“A pé ele não vai longe”

Brigando com seus fantasmas

Em drama adaptado da biografia do polêmico cartunista John Callahan, cineasta estadunidense Gus Van Sant põe o alcóolatra no AA e no divã

É como se participar do grupo de alcóolicos anônimos fosse uma etapa do tratamento do alcoolismo e o dependente tivesse de completá-lo no divã. Não se trata só do álcool, mas do que o motiva a continuar a beber. E ao longo tratamento o psicoterapeuta leva-o às profundezas de seu inconsciente e faz emergir o que é a causa de sua doentia inquietação. Neste “A pé ele não vai longe”, o cineasta estadunidense Gus Van Sant (24/07/1952) expõe estes conflitos interiores a partir de sua adaptação da biografia de seu compatriota, o cartunista John Callahan (1951/2010).

O Callahan (Joaquim Phoenix) a emergir nos 114 minutos de sua narrativa é um ser despedaçado, irritadiço, depressivo e de difícil convivência. Ainda mais por viver preso numa cadeira de rodas, que o obriga a depender dos estranhos nas ruas e nos elevadores, dos raros amigos e de Tim, seu cuidador de dependente físico. Sua parceira cotidiana é uma garrafa de Tequila, consumida compulsivamente. Tudo em seu apartamento, principalmente na sala, é mantido ao alcance de sua mão. Está sempre temendo uma queda, o atraso de seu cuidador e a falta de bebida.

Van Sant o constrói como excessivamente dependente. Tudo gira em função dele, devido às suas carências afetivas e a dificuldade para se locomover. Noutras situações chega a atrair a simpatia dos que estão à sua volta. Principalmente em seus instantes de ácido humor, quando está com Dexter (Jack Black), seu parceiro de bar e estripulias. O espectador fica, assim, diante de um complexo personagem esculpido aos poucos. Enfim, descobre estar assistindo a um filme de personagem a dominar toda a narrativa. Ainda mais com Phoenix em estado de graça desde a abertura do filme em que entra pelo palco e posta sua cadeira de rodas à frente do teatro lotado de fãs e curiosos. E ali ele é realmente o centro das atenções.

Green elucida o que motivou a dependência

Este é dos um dos três fios narrativos estruturados por Van Sant, como se Callahan contasse sua própria história. O segundo retrata sua participação no grupo dos Alcoólicos Anônimos (AA), coordenado pelo psicoterapeuta, ex-dependente, Donnie Green (Jonah Hill), e o terceiro elucida para o espectador o que desencadeia toda sua dependência alcóolica, com profundas implicações freudianas. Van Sant ao adaptar o livro homônimo e encadear o roteiro deu-lhe a complexidade e a clareza necessárias para o espectador não se perder numa teia cheia de entrelaçados fios dramáticos.

E, além disso, sua narrativa não tem leitmotiv (o que desencadeia a ação), é encadeada em entrechos num vai-e-vem circular. Desta forma, matiza o inferno em que Callahan vive ao cair da cadeira de rodas, atravessar a rua em meio aos veículos, beber Tequila escondido, mesmo garantindo a Green que não o faz. Sobrevive graças à assistência financeira do Estado, que lhe repassa mensalmente uma quantia, desde que se livre da dependência alcóolica. Mas chega a ser ameaçado pela assistente social, ao desconfiar que não o faz, dado que ele não tem outra renda. E se tivesse perderia a assistência, mesmo sendo insuficiente para ele viver.

Idêntico compromisso ele deve manter com o Centro de Alcóolicos Anônimos, onde Donnie cobra dele e dos demais a total abstinência. Esta deve perdurar por 90 dias pois indica seu esforço para se livrar da dependência. O que não acontece com ele, pois bebe desde a juventude em sua Portland natal, no estado do Oregon, nos Estados Unidos. A Aflição do espectador aumenta ao vê-lo gritar com Tim à menor desconfiança de faltar Tequila. E a fotografia em tons escuros de Christopher Blauvelt reforça o doentio clima e a agonia de ver a bebida fazê-lo sofrer.

Callahan diz à mãe: “Sou um aleijado”

Ao contrário do que acontece nas recuperações em que o orientador se prende mais às questões morais e à rejeição das famílias, dos colegas de trabalho, das escolas e dos amigos, Donnie se vale dos depoimentos, das orientações e exclusivamente da psicoterapia. E desta maneira busca diagnosticar o que provoca a dependência alcóolica. Em seguidas sequências, sem fazer qualquer ligação com o que ocorre a Callahan, Van Sant o põe numa projeção do subconsciente ao conversar com a mãe Maggie Linch e desabafar: Sou um aleijado”. Devagar, estimulado por Donnie, ele vai deslindando impressões e recalques e rancores, em busca de suas raízes e dos momentos em que se sentiu rejeitado pelos seus.

Nem mesmo Callahan já em seus 27 anos sabe identificar ou fazer a ligação entre seu vício e o que o leva à sua mãe, professora irlandesa, sobre a qual nada mais sabe. A conta gotas, Van Sant vai fazendo o espectador romper com seus próprios preconceitos. Não é a bebida em si, mas a forma como a sociedade se organiza que provoca as dependências. É a propaganda do cigarro, da bebida e dos preconceitos contra os dependentes químicos, alcóolicos e fumantes que os tornam compulsivos. E inclusive o extremado moralismo e o criacionismo criam as muletas e as falsas soluções para fugir ao que o oprime e não lhe permite outras saídas.

Ainda que Van Sant, a partir das memórias de Callahan, centre em Donnie a avalição do que realmente o tornou dependente, cabe ao espectador descobrir a ligação entre o alcoolismo dele e suas relações familiares. Ele é o jovem solitário que encontra na bebida a forma de compensar seus complexos de rejeição. Daí suas violentas reações, seu desassossego e a contínua irritação. Inclusive o que o levou ao trágico acidente que o prendeu à cadeira de rodas por toda a existência. Por si mesmo, ele jamais conseguiria chegar a esta difícil conclusão. É só rancor.

Cartuns de Callahan levam a protestos

Mas Callahan não é um jovem solitário insensível ou incapaz de amar. Mesmo com seu jeito grosseiro, desconfiado, é capaz de atrair a bela enfermeira Annu (Rooney Mara) mesmo se recuperando do choque numa cama do hospital. Durante o breve instante em que fez parte da equipe médica que o socorreu após a tragédia que o deixou tetraplégico, ela ainda procurou injetar-lhe otimismo e esperança, ao lhe dizer sorridente: “Você é uma pessoa especial”. Diferente da objetiva e centrada fisioterapeuta que logo lhe diz sem qualquer rodeio: ”Você deve ficar paralítico para sempre”.

Foram as consequências deste acidente que provocou radical mudança em sua vida aos vinte anos de idade. E como num daqueles acasos terminou por lhe abrir espaço para a publicação de seus cartuns e uma conflituosa e polêmica carreira de cartunista famoso. Revistas como Playboy e outras de grande circulação publicaram suas tiras em preto e branco e os leitores as discutiam nas ruas. Não raro gerava protestos por satirizar ou ridicularizar personalidades e provocar a ira dos atentos conservadores que boicotavam as publicações que o mantinham em atividade. E ao contrário do que eles pensavam, ele adorava estas atitudes.

Para tornar seu traço e seus personagens ainda mais familiares ao espectador, Van Sant transforma suas criações em cartuns animados para fazer a passagem de uma sequência para a outra da narrativa em preto&branco. Em suma, Callahan mutou em arte tudo que passou na vida com corrosivo humor. E ri da sociedade capitalista que, em sua hipocrisia, prefere o clichê a ver-se no espelho como realmente é. A aceitação de seus temas podia não ser unânime, pois não buscava preservar “os bons costumes” de uma sociedade soporífera, fugaz e crente no deus moeda.

A arte nem sempre é para apaziguar os “bem-intencionados” membros de uma elite voraz e excludente. E tampouco é bom atender aos desejos dos burgueses e mantê-los alegres longe dos esfarrapados por eles mesmos criados. A exemplo de “Elefante (2003)”, em que encenou o massacre de 13 estudantes secundaristas da Columbine High School por dois colegas da escola, Gus Van Sant não se prestou em buscar aplausos neste “A pé ele não vai longe”. Preferiu ir direto à mente do espectador, fazendo-o refletir sobre as razões do alcoolismo e ainda assim o divertir.

A pé ele não vai longe. (Don´t worry, he won´t get far on foot). Drama. EUA. 2018. Trilha sonora: Danny Elfinan. Edição: David Marks/Gus Van Sant. Fotografia: Christopher Blauvert. Roteiro: Gus Van Sant, baseado na biografia do cartunista John Callahan. Direção: Gus Van Sant. Elenco: Joaquim Phoenix, Roony Mara, Jonah Hill, Jack Black.

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