“Meu Anjo” Maus caminhos

Em drama em que inverte o rito de passagem de garota de oito anos em seu filme de estreia, diretora francesa Vanessa Filho discute o papel da mãe solteira e os descaminhos da infância num contexto familiar e social.

Em princípio é uma abordagem corajosa esta da jovem cineasta e roteirista francesa Vanessa Filho. Ao invés de mergulhar nas dificuldades de uma mãe solteira e desempregada para cuidar da filha, o que seria mais fácil nestes tempos, ela constrói uma história pelo lado avesso. Mescla o rito de passagem da garota de oito anos, Elli (Ayline Aksoy-Etaix) e os descaminhos da trintona Marlène (Marion Cotillard) num balneário da Costa Azul francesa. O que emerge daí é um denso drama-social sobre como o desemprego e as atitudes impensadas podem desestruturar duas vidas.

O próprio leitomotiv, o fato detonador da ação, construído como um momento de felicidade e o início de uma vida de casada, logo cria um impasse. Em meio à festa e juras de amor, Vanessa Filho desconstrói o que seria o equilíbrio nas vidas de Marlène e Elli. Basta um fragrante para a felicidade de ambas se metamorfosear num pesadelo. Mas é através desta construção dramática que ela estrutura as duas personagens centrais do filme, ao mostrar o quanto a mãe é volúvel e a filha dada a imitar suas piores fraquezas. E além disso não a deixa ser simplesmente criança.

Trata-se, sem dúvida, de um filme de personagens, centrado em duas histórias paralelas, sem configurar subtramas. Isto porque Vanessa Filho não alterna o que se passa com a mãe num ambiente e a filha noutro. Prefere desenvolver a ação em Elli e Marlène na primeira parte do filme e apenas na garota na segunda e na metade da terceira parte. E centra sua narrativa nas fragilidades da filha e na inconstância, negligencia e desapego forçado da mãe à garota. Isto cria um mistério que a diretora/roteirista não elucida, nem precisa, logo se percebe que ela ganhou o mundo. Isto põe o espectador/a em contínuo desconforto e medo.

Marlène integra o exército de desempregados

A história, no entanto, não é intrincada ou hermética, mas de grande impacto, sem os velhos truques de criar suspense e mistério. Enfim, Vanessa Filho com sua câmera fixa, os planos bem construídos em cenários realistas, vai moldando a visão do espectador/a, enquanto o põe em contato com duas personagens desestabilziadas. Ela não usa nem o

truque de colocá-las diante de uma garotinha charmosa, cativante, inocente e frágil. Após a impensada atitude da mãe, Elli se vê sozinha com ela no apartamento, sem qualquer possibilidade de terem uma vida estável.

Como ocorre nos dias de hoje, Marlène integra o exército de desempregadas. Vanessa Filho enquadra-a bem penteada e de vestido colado ao corpo diante do prédio da repartição pública responsável pelo seguro desemprego. Por seu retraimento e o modo como se afasta, percebe-se que ela não teve sucesso. Não lhe bastou ter posto seu casamento abaixo, agora nem a proteção social terá. O primeiro impacto sobre Elli é encontrá-la desacordada e nada poder fazer. O desespero leva Marlène a buscar a reconciliação com o quase companheiro Jean (Stéphane Rideau), mas sua tentativa acabou frustrada, devido ao desmedido erro.

São nestas sequências da primeira parte do filme que Marlène, como forma de compensação para a filha e escapismo para si, percorre bares e boates com ela e sua amiga e vizinha Chiara (Amélie Daure). Nestes recantos noturnos, a garota dança e bebe, a ponto amiga lhe chamar atenção: Marlène, sua filha está tomando todas! Ao que ela retruca: Quem liga? Estamos nos divertindo! Esta “diversão”, construída numa sucessão de mudanças de bares e boates, verdadeiro frenesi de dança e bebida, torna-se o início do rito de passagem às avessas de Elli, ditado pela mãe.

Filme é centrado na garota Elli

Desta forma, desencantada com os sucessivos fracassos, Marlène perde o senso de realidade e responsabilidade pela educação da filha. São duas amigas, ao que parece, divertindo-se na noite com Chiara, com a qual formam um trio. Esta é a reversão do papel da mãe solteira, responsável pela criação da filha sem ter sustentação financeira, psicológica e ciência de si mesma, devido às suas próprias e más escolhas. Ela termina por entrar num frenesi noturno em roupas de damas da noite, logo deixando Elli sozinha em casa, se alimentando às vezes de restos de comida e leite.

