“Green book – O Guia” Armadilhas do preconceito racial

Cineasta estadunidense Peter Farrelly usa humor e diferenças raciais para tratar da amizade entre músico afro e guarda-costas italiano nos anos 60

Em drama racial em que une o famoso jazzista afrodescendente Donald Shirley (1927/2013) e o mafioso racista ítalo-estadunidense Tony Lip numa turnê, o cineasta estadunidense Peter Farrelly (17/12/1956) trata o racismo como um vírus. Cada deles, à sua maneira, vai aprendendo a lidar com policiais e burgueses racistas que estranham Shirley (Mahershala Ali) estar no banco de trás e Lip (Viggo Mortensen) ao volante do automóvel de luxo. Fato inusitado para os caucasianos nos anos 50 e 60, quando o contrário era o imposto aos afros dos EUA, e não só lá.

Em princípio Farrelly e seus co-roteiristas Nick Vallelonga e Brian Currie dotam sua narrativa de dualidades em que opõem o aristocrático e sofisticado pianista e compositor de jazz ao motorista acostumado a outro tipo de trabalho. Formando pela Academia Musical de Leningrado e com doutorado em Psicologia nos EUA, Shirley é recatado, de poucas palavras e ciente de sua formação. Daí ser tratado como doutor Donald Shirley. Já Lip é respeitado por dar surras em quem afronta seu chefe mafioso, dono de um clube ao lado do mítico Carnegie Hall (1891), em Nova York. Mas a turnê do Trio Don Shirley termina por inclui-lo numa inusitada parceria.

Toda a primeira parte do filme é estruturada como a luta pelo poder no luxuoso automóvel. Lip logo esquece ter sido contratado com múltiplas funções durante a turnê ao sul dos EUA. E Shirley se surpreende ao vê-lo se aboletar no banco da frente quando esperava que assumisse seu papel de faz-tudo. Inclusive pondo sua bagagem no porta-malas e atendendo seus pedidos e orientações. Lip, porém, não se apressa em fazê-lo. Entende estar ali para dirigir, protegê-lo e exigir bom tratamento nos hotéis e, sobretudo, o piano Steinway estar afinado para o show como contratado.

Shirley e Lip digladiam para impor sua posição

Durante a viagem eles se digladiam sobre a música que Lip escuta enquanto dirige. Shirley logo revela sua preferência pela música clássica, não pelo soul ou o rock. Mas quando é indagado se gosta de Little Richard (05/12/1932) e Chubby Cheker (03/10/1941), ele revela que não os conhece. E tampouco gosta de Aretha Franklin (25/03/1942), a diva do jazz. “Ouvi, mas não gostei”, responde secamente. “Mas são os que o povo gosta”, retruca Lip. Assim, o jazzista passa a imagem de “elitista”, centrado nos clássicos como o alemão Ludwig van Beethoven (1770/1827) e o polonês Frédéric Chopin (1810/1849). O que desagrada Lip.

Assim cada um tenta impor sua posição e Shirley não hesita. É a força da autoridade, da fama e do dinheiro. E mesmo não admitindo sua subalternidade como contratado, Lip vai, aos poucos, entendendo qual seu verdadeiro papel na turnê. Isto porque, embora haja o Don Shirley Trio, os outros dois jazzistas se antecipam a eles em carro separado. E os dois terão de se entender se quiserem chegar aos locais dos shows menos estressados. Há, no entanto, algo submerso nas rusgas e confrontos entre eles, ditados pelo racismo e a visão de superioridade do caucasiano Lip. Resta a Shirley revertê-la e ir se impondo e orientando e exigindo.

Daí usa de sua formação cultural e experiência de vida para ir aplainando sua relação com o motorista contratado por ele para ser seu faz-tudo. Inclusive ser guarda-costas e assistente em seus contatos com os burgueses sulistas que o contrataram. O que embute seu temor de ser ludibriado e discriminado pelos racistas do sul dos Estados Unidos. Mas se mostra flexível e atento aos contatos mantidos por Lip com sua companheira Dolores (Linda Candellini). E lhe ensina a ser flexível, amoroso, cheio de belas frases. O que aplaina o relacionamento deles.

