Eu não sou seu negro – Parte II – De ontem e de hoje

Em documentário centrado na vida do escritor e ativista negro estadunidense James Baldwin, cineasta haitiano Raoul Peck atualiza a luta contra o racismo hoje nos EUA e relembra Malcolm X e Martin Luther King.

A sucessão de imagens dos confrontos entre os ativistas pró-direitos civis e as forças de segurança dos EUA, encadeadas por Peck através de ágil montagem, neste “Eu Não sou seu Negro”, ajudam o espectador a entender a dimensão da luta empreendida. Ela se tornara político-ideológica contra o sistema capitalista estadunidense. A começar pelas ações do Partido dos Panteras Negras que defendia a autodefesa contra o racismo, pregava o orgulho negro, a luta contra o Sistema e implantara as patrulhas negras e as próprias ações de assistência social.

Além dos Panteras Negras, Peck destaca mais três importantes frentes de combate à exclusão sócio-político-econômica dos afros nos EUA, nos anos 60. A Organização para a Unidade Afro-Americana, liderada por AL Hajj Al Shabbazz, que mudara o nome para Malcolm X, buscava criar um país afro, comunista e muçulmano, em parte do território estadunidense. Enquanto, o pastor batista Martin Luther King organizara a Conferência da Liderança Cristã do Sul (SCLC), seguindo as ideias da não violência e o pacifismo do indiano Manhattan Gandhi (1869/1948).

O último destes líderes afros, Melgar Evers (1925/1963), era secretário da Naacp (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor). Uma organização que buscava a integração através de boicote de universidades que não aceitavam negros, lojas e bares por exigirem a entrada deles pelos fundos e os postos de gasolina por não os deixar usar o banheiro. Estas formas de lutas terminaram por ter várias frentes, o que, sem dúvida, ampliou o movimento pelos direitos civis e contra o racismo. Ainda que o FBI e as forças de segurança viessem a concentrar nele a sua ira.

“Eu conhecia Malcolm apenas pela lenda”

Mesmo se relacionando com as lideranças destas organizações de luta pela integração racial e participando de suas atividades, principalmente as organizadas por Luther King, Baldwin não aderiu a nenhuma delas. Só conheceu Malcolm X por este ter participado de uma conferência sua em Nova York. ”Eu conhecia Malcolm apenas pela lenda. E essa lenda, como um era um menino de rua do Harlem, era suficientemente astuto para desconfiar dela. Mas com Evers a limitada relação veio quando fui convidado a acompanhá-lo numa investigação sobre a morte de um ativista da Naacp”.

“Eu não era, por exemplo, um negro muçulmano. Da mesma forma, embora por razões diferentes, nunca me tornei pantera negra porque não acreditava que todos os brancos fossem demônio. Eu não queria que os jovens negros acreditassem nisso. Eu não era membro de nenhuma congregação negra, (pois) sabia que elas não tinham ouvido e não viviam de acordo com o mandamento: “Amai uns aos outros como Eu vos amo”. Eu não era membro da Naacp porque no Norte, onde eu cresci, (ela) foi afetada pelas diferenças de classe negra, ou ilusões da mesma, que rejeitava um menino engraxate como eu”.

De qualquer forma, não havia como ele escapar aos imperativos do movimento pelos direitos civis. Se não aderia ao ativismo sob a direção de um de seus líderes pelo menos devia se engajar nas manifestações das quais participavam milhares de afro-estadunidenses. Chegou mesmo a participar de um debate na TV com Malcolm X e Luther King, na qual os dois se digladiaram em mútuas acusações sobre quem, de fato, travava a correta luta para integrar seus irmãos de raça às estruturas político-sócio-econômicas dos EUA. O que ouviu foi posições divergentes. Nada mais.

