“Cafarnaum”: Maus costumes

A infância perdida, a decadência dos costumes e a crise dos refugiados no Líbano atual são os temas deste drama da cineasta libanesa Nadine Labaki.

O grande desafio do diretor de cinema é encenar a realidade diante de sua câmera para o espectador absorvê-la em sua inteireza. Inclusive dotá-la de tal veracidade que a ficção lhe escape. Ainda mais se ele em seu cotidiano conviver com situações idênticas às vistas na tela. A surpresa virá das ligações feitas pelo roteiro com as estruturas de classe e como elas são organizadas para manter o poder do capital. E por mais simples que seja a história, ela

desvendará o que, na verdade, provocou a miséria e o sofrimento dos explorados e oprimidos. É como faz a libanesa Nadine Labaki (18/02/1974), nesta sua premiada obra-prima “Cafarnaum”.

Os personagens se movem numa Beirute povoada de homens e mulheres, idosos/as, jovens e crianças em busca da sobrevivência. Em meio a ruas e becos e vielas ladeadas por barracas de ambulantes, em expressa referência à bíblica Cafarnaum, onde “Cristo pregava e fazia milagres”, eles trançam em incessante vai-e-vem. É como se fossem punidos pela danação, espécie de praga da qual não se livram. O sentido desta configuração advém da época em que vivem, ditada pela exploração dos conglomerados capitalistas e a crise sem fim dos refugiados.

Para dar conta da complexidade deste drama sobre família, decadência de costumes e crise dos refugiados, Labaki se vale da técnica de identificar os personagens na multidão e lhes dar particularidade. Ela e seus co-roteiristas Jihad Hoyeily e Michele Keserwany centram a narrativa no garoto Zain (Zain Alrafeea), de 12 anos. Ele é o esteio da família, pois duas de suas irmãs são pequenas e só Sahar (Cedra Izeam), de 11anos, o ajuda. O Pai, alcóolatra, vive às turras com ele a e Mãe. No entanto, dados aos costumes libaneses lhes prestam obediência, pois é o chefe da família.

Al Alrafeea vende a filha Sahar ao agiota Asaad

Enquanto Zain, Sahar e a Mãe se esforçam para suprir a casa, ele se impõe, exigindo deles o respeito às suas decisões. Dentre elas a de prometer Sahar, cujo corpo começa a se moldar, ao agiota Asaad como forma de ganhar dinheiro. Com esta abordagem, Labaki expõe frontalmente a fragilidade do patriarcado e dos costumes milenares. Em duas chocantes sequências, ela atesta o quanto eles já não preservam a unidade da família de Alrafeea. Na primeira quando a Mãe lhe informa a intenção do filho em estudar. E ele logo se nega a aceitar tal aspiração e Zain então se insurge.

Sem dúvida “sua falta de visão” leva-o a refutar esta importante decisão. A questão, porém, é outra. Ela não partiu dele advém dos costumes que garantem sua autoridade perante a família. Ainda mais por envolver a Mulher que lhe deve total obediência, não devendo apoiar o filho, como ela o faz. Há um conflito e o desentendimento aflora. Contudo, ele segue os ditames de uma sociedade milenar e piramidal onde as camadas dirigentes não permitem os segmentos subalternos ascenderem aos degraus superiores. Assim, o Pai se norteia por sua posição de classe: a dos deserdados deve permanecer nos baixos estratos sociais.

Não à toa vão servir de mão de obra barata a seus exploradores. Não diferente, é claro, do que prega o ministro da Educação do Governo Bolsonaro, o colombiano Ricardo Vélez Rodriguez. Ele defende que apenas os filhos da elite devam ascender à Universidade. Mira-se então no que de mais retrógrado, medieval e ditatorial existe como a estrutura de castas. Diante da oposição do pai percebe-se não ser Zain um garoto qualquer. Ele vê no estudo uma saída por viver nas ruas, onde as diferenças de classe são expostas. Mas Alrafeea termina por frustrá-lo.