Shirley se vê acuado pelo racismo sulista

Com estas eficientes construções dramáticas, Farrelly apenas sugere o que está subentendido pelo espectador. Momento algum, tanto Shirley quanto Lip verbalizam o que pensam ou o se insurgem raivosamente. A autoridade de um vem da fama, a de outro é uma falácia, pois se baseia supostamente em sua superioridade racial. Mesmo quando Shirley exige que Lip devolva a pedra que pegou numa de suas paradas na rodovia, sua insistência é ditada pelo medo de ser acusado de tê-lo feito. É a visão introjetada do excluído ao temer ser acusado de ter roubado algo simplesmente porque sua pele negra o denuncia-o. Mas Lip vê diferente.

Estes símbolos, permitem Farrelly explicitar a difícil situação de um afro-estadunidense, mesmo na posição de Shirley. Ainda mais quando Lip é obrigado a parar o carro sob chuva pelos policiais rodoviários e eles se indignam com a inversão do papel. E pela primeira vez durante a viagem que o ítalo-estadunidense entende a posição do jazzista. Sua reação é de quem o vê como alguém acuado pelo racismo. E de fato ele estava, ainda mais ao ver a reação de Lip, diante dos policiais, tendo lhes feito agrados e terminando por usar da violência, uma de suas especialidades.

Com estas estruturações, Peter Farrelly, acostumado a fazer dupla com seu irmão Bobby Farrelly (1958), como na comédia besteirol “Quem Vai Ficar com Mary (1998)”, não perde a veia cômica. Lip vai, aos poucos, devido à compreensão de seu papel na turnê, vendo a necessidade de quebrar a barreira entre eles. É hilariante a sequência em que mesmo dirigindo pela rodovia come tranquilamente a coxa de frango assado. Em dado momento, insiste em fazer Shirley a experimentar, por ser este o petisco mais apreciado pelos afros nos EUA. E ele apenas pega-a receoso de sujar a roupa e as mãos. Mas diante de pressão, acaba por experimentar, cai no riso e na gozação com seu agora parceiro de viagem.

Racismo é herança da derrota dos sulistas

Esta mescla de drama e humor torna a narrativa amena por algumas sequências, porquanto aqueles eram os anos de recrudescimento dos conflitos raciais nos EUA. Liderados por Malcon X (1925/1965) e Martin Luther King (1929/1968), os movimentos contra o racismo e pelas liberdades civis tinham Nova York e os estados do Sul como centros de irradiação. Havia, contudo, grande resistência das lideranças brancas e de seus liderados dos estados por onde Shirley se apresentava. E desta forma foi discriminado em cada parada na estrada e nos hotéis onde se apresentava em luxuosos auditórios lotados de ricos e convidados sulinos.

As contraposições entre Shirley e Lip são reflexos de suas posições étnicas e sociais. Mas por serem diferentes e dependerem um do outro terminam sendo obrigados a se entender. E deste modo se verem como iguais. Já em “Conduzindo Miss Daisy (1989) as relações entre a idosa judia caucasiana Daisy Werthar (Jessica Tandy – 1909/1994) e seu motorista Hoke Colburn (Morgan Freeman – 01/06/1937) são de outra natureza. E seu diretor, o cineasta australiano Bruce Beresford (1940), soube expor, a partir de sua adaptação da peça homônima do dramaturgo Alfred Uhry (1936), como eles encontravam seus pontos de identidade.

Neste “Green Book – O Guia” a relação é mais complexa, por derivar de construções racistas, herdadas da época da escravidão. A guerra da Secessão nos EUA (12/04/1861 a 09/04/1865) deixou o Sul que buscava se separar do Norte do país sem a mão de obra escrava. Os latifundiários, os traficantes de escravos e os comerciantes tiveram de arcar não só com os custos da guerra-civil como os custos da nova mão-de- obra. O separatismo, como Brexit na Inglaterra, acabou para se tornar um fardo.

Jazzista é proibido de se hospedar em hotéis

A reação à derrota veio através da criação da Ku klux Klan, em 24/12/1865. O foco dos ataques era tanto o Norte industrializado, quanto a perseguição aos africanos e seus descendentes e quem os apoiassem. Daí o racismo como manifestação da suposta “superioridade branca” e a defesa de sua pureza, diante da miscigenação. Deste modo, Shirley ao ser discriminado recebe toda carga desse curtido ódio nos estados sulistas onde ele e seus parceiros se apresentavam, não como iguais, mas como se inferiores fossem. O que lhe rendia dólares também trazia dor de cabeça.