Da segunda parte para a frente, Vanessa Filho centra a ação deste “Meu Anjo” na filha. A mãe se perdeu nos desvãos da vida e nem notícia dá. A única que ainda aparece é Chiara que, ao admitir que não sabe tratar dela, também a deixa entregue a si mesma. Porém, ela não se desespera. Se vira com o que tem. Esta forma de ir aos poucos transformando a garota numa sobrevivente em meio ao abandono, permite a Vanessa Filho moldar seu rito de passagem, não de vítima, mas de quem passa a se dar conta do que realmente se passa consigo. E a partir daí se situar no mundo.

Desta forma Elli amplia seu universo para conhecer seu entorno, seus frequentadores, os perigos e a forma de dele escapar. Numa sequência, Elli depara-se com o garoto um pouco mais velho do que ela, que a assedia. E ele lhe pergunta “se já dormiu com alguém” e beija-a. É sua perda de inocência, há algo mais na vida. Sua reação, no entanto, é de uma garota que reage vestindo-se como a mãe, bebendo e se refestelando na cama. Não bastasse, ainda não se sente segura, bebe o que restou da garrafa e grita pela mãe. São ainda os resquícios da inocência perdida.

Existe um mundo de Pixotes e Ellis

A metáfora de Vanessa Filho para esta sequência, é a de Elli estar numa piscina vazia, onde não pode nadar. Ela, contudo, retorna ao canto da praça e reencontra o garoto, que a abraça e lhe dá uma moeda. Lhe permite ainda beber no bico da garrafa. Sequência de grandes filmes, para não dizer obras-primas, dotadas de imagens de grande impacto. Aqui é da antecipação do desejo e do prazer, ainda não tudo satisfeito. São duas crianças na plenitude das buscas, tentativas e explorações do sexo oposto. E a imersão num relacionamento ainda não pleno. Nada de inocente há.

Estas construções dramatúrgicas da diretora-roteirista revertem a dos filmes que tratavam dos garotos e garotas deserdados, envolvidos com o tráfico de drogas, o roubo, o assassinato, como em “Cidade de Deus (2002)”, de Fernando Meirelles (1955), adaptado do livro homônimo do escritor carioca Paulo Lins (1958). Ou mesmo “Pixote, A Lei do Mais Fraco (1980)”, de Hector Babenco (1946/2016), baseado no livro homônimo do jornalista José Louzeiro (1932/2017). Neste “Meu Anjo” é a marginalização de Elli e seu contato rápido com os pequenos marginalizados, o desejo, a bebida e a vida noturna, cujo aprendizado veio forçadamente através da mãe.

Deste modo, Vanessa Filho mergulha no degradado meio social, distante da proteção à criança. Existe o mundo dos pixotes, mas também o dos garotos e garotas de rua que faz Elli se antecipar ao que demarcaria seu rito de passagem. É o outro lado, visto pelo olhar de quem enxerga as ciladas e a realidade de seu próprio país via ficção e cruas imagens e a história da perda da inocência. Conta muito, o modo como a diretora/roteirista estrutura as sequências de rua a envolver os dois atores mirins. Os diálogos são rápidos e os afagos mais ainda. Entende-se o cuidado para não os tornar fortes e embaraçosos para os dois intérpretes.

Relação de Elli com Júlio é de pai e filha

Contudo, o único elo a não se perder é a ligação de Elli com a escola. Continua a ir às aulas e participar das atividades escolares, sem menção alguma ao que ocorre em sua vida, mesmo tendo sido abandonada pela mãe. Ainda assim, sua falta é notada, quando se tranca em seu apartamento. A presença do aluno é obrigatória e a ausência deve ser justificada. Por meio desta menção, Vanessa Filho atesta a explícita participação do Estado na vida da garota por meio da educação. É, além disso, o que evita sua marginalização completa da sociedade em que vive.

