“O que de verdade importa” – Renegados poderes

Nesta mescla de filme sobre a crença e a ciência, cineasta mexicano Paco Arango desconstrói clichês e certezas ao tornar realista a sua narrativa.

Deve-se creditar ao cineasta mexicano Paco Arango (1966) a ousadia de descontruir os clichês dos dramas que tendem a dotar sua narrativa de crença, piedade e salvação. Prefere tratar da busca pela cura de forma realista, a partir do personagem menos dotado para encarnar o curador/salvador. O escolhido para personificá-lo, o jovem inglês Alec Baily (Oliver Jackson Cohen), é técnico em conserto de eletrodomésticos, mulherengo, endividado em razão de suas péssimas apostas em corrida de cavalo, e perseguido pelo crime organizado. Até o sócio o abandona.

Desta forma, Arango inverte a costumeira escolha de quem se mostra humilde, piedoso e capaz de desmedidos sofrimentos. Só assim terá os poderes necessários para se tornar o curador crível para o espectador. Trata-se sem dúvida de ótima matização do personagem a predominar neste “O que de verdade importa” desde o início. Entretanto, Arango não dá nenhuma pista nestas sequências sobre o tipo de narrativa que virá a seguir, salvo pela súbita mudança de ambiente durante encontro de Baily com seu tio Raymond (Jonathan Price), num escritório em Londres.

A forma enigmática como ele, a partir daí, é forçado a mudar de Londres para a pequena Nova Escócia, no interior do Canadá, não dá pista do que de fato acontecerá com ele. Tudo lhe parece uma cruel sentença por suas estripulias, imaturidade e inconsequência. Mesmo tendo de morar num sobrado à beira do lago, a única de forma de se locomover é dirigindo a velha caminhonete pintada em cores berrantes. E para não fugir às suas velhas práticas, acaba sendo flagrado e preso pelo delegado Frank (Pasha Ebrahimi) à beira da estrada por estar bebendo cerveja dentro veículo.

Baily recusa o poder hereditário

É com estas caracterizações que Arango expõe para o espectador na primeira parte do filme o que esperar de Baily. É uma forma de prepará-lo para as mudanças que virão a surpreendê-lo na segunda parte, quando Raymond explica ao sobrinho o que, de fato, espera dele na Nova Escócia. É uma revelação a respeito do poder da família Baily ao longo de gerações. O que surpreende e irrita o jovem herdeiro. Ele não admite ter os poderes a serem atribuídos a ele e os recusa, por não se ver como o tio lhe garante. E inclusive lhe pede um tempo para se atinar aos seus herdados poderes.

Arango aborda aqui a negação da crença e do poder curador. Em momento algum trata de religião ou da recusa desta. É só um modo de discutir o direito de cada um optar ou crer no que lhe toca fundo. Baily não se vê, de forma alguma, enquadrado nestas reafirmações, pois seu irmão Charlie acabara de morrer e fora o último curador da família e lhe caberia dar continuidade ao elo de várias gerações. Nem mesmo Cecília, a amiga farmacêutica, consegue fazê-lo aceitar ser curador dos moradores da pequena cidade e, claro, de toda a redondeza. Para ele era só imposição.

De fato, ele não se entendia como tal por não o sentir dentro de si. Numa aparente contradição construída por Arango de forma brilhante, não se tratava de aceitação, mas de transferência do dom de curar. E a exemplo do curador mineiro de Pedro Leopoldo, Chico Xavier (1910/2002), era uma missão terrena, que arrasta multidões de desvalidos em busca da cura de seu mal. Depende não só dele, mas destes acreditarem de que é possível sair de um encontro curado. E se Baily não se movesse, bastava que os desvalidos se mantivessem perto dele para a cura se efetivar de imediato.

Padre Malloy perdeu a crença

A sequência mais dotada de significado no filme é o encontro de Baily com o padre Malloy (Jorge Garcia), pároco da igreja católica do lugarejo. Ambos representam supostamente crenças opostas, sem ao menos discuti-las abertamente um com o outro. E deste modo acabam entrando no mais perigoso atrito deste “O que de verdade importa”. Não devido à ao ciúme por um deles estar conquistando os seguidores do outro. Mas em razão do temor de Malloy de que Baily termine por contestar sua autoridade religiosa junto aos moradores e, portanto, seus fiéis. O confronto entre eles desanda numa tragédia inexplicável para ambos.

São linhas de crenças tão dispares quanto inaceitáveis para eles. Não que Baily as visem assim, continuava descrente de seu poder e não atribuía a si as curas que poderiam vir a lhe ser atribuídas. Arango, com o cuidado e a flexibilidade que tais abordagens exigem, estrutura a melhor sequência de seu filme ao fazer, como roteirista e diretor, Malloy confessar a Baily suas hesitações e fragilidades, ao lhe dizer: ”Perdi minha fé em Deus”. E embute aqui sua incapacidade de fazer milagres e curar, buscando apenas a benção de Deus. E esta nunca viera, mas com Baily era diferente.

Quem, de repente, atenua sua aflição é o próprio Baily com sua descrença, ao não propagar o que acabara de ouvir dele, Malloy. Não é de forma alguma uma construção vazia de parte de Arango, nem o cinema se presta a tais discussões com a profundidade exigida. Salvo o cineasta e filósofo italiano Paolo Pasolini (1922/1975), em sua obra-prima “O Evangelho segundo São Mateus (1964). A partir daí Baily não fica mais sossegado, sua casa é invadida, não pode andar na rua. Toda hora surge alguém que lhe atribui uma cura. O idoso já não gagueja, a garota passa a enxergar. Ao invés de sentir-se encorajado, ele continua descrente.

