“A Favorita”: Amargo exercício do poder

Drama do cineasta grego Yorgos Lanthimos mescla Shakespeare, trapaças e neoliberalismo ao tratar da luta pelo poder na Inglaterra do século XVIII

Nas sequências finais deste “A Favorita”, a hesitante e fragilizada rainha da Inglaterra Anne (Olívia Colman) sente-se ameaçada pelas reações de seus súditos nas ruas. “Ele me olhou de um jeito que fez meu sangue gelar”. Fora uma reação deles à possibilidade de uma guerra de seu país com a França. Uma de suas conselheiras, a jovem Lady Abigail (Emma Stone), procurou relativizar sua impressão, indagando-lhe se ela achava que “as pessoas estavam com raiva”. Sua resposta sintetiza a visão de quem estava atenta à opinião delas. ”Nós deveríamos perguntá-las”.

Não menos emblemática destes tempos neoliberais em crise é a resposta da sua atilada conselheira Lady Sarah de Marlborough ((Rachel Weisz). “Não é assim que o Estado funciona.

Essas pessoas não comandam, são comandadas”. São visões diferenciadas do exercício do poder que bem traduzem o comportamento de presidentes, reis e primeiros-ministros neoliberais. Ao invés de democratizar o poder, elevar a participação popular, se tornam ditatoriais e autocráticos. Na verdade, eles são executores dos projetos de poder da burguesia; portanto do grande capital.

Com extrema sensibilidade, o cineasta grego Yorgos Lanthimos (27/5/1973) encadeia imagens na tela que sintetizam os impasses surgidos no exercício do poder. E principalmente a quem o líder supremo deve, em primeira e última instância, considerar. Assim, ele põe o espectador a tecer comparações com a realidade de seu país. Hoje as citações são mais ao mercado, às empresas e aos “investidores”. Moeda, cartões de crédito, bolsa de valores e projeções de capitais ofuscaram a existência da classe operaria e do trabalhador intelectual, como criadores da riqueza. Sem emprego estável e poder aquisitivo não há nem mercado.

Rainha se recusa a declarar guerra

Este paralelo entre a fictícia Rainha inglesa do século XVIII aflora também de outro modo. Yorgos e seus roteiristas Deborah Davis e Toney Mac Namara estruturam desde o início uma narrativa essencialmente sobre o exercício do poder a partir de temas atuais. Anne está às voltas com as pressões do parlamento para declarar guerra à França, num momento em que as finanças do Estado estão deficitárias. E ela justamente por isso se recusa a fazê-lo. Entre os líderes dos que tentam influenciá-la estão o primeiro-ministro Godolphin (James Smith) e a líder do Partido Conservador, Lady Sarah, justamente sua confidente e assessora especial.

O temor da Rainha Anne é, em aumentando o imposto sobre as terras, desencadear a alta dos preços agrícolas, o desemprego e a fome nos meios rural e urbano. E, além disso, a guerra com a França provocaria a morte de milhares de soldados ingleses e o luto se estenderia por todo seu reino. Um custo que ela hesitava em correr. Preferia continuar a ser pressionada e chantageada por Lady Sarah, a duquesa de Marlborough, e Godolphin. Ou seja, não queria acabar confinada, cheia de dores e feridas nas pernas, numa cama de seu quarto escuro no desabitado Palácio Real.

Seu único aliado era o jovem parlamentar conservador Robert Harley (Nicholas Hoult). O único a se manifestar contra a guerra pelas mesmas razões que ela. Mesmo sendo a soberana do Reino Unido (Inglaterra, Irlanda, País de Gales e Escócia), a grande potência industrial e agrícola do século XVIII, tinha de considerar a crise financeira em curso. Estes forçados impasses são o tema central deste bem estruturado “A Favorita”. A rainha construída por Lanthimos e a ótima Olívia Colman é um ser alquebrado, doente, solitário disposto a não sucumbir ao peso do poder.