Estas construções narrativas tornam-se ainda mais tocantes na terceira parte, quando a ausência de Marlène se prolonga demasiado e Elli já não conta com ela. Vive na rua e em meio a situações degradantes. A introdução do personagem central desta terceira parte do filme surge na figura do jovem e solitário Júlio (Alban Lenoir), morador num trailer à beira da montanha a dar para o mar. Ele a resgatará para uma convivência em princípio conflituosa, pois ela se tornou agressiva e independente demais. É com ele, entretanto, que a agora esperta Elli terá de conviver. Ele, inclusive, a surpreende jogando pedra em seu trailer, em inusitada reação.

A estruturação elaborada por Vanessa Filho não é de dependência, mas de convivência. Embora aja com agressividade com Júlio, Elli sabe que precisa dele. E os dois terminam por se entender, ele mais calmo e dono de si do que ela. Aos poucos ela se abre e lhe confessa que a” mãe morreu”. Dá, assim, a ideia de que não tem mais ninguém. Há certa melancolia e senso de perda em suas palavras. O que traduz o estar só no mundo. “Não sei quem é meu pai. Foi tudo no escuro”. Não há ódio em suas palavras, tão só a busca de quem preencha os espaços deixado pelos pais.

Garota já não se preocupa com a mãe

O espectador pode ver nestas sequências e nos diálogos certo sentimentalismo ou mesmo tendência de Vanessa Filho à proteção paterna. Felizmente, não se trata disso. É simples escolha dramatúrgica. Ela aprofunda a relação de Elli com Júlio, com ela vendo nele segurança, amizade, proteção, a ponto de numa discussão, ainda que ele não o queira, termina ouvindo-a lhe dizer: você é meu pai. Uma chantagem ou carência de afeto de quem a protege do perigoso universo no qual passou a viver. Inclui-se assim no rol das necessidades afetivas, paternais. A relação entre eles então se torna mais moldada à necessidade de ambos.

Desta convivência brota a tranquilidade, a confiança e a segurança. Júlio leva-a à escola e presencia suas atividades. Numa delas terá o papel principal numa peça de teatro. Ela está segura, disposta à representação, devido à simples presença dele. Júlio, inclusive, a livra do assédio dos garotos. É, finalmente, o pai que ansiava ter. Ela já não se preocupa ou menciona Marlène. O clima decorrente desta afetuosa relação é contrastado por Vanessa com a aridez do cinzento ambiente, o barulho das ondas ao se chocar com os contrafortes da montanha. Os dois se entregam à natureza, da qual fazem parte. É quando Júlio revela a Elli seu passado.

O próprio espectador já justificou para si a convivência dos dois, como se Marlène já pertencesse às sombras. Notícia alguma tiveram dela desde o período que se fora. Vanessa Filho monta o desfecho, como se a mãe fosse uma intrusa na tranquilidade e proteção vivida pela filha. O elo entre elas se perdera. Sua simples presença nos ensaios da peça provoca desmedida reação de Elli, eivada de ódio, desprezo e repulsa. Toda construção afetiva, paterna, entre ela e Júlio esboroa. E a culpa brota ao longo de minutos, numa chocante busca, digna dos filmes noir dos anos 50.

Filme de Vanessa Filho é sensível ao dilema de Elli

Difícil deixar a sala de projeção sem a sensação de ter visto um filme sensível ao dilema, o abandono e a fragilidade de Elli. Existem milhares de Ellis pelo planeta, mas também de igual proporção de Marlènes, cujas vidas foram afetadas pelas más escolhas, que não levaram em conta a responsabilidade com a filha ou o filho. Mesmo assim, Vanessa Filho não culpa Marlène por suas derrapadas, ao demonstrar ser ela uma vítima não só de seus infortúnios como dos erros da própria sociedade capitalista em que vive. Devido ao seu comportamento escapista e negligente acabou recebendo tão só o desprezo como recompensa. Um final nada simbólico para um mundo tão convulsionado de incertezas, como o atual, onde cada um tenta se salvar do naufrágio coletivo. Mas nem todas as portas estão fechadas, basta encontrá-las.

Meu Anjo. (Gueule d´ange). Drama. França. 2018. 108 minutos. Trilha sonora: Audrey Esmäel/Olivier Coursier. Edição: Sophie Reine. Fotografia: Guilaume Schiffmann. Adaptação e diálogos: Vanessa Filho/Diastème. Roteiro/direção: Vanessa Filho. Elenco: Marion Cotillard, Ayline Aksoy-Etaix, Alban Lenoir, Amélie Daure, Stéphane Rideau.

Assista o trailer:


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