“A Esposa” – Talentos reprimidos

Em filme sobre conflituosa relação de casal de escritores, cineasta sueco Björn Runge expõe o papel da mulher e como ela reprime seu talento.

É no desfecho deste “A Esposa” que o cineasta sueco Björn Runge (21/06/1961) desfaz a impressão de ter construído uma trama, a partir do romance homônimo da escritora estadunidense Meg Wolitzer (28/05/1959), apenas sobre os conflitos do casal de escritores Joan (Glenn Close) e Joe Castleman (Jonathan Price). E assim reforça o que desde o início intriga o espectador. Em meio aos elogios, o afeto e o amor havia algo submerso que desmontaria a estruturação da narrativa. É quando a trama funciona como se brotasse de uma novela eivada de suspense.

Manter este fio dramático num drama sustentado por dois fortes personagens exige uma linha narrativa que não deixe o espectador perceber de que se trata. Está claro desde o início que o trio Runge/ Wolitzer/Anderson a roteirista optou por construir o tema central no papel da mulher que, ao reprimir seu talento, tornou-se vítima de sua própria escolha. Esta impressão emerge da subtrama que expõe a relação amorosa do casal Joe/Joan desde a juventude. Ele já como professor universitário (Harry Lloyd), ela como jovem secretaria (Anna Starke) que ao trabalhar com ele revela seu talento ao mostrar-lhe seu primeiro romance.

Não bastasse se surpreender, Joe parte para o ataque quando ela ao ler o romance que ele escrevia aponta várias falhas nele. É o suficiente para entrarem numa rusga que não fosse a paixão os afastariam, tornando-os ferozes inimigos. A habilidade do trio Runge/Wolitzer/Anderson está em demonstrar o quanto a mulher se submete ao ficar em segundo plano. A partir daí, Joan é elogiada por Joe nas recepções, noites de autógrafos e jantares, como se dependesse dela para escrever seus livros. Torna-se, deste modo, uma mulher silenciosa, dada a sorrisos e frases complacentes.

Joan reage com retraído sorriso

Às vezes se torna, inclusive, decorativa, porquanto não se excede. E a exemplo de mulheres que abandonam suas vitoriosas carreiras para viver em segundo plano, Joan quando muito intercede com retraído sorriso e estudada discrição. A grande atriz estadunidense Glenn Close (19/03/1947) a constrói frágil, tendente a disfarçar o mal-estar com olhares mortiços. Diferente da ferina e inescrupulosa Marquesa de

Merteuil, de “Ligações Perigosas (1988)”, do cineasta inglês Stephen Frears (1941), que adorava intrigas. No filme, uma adaptação da peça homônima do inglês Christopher Hampton (26/01/1946), baseada no romance do francês Chordelos de Laclos (1741/1803), ela se supera.

Sua Joan se excede ao cuidar de Joe como de um bebê, ao alertá-lo para o remédio, não fumar, sua agenda. Não deixa de ser uma crítica aos excessos de dependência do homem, pois nada faz se ela não estiver por perto. Ele, às vezes, se mostra capaz de ser amoroso, mesmo assim para satisfazer seu desejo. Os filhos vivem neste clima de convivência compartilhada, mas penosa, como se vê na sequência em que o jovem Max (Max Irons) se irrita com o modo superficial de ele avaliar seu primeiro romance. Acha ter sido negligenciado, nem levado à sério, ao lhe dizer que uma das passagens do livro “não passa de um clichê”. O que o enerva.

Este entrevero familiar no apartamento de alto luxo em Connecticut, um dos menores estados dos EUA, assemelha-se ao do patriarca impondo sua visão à prole para mantê-la sob controle. O que, no entanto, permite a Joan interceder e se mostrar o ponto de equilíbrio entre os filhos e Joe. Tudo acertado, cada um se manifesta de modo a não chegar a contestá-lo. Por outro lado, a filha Susannh (Alix Wilton) em nada interfere. O clima que daí emerge é de uma família pequeno burguesa estabilizada. Tudo gira em torno da literatura do escritor de grande sucesso, já na terceira díade. .

Joan trata Joe como um bebê

Runge constrói estas situações na primeira parte dos 101 minutos do filme. Tudo transcorre como se não houvesse choques para além do já exposto. A esta altura, o espectador já delimitou os espaços dos personagens. E sabe, além disso, como cada um deles se encaixa na narrativa. Tudo decorre do desenrolar da trama e da escritura da roteirista estadunidense Jane Anderson (1954), centrada no livro de Wolitzer e na direção de Runge. E como ocorre neste tipo de construção dramática, a repentina informação de que Joe foi agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura interfere sobremaneira nos ânimos e no clima antes imperante.

Daí surge a desconstrução do que o espectador havia consolidado em sua mente sobre cada personagem e o papel deles na história. As eficientes imagens em grandes planos do sueco Ulf Brantàs (1969), diretor de fotografia, mostram Joe e Joan nas recepções cheias de amigos e convidados. Tudo que transcorria com a família em seu apartamento até o

anúncio do Prêmio Nobel se transfere para sofisticados e ricos ambientes, decorados sobriamente. Joe é agora uma celebridade. Sua existência se desenvolvia só em torno dos livros, mas agora é uma solicitada estrela.

