O fator militar no governo Bolsonaro-3: a espada de Leônidas

Não se pode negar racionalidade à atitude do general Leônidas Pires Gonçalves na madrugada de 15 de março de 1985. Impondo Sarney aos que, à luz da Constituição vigente, consideravam que a presidência interina devia caber a Ulysses Guimarães, ele evitou a pior hipótese de todas, aquela preconizada pelo general Walter Pires, ministro do Exército do ainda oficialmente presidente João Figueiredo.

 Ao saber que Tancredo seria submetido a operação urgente (que sempre envolve risco de vida), o general Pires (Walter, não Leônidas) procurou seu colega do governo em extinção, Leitão de Abreu, Chefe da Casa Civil, sustentando que o mandato do general Figueiredo devia ser prorrogado, até que Tancredo pudesse assumir o cargo. Movido provavelmente por solidariedade com Figueiredo, que não perdoava Sarney de ter rompido com o partido do governo para integrar a chapa de Tancredo, recusando-se a transmitir-lhe a faixa presidencial, Walter Pires disse a Leitão de Abreu que ele iria “agora mesmo para o ministério (do Exército) mobilizar nosso dispositivo”. Segundo Sarney, Leitão de Abreu teria replicado: "general, o Sr. não é mais ministro. Nos quartéis, quem já está dando ordens é o general Leônidas". Se a vontade do general Walter Pires tivesse prevalecido, um colossal imbróglio teria ocorrido em 21 de abril de 1985, quando morreu Tancredo após longa agonia. Nova eleição (indireta) teria de ser convocada, num contexto ainda mais tenso e com resultados perigosamente incertos.

Sarney empenhou-se em compensar a discutível legalidade de seu mandato por meio da chamada “legitimidade dinâmica”, isto é, pelo êxito de seu governo. O sucesso inicial do “Plano Cruzado” assegurou-lhe apoio popular suficiente para que ele mobilizasse os “fiscais de Sarney”, incumbidos de denunciar os comerciantes que desrespeitavam o congelamento dos preços. Mas estes, represados por medidas administrativas, não resistiram muito tempo à persistência das pressões inflacionárias, do desabastecimento e do mercado negro. O governo segurou o inevitável ajuste até as eleições de 15 de novembro de 1986, em que o PMDB e o PFL, que o apoiavam, obtiveram vitória arrasadora. O PMDB elegeu todos os governadores, salvo um, eleito pelo PFL; juntos, os dois partidos conquistaram ampla maioria no Senado e na Câmara Federal; para esta o PMDB elegeu 260 deputados, o PFL 118 e todos os demais partidos, juntos, 109. Mas a falácia graças à qual forjou-se tão forte maioria tinha pernas curtas. Logo após as eleições, as comportas da barragem dos preços foram abertas, trazendo de volta a inflação acelerada. Com a mesma rapidez com que os preços subiam, derreteu-se a popularidade de Sarney. No dia 27 de novembro, em Brasília, uma multidão furibunda exteriorizou sua frustração saqueando, incendiando, apedrejando, quebrando. Sempre inventivo em demagogia, o presidente declarou “moratória técnica” da dívida externa, apelando para os sentimentos patrióticos da população. Mas seu crédito político entrara em colapso. Dilson Funaro, ministro da Fazenda e principal articulador do Plano Cruzado, pediu demissão em abril de 1987. Bresser Pereira substituiu-o. Em maio, a inflação mensal atingiu o pico de 23,26%. Bresser anunciou em 12 de junho um novo plano de estabilização, que fracassou rapidamente.

Entrementes, a duração do mandato presidencial entrou na pauta do Congresso eleito em novembro de 1986 (com poderes constituintes). Predominava o consenso de que quatro anos era um período suficientemente longo para um governo de transição entre as instituições da ditadura militar e o regime democrático. Mas Sarney estava decidido a permanecer cinco anos como inquilino principal do Palácio da Alvorada. Dispunha de um único argumento forte: a espada de Leônidas. Este reiterou “advertências” de que as Forças Armadas não aceitariam nenhuma “redução” do mandato presidencial. Mais grave do que a falácia de dar como resolvida a questão que estava exatamente em discussão (a duração do mandato), era a desenvoltura do general, fixando limites ao poder constituinte. Ao advertir o STF de que os quarteis não aceitariam que Lula fosse posto em liberdade, o general Vilas Boas retomou, trinta anos depois, os métodos “tutelares” do general Leônidas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor