Bolsonaro anuncia uma política externa caótica e anti-nacional

 Foram apenas duas semanas de Bolsonaro como presidente eleito – ainda sem sequer ter sentado na cadeira – e seu inventário de desvarios já é enorme. O quanto dessa retórica de campanha, agora convertida em arrogância inconsequente, se tornará de fato política do futuro governo?

Ilustração: Tainan Rocha/Quanta Academia de Artes

Bolsonaro é um chefe de facção, não uma liderança política.
 
Como tal, ele não saberá desempenhar o papel institucional que se espera de um presidente. Sua entrega de pedaços inteiros do Estado, com a porteira fechada, a quem o levou ao Palácio do Planalto demonstra sua ausência tanto de liderança como de capacidade para articular a composição de um governo para a complexidade que é o Brasil.
 
Paulo Guedes é o mercado, em sua versão ultra-liberal e sem qualquer compromisso com a democracia. Foi a garantia da entrega da política econômica a ele, um rancoroso chicago boy funcionário da ditadura de Pinochet, selou o apoio do mundo do dinheiro a Bolsonaro. Já Sérgio Moro, o outro ministro que Bolsonaro não poderá demitir, é o representante de um Judiciário que viola sistematicamente as garantias constitucionais e que, agora, deixa cair sua máscara de isenção para quem ainda acreditava nela.
 
Os dois falam e se comportam com a arrogância de quem manterá o presidente eleito em rédeas curtas.
 
Fechado no bunker que é mais propriamente seu, Bolsonaro se escora em pastores evangélicos e traz para a esfera pública a intimidade da vida religiosa. Sincera ou não, é nela que Bolsonaro quer manter seu elo direto de comunicação com o povo. Como tudo tem seu preço, também os religiosos cobram sua parte. Os apelos patéticos de um Magno Malta (o camelo para o qual se procura um deserto, nas palavras singelas do vice-presidente eleito) por espaço são um exemplo, mas não o único.
 
Quando olha para o lado, Bolsonaro ainda tem no seu cangote alguns generais da reserva com fome de poder e ideias que não se sustentam na democracia. Esse casamento contraditório das corporações do Estado (militares e a fatia politizada do Judiciário) com o antagonista do próprio Estado, o mercado na versão mais ultraliberal, em uma celebração realizada por religiosos conservadores tem suas fragilidades à vista.
 
O que se anuncia é um governo errático, com um Executivo pulverizado em muitos polos de poder, para além do Palácio do Planalto.  Quando estiverem nos cargos, as “desautorizações” que Bolsonaro utiliza não serão suficientes para conter os estragos de seus superministros e entourage nas relações internas ao governo e, muito menos, nas com o Congresso, o Judiciário constitucionalista e mesmo setores também constitucionalistas das forças armadas.
 
Por isso, ainda é cedo para se avaliar a força desse governo para emplacar a versão expandida de seu pacote de maldades. Mesmo assim, a gravidade do que está na mesa por si só obriga à resistência: promessas de um estado policial, ataques contra professores e a liberdade de pensamento, fim de ministérios tão importantes quanto emblemáticos (como o do Trabalho, uma conquista histórica dos movimentos sociais), juras de ódio contra o BNDES, maior financiador do desenvolvimento brasileiro, armas apontadas contra o IBGE… e a lista continua.
 
De toda ela, foi nos comentários dispersos sobre política externa que a mistura de despreparo e hipocrisia se apresentaram em sua melhor forma. Bolsonaro repete, de forma mais grosseira, a “acusação” que os conservadores brasileiros sustentam há anos contra a diplomacia inaugurada por Lula: ela seria "ideológica". Isso é absurdamente falso. O Itamaraty de Lula foi autonomista. Sua defesa dos interesses brasileiros não via apenas o dia seguinte, mas as próximas décadas. Boa parte da incompreensão quanto aos objetivos daquela política externa veio, aliás, da falta de visão estratégica e geopolítica de seus críticos.
 
Se, em termos muito pouco precisos, se chamar de “ideológica” uma política externa que sacrifica os interesses reais do país em prol das convicções pessoais dos seus governantes, nenhuma é mais “ideológica” do que essa que tem sido pontuada por Bolsonaro e seu entorno, inclusive com prejuízos já causados ao Brasil.
 
