“Eu não sou seu negro” – PARTE I – De ontem e de hoje

Em documentário centrado na vida do escritor e ativista negro estadunidense James Baldwin, cineasta haitiano Raoul Peck atualiza a luta contra o racismo hoje nos EUA e relembra Malcolm X e Martin Luther King.

Ainda dá para escutar a controlada voz do afrodescendente-estadunidense James Arthur Baldwin (1924/1987) num debate com estudantes da Universidade de Cambridge, em plena luta contra o racismo nos Estados Unidos na década de 60. Pregador evangélico na juventude, depois escritor, ensaísta, dramaturgo e ativista pela integração racial, ele desafia os racistas sem trégua: ”Vocês não podem me linchar e me manter em guetos sem se tornarem algo monstruoso (…)”. Não menos do que hoje, quando este conflito continua a se repetir em vários estados de seu país.

Com este enfoque, o cineasta haitiano Raoul Peck (1953) dá conta de seu tema central: traçar um painel da luta pela integração racial nos anos 60, centrado na cinebiografia de Baldwin. E se utiliza das trinta páginas de um roteiro inacabado do escritor e de seus arquivos de imagens, textos e depoimentos para estruturar este “Eu não sou seu negro”, agora em DVD. Não o faz, porém, de forma linear, embora siga certa cronologia. É como se preparasse o espectador para o clima de violência e horror, preconceito e marginalização dos afrodescendentes predominante nos EUA nos anos 60.

Duas breves sequências introduzem o clima e os conflitos em curso. Numa delas, o líder do Conselho de Cidadãos Brancos, Leander Perez, afirma diante dos soldados armados que protegem a entrada de jovens alunos negros no prédio: “No momento em que uma criança negra entra na escola, todo pai decente, responsável e amoroso, deve tirar o seu filho branco dessa escola decadente”. Noutra sequência, a mulher branca se vale da religião para protestar: ”Deus perdoa o assassinato e perdoa o adultério, mas Ele está muito bravo e fica furioso com quem se integra”.

Baldwin se envergonha com a cuspida em garota afro

Este é o clima que Baldwin já vivenciara à distância em Paris, onde vivia, desde 1953. O que o fizera retornar a Nova York, sua cidade natal, no final daquela década, fora a fotografia da menina Dorothy Counts, de quinze anos, no jornal, sendo cuspida pela multidão de brancos raivosos enquanto entrava na escola, em Charlote, na Carolina do Norte. “Aquilo me encheu de ódio e pena, e me deixou envergonhado. Algum de nós devia ter estado lá com ela. Nenhuma outra razão o trouxera de volta. Mas eu sentia saudade dos meus irmãos, das irmãs e da minha mãe (…) e dos domingos nos Harlem e do frango frito”.

Peck, contudo, não segue o personagem, como se fosse mostrá-lo com sua família, dando um tom sentimental ao retorno de Baldwin. Prefere contextualizar a estrutura sócioeconômica na qual os afros viviam nos anos 60. Enquanto isso a propaganda tenta criar um clima de otimismo, com a frase: “Agora eu tenho um emprego”, mostrando a alegre doméstica afro lavando prato, a cozinheira satisfeita com a geladeira, o garçom sorridente em seu uniforme, a realidade era bem outra. Tentava-se associar os trabalhadores afros ao desenvolvimento dos EUA, mesmo em empregos de baixos salários, sem grandes perspectivas.

Estas descolagens não se atinham tão só na propaganda cotidiana nos cartazes, nos outdoors, nos jornais e revistas e, notadamente, no rádio e na iniciante tv. E principalmente na profusão de luzes e pisca-piscas nas fachadas das pequenas e grandes lojas de departamento. Desde sua juventude, Baldwin percebera que o descolamento da realidade se estendia aos personagens afros dos musicais e dramas dos anos 30, 40 e 50. Eles não pareciam reais, brotados das ruas. Nenhum deles refletia as duras condições de vida e as necessidades que ele e seus oito irmãos passavam.

“Você torce para Gary Cooper, mas os índios eram você”

Esta dissociação só foi amenizada quando ele se defrontou com o zelador Tump (Clinton Rosemond), em “Esquecer Nunca”(1937), filme do cineasta Mervin Leroy (1900/1987). Baseado no livro “O Sul Profundo (1937)”do escritor estadunidense Ward Greene (1892/1956), centrado num caso real. Tump era suspeito de ter estuprado e assassinado a jovenzinha branca Mary Pha de uma cidadezinha do sul. E o corpo dela tinha sido escondido. “O papel do zelador era pequeno, mas o rosto do homem ficou marcado em minha memória até hoje”. Isto sim era real.

Este realismo buscado por Baldwin nos filmes de Hollywood das décadas de 30, 40 e 50, época de sua juventude, não se restringia ao modo como os afros eram mostrados na tela. Se estendia ao tratamento dado às minorias, nas quais ele se incluía. “É um grande choque quando aos 5,6 ou 7 anos, você descobre Gary Cooper (1901/1961) matar os índios enquanto você torce para ele, e que os índios eram você. Você tem um grande choque ao descobrir que o país que é sua terra natal, e para o qual você deve sua vida e sua identidade, não criou em todo o seu sistema de realidade um lugar para você”.