Sahar diz ao pai que não quer ser vendida

Vê-se, deste modo as construções dramáticas de Labaki. Elas não se prendem apenas à crua narrativa, são dotadas de sentido para além do que sua imóvel câmera registra. Usa pouca luz para elevar a tensão e põe o pai sentado, forçando a Mãe e Zain a vê-lo como superior. Mesmo recurso utiliza, ainda com mais contundência, na impactante, tensa e chocante sequência na qual Zain se insurge abertamente contra o Pai. Ele acabara de flagrar Sahar de cabelos soltos, vestido novo e, para seu horror, usando baton vermelho. Diz em alto tom: “Ela é uma criança!” O pai apenas diz: “Está feito”.

Labaki ao construir esta sequência expõe suas ideias feministas e não só isto, pois se trata de uma criança. Denuncia o costume medieval de o pai oferecer a filha em troca de recompensa. Sahar também reage: ”Eu não quero ir”. Logo presente o resultado de sua relação forçada com o agiota Saad. Ignora ainda a validade da transação da qual é o produto de troca monetária. Zain, a partir daí, não vê no pai, nem na mãe autoridade para lhe ditar qualquer norma, pois foram capazes de vender sua irmã. Labaki não se delonga em suspense, o horror do patriarcado fala por si.

O espectador vê-se, desta forma, diante de uma narrativa a mesclar ficção e realidade. “Cafarnaum” não é um filme qualquer, desses que se sai do cinema com a impressão de ter assistido a um bom drama, mas sem lhe provocar oportunas reflexões para confrontá-las com a realidade. Labaki sabe encenar de forma concisa, porém suas construções dramáticas não são vazias ou para ligar uma sequência à outra. Os personagens se tornam mais vivos à medida que a narrativa evolui. Difícil esquecer o choro de Sahar em suas vestes de mulher-oferenda diante das irmãs, de Zain e, notadamente, dos pais, pois ainda é uma criança e quase nada viveu.

Filme é painel sobre a urgência da resistência

Toda a narrativa é estruturada sob o ponto de vista de Zain. Através dele a caminhar pelas atravancadas ruas de Beirute, Labaki faz a transição da primeira para segunda parte do filme. Com eficiência e economia de meios leva-o a desvendar obscuras transações em barracas, pequenas salas e corredores. É o mundo dos agiotas, dos cambistas e dos “coiotes libaneses” a prometer um lugar no Paraíso aos deserdados. Isto nunca chega. Nem assim eles desistem de cruzar os mares numa frágil balsa em direção à Europa. E logo Zain estará enfurnado neste meio, onde muitos são refugiados que vivem clandestinos em Beirute à espera do embarque.
A capacidade de Labaki transitar de um tema ao outro transforma a vida de Zain uma epopeia e seu filme num painel sobre a urgência da resistência ao extremismo ultradireitista, O fascismo com suas diferentes faces é, sem dúvida, um retorno às trevas. Ela, indiretamente, toca neste tema. O garoto Zain torna-se um sem-teto e sem família, por opor-se às imposições do Pai. Esta construção dramática permite a Labaki abordar o tema crucial dos refugiados por meio da africana Rahil (Yordanos Shifera), que vive com o filho num cômodo perto do parque de diversões em Beirute.

Rail é a jovem mãe solteira, obrigada a deixar seu bebê Yonas (Treasure Bakole) com a vizinha ou sozinho para trabalhar. Refugiada africana, ela sonha em obter um visto para permanecer em Beirute e daí chegar à Europa. Mas depende do “coiote” a lhe garantir o passaporte. Diferente de Zain que se esmera para sobreviver e obter um canto mesmo em sua cidade natal. Ele se tornou um sem teto e sem família, pois a simples lembrança do que Asaad poderia fazer à Sahar aumenta seu horror ao pai. Para sobreviver vive de pedir e surrupiar o que pode nas feiras.

Yonas deixa Zain louco ao se perder numa rua

Uma vez mais, Labaki demonstra o quanto lapidou sua técnica de direção e roteiro. Ao unir Zain a Rahil e depois Zain a Yonas humaniza os personagens e os tornam mais realistas. O garotinho é esperto e os dois formam uma dupla digna de grandes filmes. Orientá-los a interpretar sequências inteiras, mesmo que o ângulo de câmera mude, é árduo e difícil. Ela o faz como se obtivesse deles tudo na primeira tomada. A sequência em que Yonas se perde na cidade e deixa Zain louco é hilariante e ao mesmo tempo de alto suspense. Principalmente porque ambos nada tinham para se alimentar e a fome costuma ser cruel e eles comem só quando dá.

