“Emma e as cores da vida” – Surpresas da paixão

Em drama sobre a relação de publicitário com uma deficiente visual, o cineasta italiano Silvio Soldini mostra que não há empecilho para o amor.

Devagar, como se preparasse o/a espectador/a para o desenrolar de uma narrativa cheia de nuances, o cineasta italiano Silvio Soldini (1958) mergulha-o/a no universo dos que lidam com imagens e cores e os que se movem nas sombras. Entre eles estão o publicitário Teo (Adriano Giannini), que dota seus comerciais de fortes tons cromáticos, e a osteopata Emma (Valeria Golino), empenhada em tratar de pacientes com dores nos ossos. Enquanto ele vive num mundo colorido e perceptivo, ela se vale da bengala, do tato e da sensibilidade para se deslocar sem ver o entorno.
Com este tipo de abordagem, Soldini retira o espectador/a de sua área de conforto para fazê-lo atentar às dualidades deste seu “Emma e as cores da vida”, que trata de sensações, percepções e limites. Ele/a não deve atentar para o meio físico com móveis, paredes, escadas, ruas e parques cheios de árvores e lagos, mas para o modo como a jovem deficiente visual Emma se move entre eles, se valendo da percepção de seu limitado espaço. Teo, sempre a agir com desenvoltura em vários ambientes, terá de se adaptar se quiser se relacionar com ela.

Este é, em suma, o modo como Soldini estrutura sua narrativa atraindo o espectador/a não para atrama em si. Esta se limita ao tema central, a relação de Teo com Emma e os percalços criados por sua loira companheira Greta (Anna Ferzetti). O que importa aqui é como o publicitário e a osteopata percebem um ao outro. E não de modo fácil, Teo é o caçador pronto a cortejá-la como qualquer latin lover, usando inclusive ardis para aproximar-se dela. Não se intimida de valer-se da deficiência visual de Emma ao ajudá-la a identificar o que está ao seu redor. E tenta, desta forma, conquistar sua confiança e atenção sem qualquer pudor.

Emma sabe das cores e dos espaços reais

É quando ela o atrai para seus gestos, tatear de objetos, móveis, modo como prepara seus alimentos, caminhar pelas ruas com a bengala, sentir o cheiro e o volume das coisas. E ainda cuida de suas plantas, faz chá de menta para seu cortejador. Aos poucos, Teo começa a entender que Emma sabe das cores e dos espaços e que a lembrança do que viu até os 16 anos, quando a cegueira limitou seus movimentos, evita que saiba o que é envelhecer. E na atualidade, só vê sombras e não se sente perturbada ou limitada por isso. Pelo contrário, estar no escuro os tornam iguais, com a vantagem de que ela se relaciona com o meio através das sensações.

Com estas construções dramáticas, Soldini envolve o/a espectador/a não mais para as diferenças entre eles. Não se vê mais o caçador Teo atrás da vulnerável deficiente visual, mas a relação de dois seres apaixonados. O que rende a melhor sequência deste “Emma e as cores da vida”, ao atestar que o caçador se rendeu aos encantos da “presa”. E como qualquer apaixonado tem seus bons momentos no cinema. E lhe descreve todas as cenas, como um narrador atraído pelos encantos da mocinha, mas tendo-a ao seu lado. O cinema aqui vale-se da metalinguagem para se reafirmar como o meio que serve de cenário da ficção para denunciar a realidade.

Esta linha dramática construída por Soldini e seus dois co-roteiristas Doriana Leondeff e Davide Lantieri não foge momento algum à dualidade. Existe a oposição entre as más intenções de Teo, que vive no universo colorido, e a inteligência, a beleza e a doçura de Emma ao transformar as penumbras em seu meio natural. Nele seu calçador se tornará, ele, sim, sua frágil presa. Ela o atrai para outra realidade, onde a sensibilidade conta mais que palavras e enxergar. Sutilmente, ele vai sendo tragado e amoldado até o que era vantagem torna-se paixão.

Soldini descontrói imagem dos deficientes visuais

Não é mais o domínio do espaço, da linguagem e das situações que o deixam à vontade para cortejá-la. Forma de poder usada para atestar o quanto ela depende dele para sobreviver numa sociedade cheia de maldades, armadilhas e preconceitos contra deficientes de toda natureza. Se põe a “ajudá-la” em seu consultório, em seu andar pela calçada e atravessar rua, chegar ao seu apartamento, tomar banho e cozinhar. Mas logo percebe que o faz não por ela precisar, mas devido às suas imposições de conquistador. É uma forçada maneira de criar uma dependência.

Deste modo, Soldini confirma a importância da dualidade e da dialética das contraposições na vida, na política, nos meios sociais, nas relações amorosas e familiares. Como milhares de deficientes visuais, físicos, auditivos e cadeirantes, Emma construiu seu próprio modo de existência. Pode se deslocar pelas vias públicas, trabalhar, cozinhar e passear nos ambientes com os quais se familiarizou. A relação amorosa de Teo com ela o obrigou a ver que não depende dele para sobreviver. De fato, existe a paixão que os une, razão para justificar o esforço de ambos.

Soldini constrói e descontrói assim a falsa ideia da dependência do deficiente visual e de outros segmentos. Entretanto sua narrativa não se prende apenas ao eixo central deste “Emma e as cores da vida”. Além dele, estruturou duas sub-tramas como contrapontos a reforçar o tema central. Não de modo simbólico, mas realista. I – O ciúme de Greta que, como nos dramalhões, se presta ao papel de megera e de companheira traída. II – A luta da jovem deficiente visual Nadia (Laura Adriani) para se tornar independente da mãe e poder transitar pelas ruas como Emma.

Nadia quer se tornar independente da mãe

Se a primeira sub-trama passeia pelo clichê, inclusive com o costumeiro fragrante da companheira traída, o segundo é uma pérola de construção dramática e de personagem. Nadia é bela, como toda jovem quer ser independente, mas a mãe, no entanto, teme pelo que pode lhe acontecer. Morena, ela se insurge e tenta atravessar a rua por si mesma. É como se, de repente, o filhote da pomba descobre que pode voar, mesmo correndo sérios riscos em meio ao perigoso tráfego da grande cidade. Ainda que diante de sua irritação e destemor, o espectador torce para ela.

Percebe-se a intenção de Soldini em não se restringir apenas a Emma e a sua relação com Teo. Sua narrativa remete ao trato do diferente, daquele que, apesar de sua deficiência, tem elevada autoestima e sabe qual o caminho a percorrer. Muitas vezes, ele é marginalizado, mas pode transformá-lo num fator de entrega ao seu objetivo e de superação do preconceito. É o que Teo descobre ao deparar-se com Emma e ver que a deficiência visual não a impede de agir com normalidade e ser de fácil convivência. Assim, Soldini põe o espectador/a diante de uma personagem que precisa de companheiro no dia-a-dia, mas não é 100% dependente.

Emma e as cores da vida (II Colore Nascosto Delle Cose). Drama. 2017. Itália/França/Suíça. 115 minutos. Música: Gianluigi Carlone. Montagem: Giorgio Garini/Carlotta Cristiani. Fotografia: Matteo Cocco. Roteiro: Silvio Soldini/ Doriana Leondeff/Davide Lantieri. Elenco: Valeria Golino, Adriano Giannini, Anna Ferzetti, Ariana Scommegna, Laura Adriani.

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