Em mais uma demonstração da bagunça arrogante que se anuncia sobre Brasília, Paulo Guedes também assumiu as vezes de chanceler e declarou que o Mercosul não é prioridade para o Brasil. O bloco é fundamento da integração regional e produto direto da redemocratização que se seguiu no continente após o último ciclo de ditaduras. Não espanta que Guedes se incomode com ele, mas, com essa declaração, ele conseguiu alarmar os países vizinhos, com quem o Brasil mantém um comércio altamente favorável.
 
Quando questionado sobre qual seria então a prioridade do país, o mesmo Paulo Guedes apresenta a platitude de uma expressão como “os países do mundo”. Em resumo, eles não têm qualquer estratégia. Ou melhor, seu horizonte é tão raso quanto a cartilha de privatizações, estado mínimo e cassação de direitos.
 
Em outro momento ilustrativo, Bolsonaro conseguiu atrapalhar os negócios de muitos de seus eleitores ricos ao anunciar que pretende transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. Como resultado, uma visita oficial do atual chanceler, Aloysio Nunes, ao Egito foi cancelada pelo anfitrião. Agora, os empresários brasileiros que esperavam fechar negócios podem se perguntar sobre os efeitos nocivos de uma abordagem tão “ideológica” das relações internacionais. O que o Brasil tem a ganhar, em termos bem realistas, com essa transferência da embaixada?
 
Mas em uma linha não há vacilação: Bolsonaro acredita na vantagem de um alinhamento automático ao governo Trump. O presidente eleito está produzindo uma versão ainda mais servil para a infeliz tradição de obedecer a Washington: ele quer Brasília orientada não pelos EUA, mas pelo governo de Donald Trump.  
 
Será a cegueira “ideológica” ou o despreparo puro e simples que impedem de ver o quão tortuosa é a política externa da atual Casa Branca? Trump fracassou na tentativa inicial de distensionar as relações com a Rússia (muito em parte por resistência forte no seu próprio campo) e não conseguiu tornar um feito aquela que seria sua maior realização: a paz com a Coreia do Norte. Além disso, a falta de clareza quanto aos objetivos de sua guerra fria contra a China – à qual Bolsonaro também manifestou adesão – contribuem para um cenário ainda mais conturbado e sem vitórias a ostentar. De novo, onde estariam os ganhos para o Brasil?
 
Se Trump não conseguiu apresentar nenhuma linha segura para o que pretende em política externa, ao menos uma certeza deixou: ele não liga a mínima para a América Latina. Pratica o exercício norte-americano de dominação por meio de seus delegados e prepostos, posto para o qual Bolsonaro quer se qualificar de forma servil e desonrosa para os interesses nacionais. O adesismo é ruim por si só, mas o do governo que assumirá em janeiro consegue ser ainda pior.
 
Mantendo os termos realistas (não “ideológicos”): Trump acabou de sofrer uma derrota eleitoral com impactos importantes. Não foi esmagado, como seus opositores desejavam, já que viu seu partido manter a maioria no Senado dos EUA, o que lhe manterá certas condições de exercício do poder. Contudo, perdeu a maioria na Câmara para a oposição democrata, que deverá tornar os seus últimos dois anos de mandato uma via crucis de convocações de secretários, investigações e, no limite, um processo de impeachment.
 
A segunda metade do governo Trump será de aprofundamento da luta interna que ele mantém contra a oposição partidária e institucional. Nessas condições, terá como emplacar alguma iniciativa, sem ainda sequer ter conseguido dizer a que veio? Poderá recompensar apoios tão fiéis quanto gratuitos como o manifestado por Bolsonaro? E se Trump não conseguir a reeleição, como o governo brasileiro se comportará? Como uma Casa de Branca de Elizabeth Warren ou Bernie Sanders lidaria com um Bolsonaro? Alguém da equipe de transição lá de Brasília tem uma massa crítica mais elaborada sobre essas questões?
 
Política se externa se faz com realismo e olhos postos principalmente no futuro. O fanatismo das posições de Bolsonaro é o contrário do que o Brasil precisa em um cenário internacional em transformação.

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