Mesmo se aproveitando de sua fama e da alta qualidade de seus shows, os líderes caucasianos o proibiam de hospedar-se no hotel onde se apresentava. E não podia ir ao banheiro deles, fazer suas refeições e dividir a mesa com seus parceiros do trio e seu assistente Lip no mesmo restaurante que eles. Nem podia curtir um momento íntimo sem o risco de ser preso em flagrante. Farrelly não usa elipses ou monta as sequências sem deixar seu sentido claro para o espectador. Sua sutileza está em criar o clima opressivo, de forma a mostrar o quanto o recato de Shirley era motivado pela perseguição dos racistas a cercá-lo por toda a turnê.

Isto fica claro numa das únicas vezes que se expôs a Lip, depois de este tê-lo livrado da cadeia no alabama. Diz em calmo tom não ser entendido pelos irmãos e as pessoas que o cercam. É, assim, duplamente discriminado. A câmera de Farrelly e de seu diretor de fotografia Sean Porter não se move, registra em cada sequência e cena o que está sendo encenado. Inexistem movimentos de câmara, ela nunca não se deixa notar. Identifica-se, deste modo, o estilo direto e objetivo de ambos trabalhar. É o cinema hollywoodiano em sua linha de produção e pré-montagem.

Farrelly cria estilo de “cinema seco”

Pode-se até chamar seu estilo de “cinema seco”, dotado de impessoalidade. O que conta aqui é a história real, a narrativa e a direção de atores feita por Farrely. O resultado é o Globo de Ouro de 2019 para Mahershala Ali e sua indicação ao Oscar deste ano de coadjuvante e a de Viggo Mortensen como ator principal. E Farrely tal qual um artesão articula

o exposto ao espectador de forma a torná-lo seu cumplice. E desta maneira, após ser escorraçado de vários hotéis, usar banheiro sujos, dormir em quartos estreitos, Shirley termina por se cansar. Mesmo porque, acabara de ser proibido e desrespeitado mais uma vez pelos racistas.

Seu fiel escudeiro Lip e seus parceiros do trio presenciam sua metamorfose. Seu modo de reagir não incluía uma insurreição, mas tão rejeitar o que lhe era imposto pela elite racista do Sul dos EUA. Em suma, uma mutação ditada pelo preconceito racial ao lhe impor a exclusão de seus direitos de cidadão livre. Mas não só isto. Também incluía não aceitar ser usado como famoso pianista e compositor de jazz pelos influentes racistas que se deleitavam com seu show perante seu círculo social. E sem qualquer rompante, ele transforma a humilhação numa recomposição de sua alto-estima com o apoio de Lip e de seus parceiros no trio de jazz.

Nestas sequências nas quais Farrelly funde a emoção e a reflexão, Shirley e Lip não disputam mais espaço ou se entregam a desnecessárias rusgas. Eles formam agora um quarteto. Aprenderam um como outro ser importante dividir, ouvir e trabalhar em conjunto. Isto fica claro quando Lip insiste que o piano posto no palco para a apresentação de Shirley não era um Steinway. E ele não se apresentaria caso não fosse providenciado o que estava no contrato. É catártica a sequência desta posição. Atesta que Lip entendeu a necessidade do jazzista e o quanto sua arte seria prejudicada caso o instrumento que o completava não estivesse no palco.

Turnê pelo sul dos EUA muda visão de Shirley

Ainda assim, quando Shirley toca num bar à beira da estrada, num revival às suas raízes, Farrelly não deixa de tecer uma reconciliação dele com seus irmãos afros-estadunidenses. Mas o que pesa mais é sua decisão de não se isolar. Ou seja, fugir do outro. Suas experiências com Lip e os amargos dias de turnê no sul do país lhe ensinaram o valor da convivência. Trata-se mais de se ver no outro, sem menosprezar a capacidade de ele o completar, como Lip o fez com ele. Mas sem deixar de reconhecer que seu universo vai além de sua suíte de hotel ou de seu big apartamento.

Green book – O Guia. (Green Book). Drama. EUA. 2019. 130 minutos. Música: Kris Boers. Edição: Patrick J. J. Donvisto. Fotografia: Sean Porter. Roteiro: Peter Farrelly, Nick Vallelonga e Brian Currie. Direção: Peter Farrelly. Elenco: Viggo Mortensen, Mahershala Ali, Linda Cardellini. Obs: Candidato aos Oscar de Melhor Filme; ator (Viggo Mortensen); ator-coadjuvante (Mahershala Ali; roteiro original e edição.

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