Sarah se mostra ambiciosa demais

Este tema central em si exigiu de Lanthimos e seus roteiristas Davis e Mac Namara uma carpintaria narrativa com dois importantes fios dramáticos: I) – o do parlamento com o primeiro-ministro Godolphin e o parlamentar Harley; II – o da solitária rainha Anne entrincheirada no palácio real. Eles fogem desta armadilha dotando a história de duas subtramas shakespearianas eivadas de intrigas e traições. Na primeira delas Lady Sarah se pontifica como urdidora das armações contra a resistência da Rainha Anne contra a guerra e o aumento dos impostos.

Sua tentativa para enfraquecer a soberana leva-a a torná-la sua dependente. Aproveita-se de sua constante fraqueza das pernas cheia de feridas, da falta de agilidade de locomoção, da carência afetiva e amorosa, reforçada pela solidão no imenso palácio real. Torna-se não só confiável como lhe aplaca o desejo. E ganha com isto sua confiança, levando-a a aproveitar-se disso, para dar-lhe ordens. “Você tem que dizer a Harley que mudou de ideia quanto aos impostos”. Porém, a Rainha não a atende. Seu jogo, deste modo, é atiçar um contra ao outro até um dia conseguir.

Mas é na segunda sub-trama que Lady Sarah se desdobra para seus intentos não serem frustrados. O trio Lanthimos, Davis e Mac Namara põe em cena sua prima, Lady Abigail que acaba de perder o pai e o título de nobreza. Sem amparo em Londres, ela termina na cozinha do palácio real. Mas, devido às suas raízes, Lady Sarah decide dividir com ela os cuidados com a Rainha. É sua grande chance de voltar à nobreza. Se vale de seus conhecimentos com ervas para amenizar as dores das pernas da Rainha. Deste modo, elas passam grande parte de seu tempo juntas em Palácio.

Intriga domina o triângulo amoroso

Aos poucos, Abigail preenche todos as ações antes a cargo da prima Lady Sarah. Inclusive a de dividir com a Rainha seus momentos de íntimos prazeres. Até ser flagrada pela prima dormindo na cama por ela frequentada antes. Formam, a partir daí um triângulo amoroso gay. E logo entram num conflito que as levam à sucessão de intrigas de parte a parte. Em princípio de Lady Sarah apenas, pois a prima temia voltar à cozinha. E ela se aproveita para tentar afastá-la da Rainha, que se afeiçoou à sua prima e decide mantê-la como amante. Sua reação é de total crueldade.

Desta forma, Lady Sarah repete as tramoias do incansável oficial Iago (Kenneth Branagh) em “Otelo, O Moro de Veneza (1995)”, para se vingar do General africano Otelo por não o ter promovido. O diretor inglês Oliver Parker (06/09/1960) faz uma leitura sobre a inveja e a calúnia, mas também sobre o desprezo. Por ser mais velha, Lady Sarah se sente preterida pela Rainha ao ser substituída pela jovem prima. Principalmente ao flagrá-la na cama onde passara noites e dias a tentar, através da sedução, convencer a Rainha Anne a aceitar declarar guerra à França.

O espectador logo percebe as intenções dramatúrgicas de Lanthimos nesta segunda parte dos 120 minutos deste “A Favorita”. Ao invés de manter as sub-tramas paralelas ao tema central, o do conflito entre Inglaterra e França, ele mescla-os de forma a torná-los um contínuo. Ou seja, inexiste separação narrativa na qual as sub-tramas reforçam o eixo central da história. Lady Sarah transita entre a cama da Rainha no palácio real e o Parlamento, onde trama com Godolphin e os parlamentares conservadores o aumento dos impostos sobre a terra. E, por outro lado, mantêm-se atenta à relação amorosa de Lady Abigail com Anne.

Primas entram em conflito

Não bastasse, o que interessa a Lanthimos não é só manter o espectador concentrado na história a se desenrolar na tela. Ele, além de fazê-lo, desenvolve diálogos, ações e subtextos de modo a fazê-lo entender as motivações das primas em confronto. O que elas fazem não é justamente o que o que os diálogos expõem, Pelo contrário, tudo advém de suas motivações e situações através das quais podem chegar ao que, de fato, atendem aos seus interesses. Lady Sarah ofende, agride e pede o afastamento da prima por esta, ao atender às carências da Rainha Anne, a impede de alcançar, por hora, seus ocultos e tramados objetivos bélicos.

