“Vice”, dos males, o pior

Os bastidores dos gabinetes da Casa Branca escondem mais trapaças do que boas intenções neste drama do cineasta estadunidense Adam McKey

O realismo num drama político onde transitam personagens brotados da realidade muitas vezes ajudam a entender informações manipuladas. Simplesmente porque nos faltam os elos que nos permitem apreender o que, de fato, as motivou. No caso deste “Vice”, o diretor/roteirista estadunidense Adam McKay (12/04/1968) nos remete à Guerra do Golfo (1990/08/1990 a 28/02/1991), à Guerra ao Terror (19/03 a 1º/05/2003) e ao Ataque às Tores Gêmeas, em 11/09/2001. Não para aumentar a tensão e o medo de que venham a se repetir. A história por ele estruturada busca preencher as lacunas que nos facilitam captar os fatos com clareza.

Deste modo, ele nos põe diante dos responsáveis por tais horrores. “Vice”, candidato a oito Oscar, é a cinebiografia do político e empresário estadunidense Richard Bruce Cheney (30/01/194), mais conhecido como Dick Cheney (Christian Baile). Ele surge numa intrincada trama política com o então presidente George W.Bush (06/07/1946), do qual era vice-presidente (2001/2009). Nela também está seu padrinho político, Donald Rumsfeld (09/07/1932), ex-secretário de Defesa do presidente Gerald Ford (14/07/1913 a 26/12/2006), em sua breve gestão (1973/1974).

Numa construção expositiva, tendente mais à reflexão e ao impacto das ações de Cheney, McKay percorre longo trajeto para situar o espectador, até estes momentos. Vai do jovem Cheney a percorrer as universidades de Yale, Wisconsin e Madison e até se formar bacharel em Artes e fazer mestrado em Ciência Política na Universidade de Wyoming. Mas não se fixou em lugar algum, tendo trabalhado, inclusive, como técnico em eletrificação de linhas ferroviárias. Sua vida errante só terminou ao se casar com a jovem, hoje escritora, Lynne Vincent (Amy Adams) em 1964. Foi ela que o pressionou a mudar de vida e ele então se fixou na política.

Cheney herda o modo de Rumsfeld fazer política

McKay mostra-a em sequências cruciais para a introdução dele nas relações com republicanos influentes. Dentre eles, o já engajado, debochado, irrequieto e político sagaz Donald Rumsfeld (Steve Carell). É por meio dele que chega a Washington e ao governo Richard Nixon no início dos anos 70. É quando este começava a perder a liderança em sucessivos escândalos, dentre eles o do Watergate que o levaria à renúncia. E então é nomeado, com as graças de Rumsfeld, chefe de gabinete do presidente Ford, vice de Nixon que o substituiu (09/08/1974 a 20/01/1977). Não mais iriam se separar. Seu padrinho político era instável, irritativo, dado a palavrões e variação de humor, mas era fiel.

Cheney irá herdar o modo de ele circular e bisbilhotar gabinetes e ouvir conversas que poderiam aumentar sua influência na Casa Branca. A câmera de Greig Fraser enquadra-o em 3×4, sempre ao telefone ou em contínuas reuniões. Seus trajes não mudaram, eram paletós e calças em tons escuros e camisa azul claro ou branca. Daí troca os gabinetes pelo cargo de Ceo da gigante da indústria do petróleo Halliburton. Sua influência neste segmento multinacional continuará. Inclusive no governo George H. W. Bush (20/03/1989 a 20/01/1993), do qual será o secretário da Defesa.

McKay o constrói não só como político e administrador. É agora atento à geopolítica no Oriente Médio, com o foco no Iraque e no Afeganistão. Sua visão de que Saddan Hussein (28/04/1937 a 16/07/1979) era o inimigo a derrotar vem daí. Ele se tornara supostamente um entrave para a expansão do controle dos poços de petróleo no Iraque, notadamente após ter ocupado o Kuwait. Houve um choque entre eles, pois não só os EUA articulavam o expansionismo geopolítico, como também Saddan. O resultado foi o conflito bélico, instigado pelos EUA e suas coalizões de aliados europeus, dentre eles o sempre fiel Reino Unido.