A câmera da dupla Runge/Brantàs se movimenta pelos amplos salões do palácio real, flagra atentos indicados ao Nobel em várias categorias, se detém em detalhes do mobiliário, no local da entrega dos prêmios. É como se a câmera de Giuseppe Rotunno (19/03/1923), orientado pelo cineasta Luchino Visconti (1906/1976) em o “O Leopardo 1963)”, baseado na obra homônima Giuseppe di Lampedusa (1896/1957), executasse precisos movimentos para traduzir a grandeza, a riqueza do espaço e a importância de ele ser um dos premiados. Joe é um dos deslumbrados, embora se mostre reticente.

Joe recebe trato de celebridade

Contudo nada muda para Joan, tem de cuidar ainda mais de Joe e fazê-lo cumprir horários e protocolos e rituais e cerimoniais em palácios na gelada Estocolmo. Uma forma de o trio Wolitzer, Anderson e Runge introduzir o espectador no universo do Nobel. Joe recebe as honras de estrela, é hospedado em hotel cinco estrelas, sob os cuidados de secretaria particular sueca, e transita pela metrópole sueca em limusine. Joan torna-se mera turista com seu programa de restaurantes e bares. E só o acompanha quando é permitido pelos organizadores do Nobel. Deste modo vê-se livre para descobrir os recantos da histórica capital sueca.

Toda esta opulência força-o atrair Joan para o fato pelos dois não revelados. A sintonia entre eles até ali mantida com os percalços de sempre, não deixa o espectador antever de que se trata. Ela não se mostra receptiva ao que ele lhe propõe, como forma de não a deixar fora da cerimônia no Palácio Real. O faz como reconhecimento de seu papel em sua vida. Ela prefere continuar a circular pela Estocolmo tomada pela neve, andar pelas ruas e sentir-se livre para fugir ao peso do que a aflige. O trio Wolitzer, Anderson e Runge, porém, não antecipa o que a preocupa.

Nestas andanças, Joan termina por encontrar o fator a desequilibrar sua relação duramente construída por ela e Joe. Chega configurado no irrequieto biografo Nathaniel (Christian Slater) com incomodas perguntas a levantar suspeitas. O modo como ela responde às suas inquirições mostra uma inusitada postura que, se não o desarma, pelo menos evita que avance para além do admissível. É uma sequência na qual ela se esquiva das

armadilhas por ele montadas. A partir daí eles voltam a se digladiar, quando ela deveria estar centrada em Joe e na entrega do Nobel.

Intromissões de Nathaniel são incomodas e ferinas

As intromissões de Nathaniel alcançam tais dimensões que terminam por desencadear o não prenunciado pelo espectador. É uma trama de tal forma urdida da segunda para a terceira parte que Joe e Max acabam entrando numa discussão, não de filho e pai, mas de inimigos. Os motivos revolvem as relações familiares, pondo Joan como figura central do confronto, de forma a romper o tecido conjugal e amoroso, pois chegam a inimaginável gravidade. Entretanto, é inútil mesclar o papel da mulher às circunstâncias que motivaram o tácito acerto entre Joe e ela.

Esta é a grande contribuição de Runge para o drama que discute situações concretas nas relações conjugais e do papel da mulher na sociedade capitalista submetida à submissão e aos arranjos para evitar perder o amado ou garantir sua carreira numa empresa ou instituição. Não há juízo de valor ou moralismo de parte do trio Wolitzer, Anderson e Runge, apenas indicam possibilidades. O impacto no desfecho está justamente na forma como Runge constrói as situações num luxuoso quarto de hotel. O amplo espaço fica menor e terceiros surgem quando nada mais ser feito.

Não há porque ignorar o contraponto à Joan de Close (Globo de Ouro de Melhor Atriz 2019 neste filme) feito pelo ótimo ator galês Jonathan Price (01/06/1947). Oriundo do teatro como ela, eles dão sentido ao personagem pela entonação da voz e os movimentos sem qualquer histrionismo. O “confronto” entre eles aturde e deixa o espectador preso à poltrona, torcendo para o trinfo dela. Porém, nestas circunstâncias pender ou condenar um deles é tomar a posição de quem gostaria que Joan ou Joe tivesse dado outro rumo às suas vidas. Por certo ela deveria ter resistido às imposições dele, mas, na vida nem sempre é assim.

A Esposa (The Wife). Drama. Suécia/EUA/Reino Unido/Irlanda do Norte. Trilha sonora: Jocelyn Pook. Montagem: Lena Runge. Fotografia: Ulf Brantàs. Roteiro: Jane Anderson, baseado no livro homônimo de Meg Wolitzer. Direção: Björn Runge. Elenco: Glenn Close, Jonathan Price, Christian Slater, Harry Lloyd, Anna Starke, Max Irons, Alix Wilton.

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