Não diferente de Lady Sarah, a jovem Lady Abigail enquanto se mostra atenta às fragilidades da agora amante real, se multiplica em três. I – A amante constante que cuida das frágeis pernas da Soberana, divide com ela a cama e está presente quando dela precisa; II – Encontra no jovem nobre Masham (Joe Alwyn) seu par, por fazê-lo se apaixonar por ela; III – encontra nele a chance de voltar a pertencer à realeza britânica. E, além do mais, com total anuência da idosa Soberana, como fosse sua mãe.

Trata-se de um ardil, porquanto as Ladys Sarah e Abigail sabem articular suas tramoias sem explicitá-las um momento sequer, nem para o espectador. Notadamente a líder do Partido Conservador no Parlamento. Ela repete sempre suas propostas e força a Rainha a atendê-las. “Agora você vai lá e declara que vai aumentar os impostos sobre a terra”. E se irrita quando Harley cria obstáculos para alcançar seu almejado interesse. Isto se dá quando Marlborough está prestes a invadir a França. Mas também Abigail arma seu retorno à nobreza valendo-se de artimanhas.

Clima no palácio real é de solidão e vazio

Contribuem para estes jogos de espelhos o clima, os ambientes (cenários) e a forma como o diretor de fotografia Robbie Ryan ilumina as cenas. Realça do princípio ao fim os tons verdes e brancos dos corredores, salas, salões e quartos. Com isto dá a sensação de solidão, vazio, friagem. Mesmo quando Abigail se enfurna na biblioteca para selecionar um livro para ler e é seguida por Sarah, ele mantém as sombras e a luz branca a fender a escuridão. Idêntica sensação tem o espectador quando uma delas está no quarto com a Rainha. A de que falta vida naqueles ambientes.

É no desfecho que, como sempre, todos os nós são desfeitos e as tramoias expostas para o espectador notar que não conseguiria se antecipar a ele. Os confrontos entre Sarah e Abigail terminam por deixar claro que uma delas claudicara por não atentar para a capacidade da outra lhe causar danos. Muito mais a experiente líder conservadora que ao persistir em controlar a rainha, esqueceu da prima. E, além do mais, negligenciou sua perspicácia e sua cultura enriquecida pelas leituras dos livros da biblioteca do palácio real. Não só isto, ao desprezar a capacidade da Rainha de refletir e tomar decisões esqueceu que ela era o poder.

Na época cabia a ela nomear e demitir o primeiro-ministro, sem consultar ou delegar ao partido majoritário no parlamento fazê-lo. E de repente, ela poderia assumir a plenitude de suas prerrogativas de Soberana e tornar as pressões de sua conselheira e de Godolphin meras ambições. E, por extensão, Abigail em seu aparente alheamento poderia, enfim, por a descoberto as submersas motivações da prima. Algo que até ali lhe escapara. Em política os mesmos ventos que estão a favor, podem de repente se tornarem verdadeiros furacões contra demasiadas ambições.

Desnecessário explicitar quem afinal é a favorita e por quem foi alçada a tal posição. Sarah, por suas posições, tornou-se vilã. E a Rainha Anne se mostrou sábia ao ouvir os deserdados, que manifestavam sua oposição à guerra à França e ao aumento dos impostos ao protestarem infestando as ruas com insuportável mau-cheiro. É uma grande lição para os neoliberais de plantão. Lanthimos discute o exercício do poder como vontade, decisão e força, mas voltado para quem realmente defende a democracia, senão os que a sustentam e podem recuperá-la: o povo.

A Favorita. (The Favourite). Drama de época. EUA/Irlanda. 2018. 120 minutos. Trilha sonora: Alexis Bennett/Sarah Churchill. Editor: Yorgas Mavropsarídís. Diretor de fotografia: Robbie Ryan. Roteiro: Deborah Davis/Tony McNamara. Diretor: Yorgos Lanthimos. Elenco: Olívia Colman, Emma Stone, Nicholas Hoult, Joe Alwyn, James Smith.(*) Filme candidato a oito Oscar: Melhor filme, diretor, atriz: Olivia Colman, atriz coadjuvante: Emma Stone/Rachel Weisz, roteiro original. edição, edição de Arte, fotografia, figurino

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