Voto fascista, voto útil, voto anti-sistema

"É preciso ir mais fundo na análise do voto fascista. Ele se expressa nos que se identificam com o culto da força bruta e da violência como método de solução de questões sociais e de confrontos ideológicos preconizado pelo presidente eleito e por sua tropa de choque: os batedores de panela da burguesia do centro-sul e os bíblicos obscurantistas, principalmente".

Num artigo publicado antes das eleições ("Bolsonaro e o fascismo do século XXI"), Fábio Palácio situou pertinentemente em dimensão histórico-conceitual o debate sobre o avanço da extrema-direita, chamando a atenção para o conceito de "crise orgânica", que Gramsci formulou para explicar a ascensão de Mussolini. Em síntese, quando os partidos tradicionais da ordem burguesa perdem a confiança de suas bases sociais, configura-se um colapso das instituições políticas vigentes, abrindo campo propício para soluções de força.

Uma derrota eleitoral por si só não configura perda de representatividade dos partidos. Na eleição presidencial de 1989 os principais partidos da direita (o PFL, que agrupava os filhotes da ditadura) e do centro (o PMDB, federação da oposição parlamentar ao mesmo regime e o PSDB, sua dissidência mais “ideológica”) colheram resultaVdos pífios. Os votos conservadores e reacionários concentraram-se num play boy da oligarquia fantasiado de “caçador de marajás”, usando uma legenda de aluguel, que derrotou Lula no segundo turno com o apoio de sórdida campanha de intoxicação promovida pela Rede Globo. Entretanto, não somente o PT e o PDT saíram íntegros daquela campanha, mas o bloco do centro-direita logrou reconstituir-se logo adiante, cavalgando no êxito do Plano Real e levando FHC à presidência por dois mandatos sucessivos. Não estava, pois, configurada nenhuma "crise orgânica" na fase inicial de vigência das instituições instauradas pela Constituição de 1988.

São notáveis as semelhanças na dinâmica da campanha presidencial de 1988 com a de 2018, em que ocorreu o mesmo esvaziamento eleitoral dos partidos de centro-direita. Tanto o MDB quanto o PSDB foram associados ao fiasco do governo Temer, partilhando o desgaste eleitoral de sua enorme impopularidade. À insignificante votação de seus candidatos à presidência acrescentou-se forte recuo na Câmara Federal (o MDB elegeu 65 deputados em 2014, mas somente 34 em 2018 e o PSDB recuou de 54 para 29 deputados). Este duplo fracasso pode ser sintoma daquilo que Gramsci chamou “crise orgânica", referindo-se aos fatores que levaram à tomada do poder pelos fascistas em seu país.

Entretanto, a despeito de erros e fraquezas não pequenas, que abriram largas brechas para os furibundos ataques do cartel TV/imprensa e da máquina judiciária, o PT não entrou em “crise orgânica". Não saiu incólume desses ataques (elegeu 56 deputados para a Câmara federal, contra 69 em 2014), mas manteve-se como grande partido popular e o maior da Câmara Federal.

Os efeitos da lógica perversa do ódio ao PT e à esquerda foram evidentemente maiores na eleição presidencial. Em artigo anterior (“Quantos são os extremistas de direita?”), procuramos distinguir o voto fascista do “voto útil” anti petista nos 46% dos

sufrágios expressos que Bolsonaro obteve no primeiro turno e nos 55% no segundo. Sobre o “voto útil”, um cronista disse a última palavra: o ódio ao PT foi maior do que o amor à democracia. Mas é preciso ir mais fundo na análise do voto fascista. Ele se expressa nos que se identificam com o culto da força bruta e da violência como método de solução de questões sociais e de confrontos ideológicos preconizado pelo presidente eleito e por sua tropa de choque: os batedores de panela da burguesia do centro-sul e os bíblicos obscurantistas, principalmente. Cabe, entretanto, discutir os nexos dessa mentalidade com o desinteresse pela política, que se expressa vulgarmente em chavões simplistas do gênero “os políticos são ladrões”, “é tudo farinha do mesmo saco” etc., mas que pode também fundamentar-se num anarquismo menos tosco. Considerando que cerca de 31% dos eleitores (quase um terço, portanto do total) não votaram em nenhum dos dois candidatos no segundo turno da presidencial de 2018 e, de outro lado, que frequentemente o bolsonarismo é apresentado como movimento contra “o sistema”, coloca-se a pergunta: é a alta taxa de não votantes ou a alta votação do candidato de extrema-direita que refletem uma atitude “anti sistêmica”? Em qualquer das duas hipóteses, está presente o tema da "crise orgânica" e as questões conexas do esvaziamento das instituições políticas, sabotadas por moralistas hipócritas a serviço do neofascismo.

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