Marcello deixe de receber pela droga e ele lhe repasse parte dos ganhos de suas ações conjuntas. Quando, enfim, o traficante se vê em apuros e sai em busca de cobertura, seus amigos lhe dão as costas. E Garrone, em bela panorâmica centra neles sua câmera, mostrando que inexiste mais espaço para ele em sua própria comunidade.

Desfecho deste Dogman é brutal

Em belo exercício dramático sem maniqueísmo ou facilidades para quem busca apenas diversão, ele transforma o desfecho desde “Dogman” ou “Homem dos Cachorros” numa inescapável verdade. A simbiose entre traficante e dependente químico torna-os cúmplices, na medida em que precisam um do outro para sobreviver. Um pode obter tratamento feito pelo Estado e o outro deve submeter-se aos ditames da Justiça Se algum elo da corrente for rompido, como Garrone expõe ao tratar do mesmo tema em “Gomorra”, as estruturas político-econômicas do planeta estarão sob o controle do crime organizado. Fato denunciado pelo escritor italiano Roberto Saviano (22/09/1979) em seu livro homônimo (2008). Atesta que o sistema capitalista mergulhou numa inexorável decadência, sem retorno.

DOGMAN (Dogman). Itália/França. Drama/fábula. 2019.99 minutos. Trilha Sonora: Michele Braga. Montagem: Marco Spoletini, Fotografia: Nicolai Brüel Roteiro: Matteo Garrone, Damiano D'Innocenzo, Fabio D'Innocenzo, Giulio Troli, Marco Perfetti, Massimo Gaudioso, Diretor: Matteo Garrone. Elenco: Marcelo Fonte, Edoardo Pesce, Alida Baldani Calabria, Adamo Dionisi. Diretor: Matteo Garrone.

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