“Assunto de família” – Golpes nada inocentes

Sem mudar seu recorrente foco no universo familiar, cineasta japonês Hirokazu Kore-eda desconstrói a imagem de convivência e harmonia.

Há um jogo de aparências neste “Assunto de Família”. As relações entre filhas, genro e netos da aposentada Yaneyama, em princípio, parecem harmoniosas. Vê-los juntos mesmo depois da sequência inicial, estruturada pelo cineasta japonês Hirokazu Kore-eda (06/06/1962) como um “inesperado” roubo de pacote de biscoito num supermercado pelo garoto Shota (Sosuke Ikematsu), dá ideia de “mera brincadeira”. Eles riem e comem sem traço algum de medo ou arrependimento. Estas impressões, no entanto, serão desconstruídas ao longo da narrativa de 101 minutos.

Diretor/roteirista, Kore-eda (Pais e Filhos, 2013) quer atrair o espectador para outra imagem de uma metrópole japonesa com seus habitantes transitando sobre placas tectônicas. Nem tudo na família gira em torno de Yaneyama. Ela é tão só o suposto equilíbrio da harmonia. O centro real de núcleo é o alegre e matreiro, Osamu Hatsue (Lily Franky), a oscilar entre o emprego numa fábrica e num prédio em construção, tendo de valer-se de expedientes para sobreviver. O mesmo ocorre com as duas moças, Nobuyo (Sankura Andô) e Hatsue Shibata (Kiri Kiki), que se viram como garotas de programas e vão a butiques se divertir e nada comprar.

São importantes detalhes estruturados para configurar os personagens, seus percalços e ansiedades. A casa de alvenaria de único cômodo, onde todos se acomodam, esconde a realidade enfrentada a seu modo por quem nela vive. Moram nos fundos dos altos prédios, percorrem abarrotadas ruas e avenidas iluminadas pelas placas hightech das lojas de grifes e de bares e restaurantes de luxo. Contrastes aparentemente feitos por Kore-eda para reforçar as desigualdades de classes em seu país. Sua câmara flagra Osamu transitando por becos sem de deter por onde circula.

Netos só querem dinheiro da idosa

Kore-eda nada remete ao submundo do crime ou da Yakuza, a máfia japonesa, ou de outro tipo de gang. Encadeia as sequências suavemente, às vezes com fino humor, caso da conversa de Osamu com Nobuyo sobre o dinheiro guardado por Yaneyama. Na verdade, eles temem que a avó morra e nada lhes deixe, pois dependem dela para viver. Ficam ao seu redor, colhendo sorrisos e palavras que os deixem tranquilos sem deixar transparecer o que, na verdade, tramam. Nada dizem, inclusive, a Hatsue, tendente mais a roupas de grife e a busca de almeajado luxo.

Este é, enfim, o tema central deste “Assunto de Família (Palma de Ouro do Festival de Cannes 2018 e candidato ao Oscar de Filme Estrangeiro de 2019). Apenas ele justificaria a narrativa simples, que flui sem deixar o espectador captar para onde Kore-eda o conduz. A introdução da subtrama policial não apenas a reforça, como lhe dá sentido. Osamu é o compulsivo que esconde suas tramoias, tendo Shota como parceiro. Não só ele, ainda encontra meios para fazer Yuni (Mivo Sasaki), garotinha ainda, integrar a “parceria”. E forma-se deste modo o trio a engrossar o grupo de moradores no cômodo único da idosa Yaneyama.

Esta duplicidade de situações muda o foco dramático e narrativo, pois o que matiza a forçada dependência dos supostos netos é eles se valerem da bondosa avó. Com as duas crianças, o número de dependentes aumenta, mas não se trata da mesma sustentação dramática. Introduz-se agora a temática do sequestro e da exploração de menores. O filme, antes familiar, se transformar num drama policial. Todo enfoque se concentra em como Osamu conseguiu “convencer” a garota a viver com ele e os seus. Não é mais ele a orientar, cabe agora ao garoto Shota fazê-lo. Não é gratuíto.

Os laços se desfazem

Outros diretores/roteiristas deixariam esta estruturação narrativa cair no clichê. E, além disso, enfraqueceria o tema central. Sem perder a fluidez, a leveza e o enfoque principal, Kore-eda mescla-o à subtrama policial. E desta forma dá conta do que fazia o trio Osamu, Nobuyo e Hatsue se interessar tanto pelos vencimentos de Yaneyama. E assim o espectador se vê diante de uma relação amorosa, erótica, entre quem ele jamais imaginou. Por drásticas consequências os laços e as tramoias se desfazem. Mais ainda quando a subtrama envolve as duas crianças e ganha sentido.

Assim, Kore-eda acostumado a dramas nos quais os ambientes fechados ditam o clima (Ninguém pode saber, 2004), se mostra capaz de construir sequências dotadas de suspense. É a rua, não o cômodo único onde vivem Osamu a Nobuyo, que expõe a aflição, o medo e a fuga de Osamo e Shota pelas ruas e avenidas. Então, o tema central e a subtrama se fecham numa só narrativa, dividida em dois fios dramáticos. Cada um termina por revelar o que motivava o outro e se fecham como um só tema central, demonstrando a capacidade de Kore-eda em fundir suas tramas.

O mais interessante nesta abordagem é vê-lo não recorrer à violência, aos recursos narrativos banais e aos clichês dos filmes policiais. Mesmo na eletrizante sequência da perseguição, não se ouve tiros, sirenes, vans a derrapar pelo asfalto ou gritos de policiais ensandecidos. É como numa situação-limite todos se contivessem e só interessasse pôr fim ao crime. Tudo se elucida de forma a demonstrar ser possível ser sutil e utilizar só elipses para manter a tensão e o espectador preso à cadeira.

Não há porque negligenciar a construção da sequência em que Shota espera o ônibus e Osamu o aguarda. Kore-eda alterna os planos, dando sentido não à perda de um parceiro, mas de um filho. Recorda os enquadramentos do mestre Seiun Suzuki (1923/2017), cujos precisos enquadramentos tornam seu “Tóquio Violenta (1966)” um primor de concisão e sentido. Enquanto o ônibus com Shota se distância a câmera nele se fixa e o que era presença se transforma em memória viva. Palavras, acenos e lágrimas não diriam tanto ao espectador quanto estas imagens.

Assunto de família. (Manbiki kasoku) Drama. 101 minutos. Japão. Roteiro/direção/ediçao: Hirokazu Kore-eda. Trilha sonora: Haruomi Hosomo. Fotografia: Ryûto Kondô. Elenco: Lyli Franky, Kiki Kirin, Sakura Andô, Sosuke Ikematsu, Mivu Ssaki.

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