Lynne continuou sendo conselheira de Cheney

Com estes dados e a câmera fechada em Cheney e Rumsfeld, Mckay dá conta dos espaços a preencher na cabeça do espectador. Não é mais a imagem do Saddan expansionista e belicoso. “Uma ameaça às democracias e ao modo de vida ocidental”. É Oriente versos o Ocidente. Dualidade ainda a perdurar, dada aos planejados conflitos e à busca de controle geopolítico do Oriente Médio. Deste modo Cheney aprendeu e deixou para trás seu mestre em articulações e tramas e trapaças. Não precisou mais dele, pois criou seu próprio espaço e Rumsfeld virou um estorvo aos seus intentos.

Não menos importante continuou sendo sua relação amorosa com Lynne e afetuoso com as duas filhas. Ela continuou sendo a conselheira, a parceira, frequentemente presente em seu gabinete e em reuniões. Ela tem sensibilidade para decifrar os interesses em disputa. Mesmo quando Cheney insiste em questioná-la para, no final, concordar com ela. Este é outro lado bem construído por McKay. Já não é mais só o casal, as duas filhas Lizzy (Lily Rabe) e Mary também participam ao seu modo. Uma tende a seguir o pai na política direitista na pequena cidade em que moram. A outra é o reverso do esperado pela família conservadora estadunidense.

Este fio dramático é o mais instigante nas relações familiares de Cheney. Defensor da família tradicional, contra casamento de pessoas do mesmo sexo, ele votou no Senado contra a aprovação da lei que o legalizava. De repente, a jovem e bela Mary (Alison Pill) chora copiosamente diante dele e de Lynne. “Minha namorada me largou, eu gosto de mulheres. Eu sou gay. (frase não literal)”. Nem o pai, nem a mãe a expulsaram de casa. Pelo contrário a apoiaram. Mas não significou escancarar portas e janelas. É como confessassem um para o outro: “Deixa, isto acontece em qualquer família”. Há os que não pensam assim.

McKay se concentra nos interesses dos EUA

A esta altura da narrativa, o espectador descortinou os conflitos interiores da família Cheney/Vincent. Lynne cuida e educa as filhas enquanto Richard se envolve cada vez mais em complexos e entrelaçados interesses geopolíticos no Oriente Médio. A Guerra do Golfo despertou forças políticas árabes a se estender até o Afeganistão, onde os Talebans se uniram a outras forças para defender seus interesses. Não é apenas uma questão religiosa, cristãos versus seguidores de Maomé. Existe ainda os xiitas e o embrião da Al Qaeda, numa região de conflitos milenares. Estão nestas décadas a gestação do Estado Islâmico e seu radicalismo.

McKay demonstra ter consciência do desenvolvimento de seu tema central: a expansão da luta pelo controle dos poços de petróleo, dado ao seu já preanunciado esgotamento. Este é, enfim, o fato motivador dos confrontos ainda em curso, anunciado pelos EUA como de outra natureza. A execução de Muamar Kadafi (07/06/1942 a 20/10/2011) em plena luz do sol faz parte deste concertado plano. E McKay ao abordá-lo num encadeamento frio e articulado faz o espectador ligar os pontos soltos ainda mais. A guerra aberta em curso é mais complexa do que atribuir a uma organização qualquer ataque ou ação isolada. Nem tudo é terrorismo.

A linha de corte traçada por McKay com sua câmera à altura dos ombros dos personagens foge ao padrão. A iluminação não é excessiva, tende ao clima que ele e seu diretor de fotografia Fraser estabeleceram. Os personagens não se movem em excesso. Ele os põem sentados ou a percorrem espaços limitados, salvo nas sequências de grande impacto. A linha de mudança é o ataque às Torres Gêmeas. Enquanto há pânico nas ruas a reunião de Bush filho com Cheney, Rumsfeld e Colin Power (Tyler Perry) e demais secretários irá atestar suas reais intenções.

Dupla Bush/Cheney engendrou o caos no Oriente Médio

É quando o espectador arregala os olhos e se fixa na tela. Surge em meio às intervenções na reunião o que não era o tema em discussão. Ou seja, a resposta à Al Qaeda e a prisão de Bin Laden, o arquiteto do ataque às Torres Gêmeas. Surge então à mesa o mapa com as áreas de exploração de petróleo já acertadas antecipadamente com as empresas de petróleo. Agora chegara o momento de ocupá-las. Entre as gigantes estão a Exon Mobil, Chevron, Conoco Philiphs e a Halliburton no enquadramento feito pela câmera de McKay. Qualquer dúvida ainda a perturbar o espectador fica esclarecida. Os impérios têm triplas faces, dentre elas o poder político.