“King pegou o fardo de Malcolm”

– Malcolm X: Martin Luther King é um Pai Tomas moderno do século XX ou um Pai Tomás religioso que está fazendo a mesma coisa hoje (ao) manter negros indefesos sob ataque. (É) como o Pai Tomas fez na plantação para manter os negros indefesos (sob) ataques da Klan naquela época (Alusão ao personagem central do romance da escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe (1811/1896), publicado em 1852).

– Martin Luther King: Acho que podemos ter certeza de que a maioria dos negros que participa das manifestações, e que compreende a filosofia da “não violência”, será capaz de enfrentar os cães e todos outros métodos brutais que eles (os policiais) usam sem retaliar com violência, porque eles compreendem que um dos primeiros princípios da “não violência” é a disposição de ser receptor da violência, sem jamais infringir violência ao outro”.

Mesmo assim, para Baldwin, os dois líderes afros, mesmo tendo posições opostas, cada vez mais se aproximavam um do outro. “No momento em que morreram, elas tornaram-se virtualmente a mesma posição. Pode-se dizer que Martin pegou o fardo de Malcolm e articulou a visão que ele tinha começado”. E inclusive cita o que o líder de esquerda e mulçumano arguiu para fortalecer seu movimento. “Precisamos de uma organização que ninguém na cidade goste. Uma organização que esteja disposta a agir e a fazer qualquer tipo de ação usando os meios necessários”. Trata-se de ousada e radical visão menos para os anos 60.

Baldwin entrou no Index do FBI

Até mesmo, Baldwin não afeto a elogios termina aliando-se a esta posição. ”Quando Malcolm fala, ou os outros ministros falam, eles articulam para que todos os negros que estão lá os escutem. Eles (influenciam) os sentimentos deles. O sentimento que tem sido negado neste país há tanto tempo. Esta é a grande autoridade de Malcolm sobre qualquer um dos seus públicos. Ele corrobora a realidade deles. E lhes diz que eles realmente existem e (eles) entendem”. Ainda que não tenha sido um dos líderes do movimento em defesa dos direitos civis, Baldwin não escapou à vigilância dos agentes do FBI, tendo como diretor John Edgar Hoover (1895/1972).

Seu diretor-assistente, Alan Rosen, afirma que Baldwin “se tornou famoso escrevendo sobre o relacionamento entre brancos e negros. Comenta-se que Baldwin pode ser homossexual e ele parece ser mesmo”. E completa: ”Informações coletadas deixam claro que é um indivíduo perigoso, que comete atos contra a defesa nacional e contra a segurança pública dos EUA em tempos de crise. Consequentemente o nome dele vai ser incluído no Index de segurança”. A paranoia não se restringia aos gabinetes do FBI, chegava também às ruas através do cartaz do jovem ativista branco, onde se lê: ”Mistura de raça é comunismo”.

Com este clima de insanidade, Peck encadeia sequências que focam os policiais espancando os manifestantes e os racistas chutando o jovem afro caído nas ruas. Mas os principais alvos eram os líderes do movimento pelos direitos civis. O primeiro a ser assassinado foi Medgar Evers (1925/1963), pelo racista Byron De La Beckwith (09/11/1920-21/01/2001), em 12/06/1963. Em seguida veio Malcolm X morto por membros da instituição Nação do Islão, da qual ele pertencera, em 21/02/1965, no bairro de Manhattan, Nova York. E causou indignação por todo o país.

“Toda economia do Sul foi centrada no braço escravo”

Grande impacto também provocou o assassinato de Martin Luther King em 04/04/1968, pelo racista James Early Ray (1928/1998), em Atlanta, Geórgia. Ele recebera o Prêmio Nobel em 1964 e negociava o fim do apartheid estadunidense diretamente com o presidente Lyndon Johnson (1908/1973), em seu mandato de 1963/1969. Peck, em sua seleção de imagens põe o espectador diante da multidão de afros e brancos e dos atores Sidney Poitier (1924), Harry Belafonte (1927), Sammy Davis Jr (1925/1990) e Marlon Brando (1924/2004) no funeral visto pela TV.