Construído desta forma, o próprio Baldwin se constituía no típico personagem que buscava ver na tela. Dado que prezava a ética e a moral e o senso justiça nos filmes. Percebe-se isto pela atenção dada por Peck aos filmes e aos atores que ele critica com veemência. Principalmente o ator John Wayne (1907/1979), como Ringo Kid), no clássico faroeste de John Ford (1895/1973) “No Tempo das Diligencias (1939)”. “Eu desprezava e temia aqueles heróis porque eles se vingavam com as próprias mãos. Pensavam que a vingança cabia a eles. E assim, eu entendi aquilo. Os meus companheiros eram meus inimigos”.

“Mankiewicz trata o racismo como doença”

Contudo, alguns cineastas e roteiristas hollywoodianos já atinavam para o descolamento, embora seus filmes fossem raros na época. Um dos exemplos mais emblemáticos foi o grande sucesso do drama “A Imitação da Vida”, do cineasta estadunidense John M. Stahl (1886/1950). E Peck seleciona justamente a sequência de grande impacto do filme. Enquadrada pela câmera de Stahl de forma a pegar a doméstica afro Delilah Johnson (Louise Beavers, 1902/1962), a professor branca e a garota Jessie Pulman (Rochele Hudson, 1916/1972)), sentada na cadeira ao lado das colegas.

Assustada ao ver a corpulenta e humilde Johnson lhe dizer que veio buscar a filha, a professora se assusta. Ela não “tem alunas afros”. Mas ela insiste. E Jessie cobre a face com o caderno para se esconder dela. Tal era o medo de ter seu segredo revelado e ser excluída de seu círculo de amizade na escola. É a imposição do meio e, ao mesmo tempo, a “necessidade” de se mostrar de outra etnia e classe social. E Jessie terá de conviver com suas contradições e escolhas tão sofridas. A realidade, tão reivindicada por Baldwin, porém, desfaz de modo trágico esta fantasia.
Não menos assustador, com papéis invertidos, é a construção do poder enfeixado por um afro, enquanto o branco é o marginalizado em “O Ódio é Cego”(1950). O cineasta estadunidense Joseph L. Mankiewicz (1909/1993) estrutura sua história a partir da conflituosa relação do viciado em drogas Ray Biddie (Richard Widmark, 1914/2998) com o médico afro Luther Brook (Sidney Poitier, 1927). Embora seja paciente, tratando-o com o cuidado necessário, Brook é submetido à ferocidade doentia e racista de Biddie. O poder, porém, não está com o branco, mas com o afro.

“Racismo é encenado como uma doença”

O que importa aqui é o uso que Brook faz desse poder, tanto para curar quanto para destruir o doente que insiste em humilhá-lo. Mankiewicz os leva ao confronto, evitado a todo custo por Brook. Trata-se, na verdade, de uma metáfora sobre o racismo, encenado como uma doença que deve tratada como vício imposto pela sociedade burguesa-capitalista, e reforçada por seus estereótipos de superioridade racial. E absorvida pelas camadas médias e altas a seu serviço como se assim integrasse a alta classe, onde o que vale é a ficção do status quo.

Neste vai-e-vem narrativo, em que passeia por vários temas de interesse de Baldwin, personagem multifacetado, Peck (O Jovem Karl Marx, 2017) sempre destaca que o grande tema dele era a de que vivemos numa sociedade de realidade construída. E no sistema capitalista o trabalhador e o funcionário comum oscilam entre a realidade ficcionalizada pela propaganda dos conglomerados empresariais, a mídia burguesa e o universo real da desigual luta de classe. Uma dualidade sempre escamoteada pela promessa de futuro melhor e da almejada vida eterna.

“O que se faz é destruir a noção de realidade”

Baldwin, atilado polemista-ativista como se vê neste “Eu Não Sou o Seu Negro”, procura chamar atenção dos universitários sobre isto em sua palestra na Universidade de Cambridge, em 1965. Era o auge dos movimentos civis, liderados por Malcolm X (1925/1965) e Martin Luther King (1929/1968). “Deixando de lado todos os fatos físicos que se pode citar, deixando de lado o estupro ou o assassinato, deixando de lado o registro sangrento da opressão, coisas com as quais já estamos bem familiarizados, o que isso faz ao subjugado é destruir sua noção de realidade.

Na verdade, as várias tendências do Movimento pelos Direitos Civis nos EUA procuravam escapar à ficção e então abrir espaços para a integração dos afros-descendentes nas estruturas político-sócio-econômicas da potência imperialista nos anos 60. Alguns deles, como Melgar Evers (1925/1963), secretário da Naacp (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor), havia servido no exército estadunidense na II Guerra Mundial (1939/1945). E a elite empresarial e o Estado só integravam os afros quando precisavam deles para defender seus interesses geopolíticos, como ocorria na Guerra de Vietnã. Então exigiam que eles fossem patriotas e dispostos a morrer por espaços que não deles.

(Continua na PARTE II, semana que vem)

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