Outro criativo recurso usado por Labaki é conectar a trama central às subtramas através da narrativa linear feita em flashes-backs. Forma de dar conta das consequências das atitudes retrógadas de Alrafeea, mas também para separar as três partes da história. Isto porque os fios dramáticos não devem ficar soltos e, assim, ela faz a ligação entre eles e o tema central. Inclusive o que acontece a Sahar, Rail e Zain. Eles terminam se enredando numa teia da qual não conseguem se livrar, pois se tornaram vítimas de suas próprias esperanças. Nem Yonas consegue escapar.

Deste modo é no tribunal diante do juiz que as falácias do patriarcado e da estrutura de castas esboroam. Mais ainda os costumes que dão ao pai o direito de barganhar e ser indenizado pela cessão da filha ao pretendente-comprador. Mas este também não deve usá-la como objeto sexual e muito menos “engravidá-la”. Mesmo porque, sendo ela ainda criança, pode não ter se desenvolvido o bastante para suportar tal sacrifício. Daí, as respostas às indagações de Zain surgem de forma contundente, quando indagado pelo juiz sobre o que pretendia com suas violentas atitudes. “Quero que meus pais sejam proibidos de ter filhos”.

Filme da Labaki é candidato ao Oscar de Filme Estrangeiro

O modo como Labaki encadeia sua narrativa termina por torná-la crua e os personagens tão vivos que parecem brotar da brutalidade cotidiana. Zain funciona como a consciência da crueldade dos adultos. Embora não saiba fazer as ligações conscientemente, ele consegue divisar as fraturas não só do sistema, como dos que as configuram. Seu modo de reagir ao que ocorreu a Sahar é de quem teve sensibilidade para perceber o quanto era cruel submetê-la ao que um homem amadurecido pode fazer a uma criança. E mesmo que ela seja mulher não está preparada fisicamente para lhe dar o prazer que ele busca numa adulta. Ainda que a pedofilia e o estupro muitas vezes desmintam tais assertivas, eles são pura crueldade e devem ser punidas como tal.

A questão pode parecer moral e dizer respeito aos costumes na Índia, no Oriente Médio e em países africanos. Ainda assim manter as camadas marginalizadas em casulos e caixas medievais não impede que elas se revoltem e criem seus próprios costumes. Labaki nada remete a esta questão neste seu “Cafarnaum”. Nem precisa, ao longo dos 126 minutos da narrativa, eles se insurgem às imposições dos que os oprimem, ainda que sejam punidos. Trata-se de pôr uma lápide no que impede a vida continuar livre dos costumes que impedem a libertação dos oprimidos.

Não à toa, Labaki recebeu o “Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes de 2018” e foi indicada ao “Oscar de Filme Estrangeiro de 2019”. O filme causa tanto impacto que um espectador ao deixar o cinema lava o rosto e ao tomar seu rumo após a sessão da tarde de 22 de janeiro último exclama: “É um filme duro para se ver!” Não foi apenas uma constatação, mas um esplêndido elogio a uma obra que deveria ser vista pela massa. No entanto há muitos super-heróis lutando contra fictícios vilões. E eles rendem milhões de dólares e pouca reflexão. Embora tenham seu espaço na construção do imaginário, talvez um deles encontre o vilão certo a abater. E todos os oprimidos se unam a ele para libertar a si mesmos.

Cafarnaum. (Capharnaüm). Drama familiar. Líbano/França.2018. 126 minutos. Trilha sonora: Khaled Mouzanar. Trilha sonora: Khaled Mouzanar. Edição: Konstantin Laure Gardettre. Fotografia: Christopher Aoun. Roteiro: Nadine Labak, Jihad Hoyeily, Michele Keserwany. Direção: Nadine Labak. Elenco: Zain Alrafeea, Nadine Labaki, Yordanos Shifera, Cedra Izeam, Treasure Bankole.

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