Quase que silenciosamente se deu o assassinato de Huey Newton (1942/1989), um dos líderes-fundadores do Partido dos Panteras Negras com Bobby Seale (1936), em 22/08/1989, por um atirador, orientado por um traficante. Um caso nunca resolvido. A reação de Baldwin quando da morte de Luther King, como as dos demais líderes mortos é lapidar. ”A verdade é que este país não sabe o que fazer com sua população negra e sonha com algo como “a Solução Final”, numa menção ao extermínio de seis milhões de judeus por Adolf Hitler (1889/1945), na II Guerra Mundial (1939/1945).

O importante nos 93 minutos deste “Eu Não Sou Seu Negro” é Peck se valer da voz do ator-afro Samuel L. Jackson para dar ao espectador a sensação de escutar Baldwin. E este lhe contar em tom de confidência o fracasso da burguesia e da elite estadunidense na tentativa de integrar os ex-escravos-africanos e seus descendentes na estrutura sócio-político-econômica dos EUA. “A História do negro nos EUA é a história dos EUA. Não é uma história bonita”. Deste modo, Peck amplia sua abordagem, ao não centrar sua narrativa apenas nos movimentos pelos direitos civis.

“Leilão de escravos não admitia pechincha”

O farto material encontrado nos arquivos de Baldwin lhe facilita esta estruturação. Não se trata apenas da questão política em si, mas de seus desdobramentos nas áreas econômicas e sociais. A começar pela contribuição dos afros à economia dos EUA. Não apenas nos cafezais, milharais, algodoais e arrozais. “Todos os portos e ferrovias do país, (inclusive) a economia municipal e principalmente a dos estados do Sul não poderiam ser o que se tornaram, se não tivessem tido, e continuaram a ter por várias gerações, a mão de obra barata (dos escravos africanos) ”.

Além de sustentar a narração de Jackson com imagens de trabalhadores afros arando os algodoais com bois puxando o arado, Peck relembra os aterrorizantes leilões de escravos. O anúncio pregado nas árvores convidam os fazendeiros e os comerciantes de escravos para o leilão. “As 11 horas, na 2ª feira, embaixo das árvores, um grande lote de negros acostumados com plantação de algodão”. E anunciam, dentre outros, “Hanibal, 24 anos, bom caráter; Prince, motorista; Betsy, enfermeira, 40 anos; crianças de 9 meses, a US$1.270 dólares, sem negociação de preço”, ou seja, sem pechinchar e pagamento em dinheiro.

Os desdobramentos do movimento pela integração racial não cessaram com ameaças, agressões, prisão e eliminação violenta de seus ativistas e líderes ao longo da história de luta dos afros nos EUA. E, notadamente nas décadas de 40,50 e 60. Cada etapa dessa luta incentivou nas ruas, nos bairros, nas fazendas, nas fábricas, nas lojas, gerações de afros, como a costureira Rosa Parks (1913/2005) que, ao não ceder seu lugar no ônibus para um branco, acabou presa. Cada jovem, adulto ou mesmo idoso que se insurge contra o racismo reforça a luta ainda em curso não só nos EUA, como no Brasil, onde o movimento de resistência racial se multiplica para reagir às multifacetadas nuances do racismo silencioso.

“Propaganda destaca poder aquisitivo dos negros””

Numa de suas mais bem estruturadas sequências, Peck justifica todo este “Eu Não Sou Seu negro” ao sustentar esta avaliação. É o que ocorre com a propaganda feita pelo Departamento de Comércio do Governo dos EUA, ao destacar a prosperidade da classe média de seus pais. Em sequências de belas imagens vê-se o casal afro bem vestido com seu casal de filhos bem arrumados em sala mobiliada e em supermercado classe A. Segue-se a estatística: ”Desde 1940, só em São Francisco, o mercado aumentou 89% por cento. Em Chicago (foi) 81%”.