Em momento algum, McKay se desprende do tema central: a biografia de um político e empresário conservador que, ao gerir o Estado, não esquece de seus compromissos com o capital. Cheney chega a pressionar Bush (Sam Rockwell) a tomar a decisão de invadir o Iraque ou qualquer país do Oriente Médio. Desta forma iria responder ao ataque às Torres Gêmeas e vingar a perda dos que lá estavam. Ainda assim, lhe pede para não dividir a iniciativa com seus aliados, como o então fiel primeiro-ministro do Reino Unido, Tony Blair (06/05/1953), cujo governo durou de 1997 a 2007. “A Iniciativa é sua. Você é o presidente!”, insiste Cheney.

O resultado, como não poderia deixar de ser, é a expansão do confronto para a Europa, principalmente França, Inglaterra e Alemanha, e os Estados Unidos a intervalos. Cheney, enfim, se acomodou em suas caçadas e pescarias e o cuidado da família. Seus interesses estão preservados. Os EUA, contudo, voltaram suas antenas para a Venezuela Bolivariana. Vê no país do Caribe as mesmas chances tidas com o Iraque. O que interessa a Donald Trump e aos conglomerados plurinacionais é se apossar das reservas de petróleo e dos minerais raros que ainda restam.

Trump é o único eleitor de Guaidó

O inusitado, para não dizer articulado, é não explicar porque se vale de uma artimanha submersa de escolher a dedo um títere e orientá-lo para se declarar presidente interino. E, além disso, conseguir que os países, cujos nativos são perseguidos e expulsos dos EUA, ainda o reconheçam. Trump é seu único e valioso eleitor do jovem Juan Guaidó, que pôde assim se autodeclarar presidente interino da Venezuela. Enquanto isto, na fronteira do líder imperialista, as crianças, idosos e adultos estão à mingua. E impedem que os venezuelanos explorem suas reservas de petróleo e de minerais raros e os vendam para manter o país em funcionamento e se desenvolvendo. A fome e a tragédia em curso é uma repetição do mesmo.

Seus aliados com certeza se acham protegidos e defensores da democracia. E se precisar ainda irão apoiá-lo na desestruturação do próximo pais na lista: a Bolívia. Tudo não passa de mais uma grande e escancarada manipulação. Nada mudou no quintal dos EUA. Não à toa a Petrobrás é tão cobiçada. Tudo tem de estar sob o controle do império em decadência. Porém em seu retrovisor está a potência do século XXI: a China. Com ela a conversa é outra e o risco a correr é alarmante.

Esta é, sem dúvida, a contribuição que que MCKay dá ao seu espectador através da cinebiografia do político e empresário Dick Cheney. “Vice” diverte quando Rumsfeld zomba de seu pupilo e acha-o esperto ao lhe conceder espaço para controlar o Governo Bush. O calcanhar de Aquiles dele é o coração jovem, não o original, mas o que termina por lhe permitir conviver com a filha Mary e a companheira dela. A contar ainda a transformação feita pelo trio de maquiadores Greg Cannon, Kate Biscoe e Patrícia Dehaney permitindo Christian Bale dar a impressão que, na verdade, o espectador estava diante do próprio Cheney. Merecido Oscar.

Vice (Bachseat)). Drama. EUA. 2018. 132 minutos. Trilha sonora: Nicholas Britell. Edição: Hank Corwin. Fotografia: Greig Fraser. Roteiro/direção: Adam McKay. Elenco:Christian Bale, Amy Adams, Esteve Carell, Sam Rockwell, Alison Pill, Lily Rabe, Tyler Perry. Oscar de melhor maquiagem (Greg Cannom, Kate Biscoe, Patrícia Dehaney). Candidato ao Oscar de: melhor filme, melhor diretor, melhor ator (Christian Bale), ator coadjuvante (Sam Rockwell), atriz coadjuvante (Emy Adams), roteiro original: (Adam Mckay), melhor edição (Hank Corwin) e a já citada maquiagem.

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