Abigail encanta Baily e Cecília

O mais interessante neste “O que de verdade importa” não é a trama em si, mas como Arango introduz os personagens que fazem a narrativa avançar sem perder o fio central. Principalmente na terceira parte da narrativa quando surge a bela e falante adolescente Abigail (Kaitlyn Bernard), vinda de muito longe com seus pais para, quem sabe, obter a cura de um tipo de câncer raro. Desenganada por vários médicos, ela atrai Baily e Cecília por sua capacidade de encantar e envolver. Falante e vigorosa, mesmo sabendo-se em fase quase terminal, ela não fraqueja.

Há aqui uma conjunção de sua luta pela vida e o desafio a quem é dotado de poder de salvá-la. Abigail torna-se não só amiga como o elo entre Baily e Cecília, por ver neles mais que amigos. Ela tenta com isto atrair a atenção mais dela do que dele. Conta muito o charme e a insistência com que os envolve, a ponto de revelar intimidades, verdadeiro segredo entre os dois. Embora Arango faça o espectador torcer para seu sucesso e, enfim, que ela seja atendida por Baily, nada o demove de suas negativas. Nem Raymond o faz livrar-se da ideia de não se envolver na crença alheia.

Na verdade, estas construções dramatúrgicas tendem a não fugir do eixo da trama para evitar antecipar o desfecho. Toda a trama desde o início não pôs a crendice em oposição à ciência. Esta sequer é mencionada ao longo da narrativa, tampouco nas hesitações do padre Malloy. Ele se torna seguidor de Baily, mais por uma questão de foro íntimo, porquanto sua posição de pároco o impede de se revelar seguidor de Baily. Arango tende, assim, a não confundir o espectador, dando ao filme duas linhas narrativas opostas, nem como subtramas. Daí concentrar a parte final em Abigail.

Arango não pende para nenhum lado

Há explícita razão para ele adotar este fio narrativo, pois a doença terminal da garota faz ligação direta entre religião e ciência. Ou seja, a metafísica e o materialismo. Um se prende ao imaginário e depende da crença cujo resultado é de difícil confirmação, mas que provoca a credibilidade de quem levou à cura da doença. Por outro lado, seu oposto, é explicável, plausível, de confirmação por métodos e sistemas científicos desenvolvidos ao longo de décadas. A validade deste “O que de verdade importa” reside justamente em não pender nem para um ou para o outro.

O espectador pode ver nisto o receio de Arango, como mexicano, oriundo de um país fervorosamente católico, não querer provocar polêmicas. Seu filme, no entanto, envereda para a visão de que ambos são compatíveis numa sociedade pluralista. Ainda assim, Abigail torna-se o centro da narrativa na terceira parte do filme, ao concentrar a atenção de Baily e Cecília, na tentativa de evitar voltar aos hospitais e clínicas de tratamento do câncer. Arango muda então o foco dramático-narrativo para o impasse entre a crença e a ciência, pondo toda a pressão sobre Baily.

O elo feito entre ele e Cecília e a adolescente torna-se uma mensagem em que ela lhes comunica a notícia que acabou de receber. E assim termina por justificar toda a narrativa estruturada por Arango sobre a crença, mas nela estava oculta sua opção pela ciência. Esta, sim, evoluiu nos exames e no tratamento do câncer num hospital de outra cidade, a ponto de Abigail informar o resultado exultante, atribuindo-o aos médicos que a trataram. Mas sem deixar de o creditar também a Baily, numa espécie de crença de que se não fosse ele, ela não estaria tão feliz quanto agora.

Estética de Arango foge ao clichê

Esta forma de Arango equilibrar seu desfecho deixa ao espectador a certeza de haver espaço tanto para um quanto para o outro. Se a ciência lida no espaço do confirmável, a crença transita no do emanado de poderes não evidenciados concretamente, mas também criveis pelo resultado. E Arango ao optar por esta visão dualista, acaba confirmando a necessidade da convivência entre a ciência e a crença, sem estigmatizar ou excluir um ou outro, dependendo da religião professada. Não é tão ruim quanto parece, depende só do futuro, quando as fendas entre os dois forem apagadas.

Não menos elogiável do que a abordagem é a estética, a forma como Arango desenvolve sua narrativa em cenários naturais. Se vale de paradisíacas paisagens, lago, rio, floresta para matizar seu tema. A maioria da ação transcorre ao ar livre, ressaltando a convivência entre os

personagens e a natureza. Nos ambientes fechados, contudo, não pontificam luzes esmaecidas, sombras e ruídos das profundezas. E tampouco há velas e vozes eivadas de contrição e religiosidade. Mesmo nas cruciais sequências entre Malloy e Baily na igreja católica, nem música sacra se ouve. Com isto, Arango escapa à infindável repetição da mesmice.

Conta para isso a construção dos personagens e a forma como são enquadrados. Sempre Baily e Cecília à frente e os desvalidos à distância, raramente juntos. A única a quebrar tais enquadramentos, por se manter próximos deles, é a adolescente Abigail. Há nisto a capacidade de Arango mostrar ao espectador a reverencia ao curador, ainda que este se recuse a sê-lo. E se no desfecho, Baily termina em triunfo, não foi por sua crença ou aceitação deliberada do que lhe foi atribuído. Nenhum juramento ou adesão fez para merecê-los. Seus poderes mediúnicos vêm de onde não lhe foi explicitamente revelado. De qualquer forma, não é isto que importa.

“O Que de Verdade Importa”. (The Healer). Drama. Canadá. 2017. 113 minutos. Trilha sonora: Nathan Wang. Montagem: Tereza Font. Fotografia: Javier Aguírresarobe. Roteiro/direção: Paco Arango. Elenco: Oliver Jackson-Cohen, Camila Luddington, Jonathan Price, Kaitlyn Bernard, Jorge Garcia, Pascha Ebrahimi.

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