Trata-se de ver o afro-estadunidense apenas como consumidor, devido ao seu “atraente” poder aquisitivo, conquistado em décadas de exploração e trabalho mal remunerado. Mesmo assim as desigualdades permanecem. Isto numa população de 284,4 milhões de estadunidenses, dos quais a minoria afro era 12,6%, ou 36 milhões do total, em 2013. Pouco abaixo dos 37 milhões de hispânicos, que somam 13%. A escala de ascensão permanece eivada de dificuldades para acelerar ou ir aos poucos conquistando posições. Isto porque o racismo e a repressão persistem.
Não bastasse, a propaganda chama atenção para o potencial de crescimento do mercado voltado para a classe média afro-estadunidense. “(Há) milhões de consumidores para o que você tiver para vender. Consumidores com US$ 15 bilhões para gastar”. Em seguida, o afro preenche o cheque, enquanto seu garoto brinca de cowboy junto à TV. “Alguém uma vez me disse, observa Baldwin, que as pessoas em geral, não conseguem suportar a realidade. Ela quis dizer que elas preferem a fantasia à uma recriação real das suas experiências”.

“Baldwin teme ser o próximo da lista”

A impressão é de que Baldwin produziria um documentário ainda mais explosivo e elucidativo sobre a luta pela integração racial em seu país, caso tivesse tido a oportunidade de escrever seu roteiro para além das trinta páginas usadas por Peck neste “Eu Não Sou Seu Negro”. Ainda assim, Peck consegue expandir suas ideias, experiências e elaborações, usando as imagens e textos de seus arquivos. O próprio Baldwin surge no filme, como um personagem pela voz de Jackson. O que o torna vivo, cativante e radicalmente provocador. Ou simplesmente atual e desafiador.
É elucidativo pela forma como ele vê os brancos e com eles se relaciona. “(Eu) nunca consegui odiar os brancos, embora Deus saiba que várias vezes desejei assassinar mais de um deles”. Daí se entende, sua amizade da vida toda com sua professora primária numa escola só para afros no Harlem, em Nova York, onde nasceu. “Eu gostava da Billy Miller como ela era, ou como parecia ser para mim. Ela de certa forma também foi tratada como negra, principalmente pela polícia”. Com Miller, ele adquiriu o hábito de ler, de refletir e escrever e enfrentar seus demônios interiores, desde a infância e até mesmo na maturidade.

Peck nada remete ao escritor, dramaturgo, ensaísta, muito menos ao homossexual assumido, já nos anos 50. Menção alguma há sobre seus dois romances mais famosos: Giovani (1956) e Terra Estranha (1982). Apenas se vale de sua vivência de cinéfilo para brindar o espectador com uma lista de filmes que, desde os anos 30, trataram da questão do racismo e dá uma ótima retrospectiva. Dentre eles, “Acorrentados (1958)”, de Stanley Kramer (1913/2001), e “No Calor da Noite (1967)”, de Norman Jewison (1926). Mas toda narrativa é centrada em suas ações como ativista em seu retorno aos EUA, em 1959, depois de ter vivido na França desde 1948.

“Branco é uma metáfora de poder”

Mas foi para Saint-Paul-de Vence”, na França, que ele retornou, em 1983, ao perceber após a morte de Evers, Malcolm X e Luther King que poderia ser o próximo da lista. Em uma de suas palestras para os alunos da Universidade de Cambridge, ele já havia sentenciado bem ao seu estilo que: ”Eu afirmo a vocês: o mundo não é branco. Ele nunca foi branco. Ele não pode ser branco. Branco é uma metáfora de poder. E isso é simplesmente uma maneira de (des)crever o Chasse Manhatthan Bank”.

Eu não sou seu negro (I´am not your negro). Documentário. 2016. EUA, França, Bélgica, Suíça. 93 minutos. Música: Alexei Aigui. Edição: Alexandra Straus. Fotografia: Henry Adebonoyo, Bill e Turner Ross. Narração: Samuel L. Jackson. Roteiro/direção: Raoul Peck.

Leia também:

"Eu não sou seu negro" – PARTE I – De ontem e de hoje

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