“Estas me matando, Suzana”

Desenfreada paixão

Em ritmo de comédia ligeira, cineasta mexicano Roberto Sneider discute paixão, machismo e o direito de a mulher fazer suas próprias escolhas.

Nada acontece neste “Estas me matando, Suzana” fora da vivência do espectador acostumado a presenciar tempestuosas relações conjugais ditadas pelo ciúme a motivar uma paixão doentia. Pode vir tanto do homem quanto da mulher, ainda que um deles suporte mais tal demonstração de possesivo amor. No caso do jovem ator Eligio (Gael Garcia Bernal), ele se vê de repente numa embaraçosa situação, que o fará sair em busca de sua companheira Susana (Verônica Echegui) na Universidade do México onde ela leciona Literatura e no estado de Virginia, nos Estados Unidos.

Com estas motivações, aparentemente corriqueiras, o cineasta mexicano Roberto Sneider estrutura o tema central, a partir da adaptação do romance “Cidades Desertas”, de seu compatriota José Agustin. O que lhe interessa é o direito de a mulher escolher seu próprio caminho, mesmo já casada. Seria um denso drama de alta reflexão, mas ao adaptar a obra para o cinema com seus co-roteiristas Luis Câmara e o próprio Agustin, ele inverte a abordagem, clima e ritmo, transformando-o numa comédia dramática, sem perda do conteúdo original. Trata-se do grande achado deste seu filme, pois a narrativa transcorre em incrível velocidade.

Eligio, jovem ator em ascensão, com peça em temporada, tenta desde o início desvendar o paradeiro de Susana, pois este se transformou num mistério. Nenhuma amiga ou amigo sabe onde ela se enfiou. Ele então embarca numa desenfreada jornada que chega à cidade universitária do lugarejo de Middlebrook, na Virgínia. Está ali por mero tirocínio, pois informação alguma tinha se ela, por alguma razão, tivesse decidido radicar-se no país vizinho. Susana, ao contrário dele, é introspectiva, dada a silêncios, de grande beleza, o que leva seu ciúme à exasperação.

Estadunidense Irene se interessa por Eligio

É também nesta procura que Eligio se torna o centro das atenções da jovem loira estadunidense Irene (Ashley Grace), que o ajuda a localizar Susana. Ela, ao contrário desta, não é de sutilezas, nem de precauções. Tampouco a verve latina do mexicano o impede de mostrar o quanto ele é caçador, pois, ao invés de fugir ao assédio, se mostra aberto às avançadas da bela e sorridente Irene. E assim o flerte deles se torna uma das subtramas desta narrativa bem tecida por Sneider, sem perder o matiz cômico. E quando o espectador pensa que a história vá mudar de curso, ele o mantém atinado aos fios da trama, para captar seus sentidos.

O acelerado ritmo das situações e os equívocos nos quais Eligio se envolve ganham traços das comédias ligeiras hollywoodianas das décadas de trinta e quarenta, como “Levada da Breca (1938)”, de Howard Hawks (1896/1977). Numa das bem elaboradas sequências deste “Estas me matando, Suzana”, ele dá o cano no motorista de táxi estadunidense por ele lhe cobrar U$ 80 dólares (R$ 296,00 reais, à cotação de 29/10/2018) pela corrida. Afinal foi por um curto trajeto. E o taxista e a polícia militar o perseguem pelas ruas e inclusive no campus da própria universidade.

Mas não só a procura de Susana dá a dimensão do que ocorre na universidade, na qual ela poderia estar. Noutra importante sequência, ao entrar na sala com Irene, Eligio presencia o patrocinador estadunidense do seminário literário orientar o grupo de escritores de vários países a passarem boa imagem dos Estados Unidos em suas obras. Deste modo a construção dramática de Sneider transforma-se na denúncia da manipulação do evento patrocinado pelos EUA. É neste meio, a mostrar em que Suzana se envolveu, que Eligio descobre seus reais envolvimentos.

Polonês surge na vida de Susana

Como se vê, Sneider conduz sua narrativa através do crítico olhar de Eligio. E a Susana a surgir diante dele é mais enigmática do que ele imaginava. Devagar, surge o já maduro poeta polonês Slawormir (Byörn Hlynur Haraldsson), com quem terá de dividir a atenção dela. Em princípio o que emerge é o ciúme, logo substituído pelo machismo e o destempero. Por todos os meios e ameaças e questionamentos, ele tenta demovê-la da ideia de continuar no seminário, porquanto ela nada comentou com ele. É outra Susana, não a companheira com a qual se acostumara a conviver e amar enlouquecidamente. E naquele instante ainda mais.

O espectador então se defronta com outra situação não menos desestabilizadora da relação dele com a jovem mulher à sua frente. Como não o comunicou ou comentou, ela continua a nada lhe revelar, tampouco mostra-se disposta a embarcar de volta com ele ao México. O modo como o negligencia ao sair tranquilamente com Slawormir, atesta o quanto distante parece estar do “ex-amado”, E, além disso, se dispõe a seguir seu caminho sem lhe prestar qualquer esclarecimento. Só a explosão dele eivada de xingamentos sob o olhar distanciado do polonês a faz ouvi-lo.

Ambos são jovens, só vivem juntos, portanto nem uma família constituem. Assim, ela se vê desembaraçada. Algo maior, porém, se interpõe entre eles. E Eligio se dá conta do que se passa. Em sua cabeça só existe o poeta polonês a se pontificar entre eles. Há muito de romântico na visão e no amor dele pela mulher que motiva sua desenfreada paixão. E o modo como o altíssimo Slawormir se veste, sempre de preto, de longos cabelos e a barba crescida, transforma a belíssima Susana numa virgem a ser protegida do conde feudal que se apossou dela. Ele é o guerreiro a libertá-la o quanto antes de seu algoz.

Eligio descobre que Susana tem amante

A esta visão medieval acrescente-se a de ele vê-la como sua propriedade, não só objeto de uma incontrolável paixão. Afinal ela é sua mulher, como sempre repete. E, além disso, exige que ela volte com ele para a Cidade do México, sem ao menos ouvi-la. Sequer lhe indaga porque ela se separou dele daquela forma e ainda por cima tem um amante. Por ser impositivo demais, senhor absoluto dela, Susana não lhe explica o que motivou, de fato, sua decisão de estar participando de um seminário literário numa universidade estadunidense e, além disso, pondo-o diante de seu amante. Nadas disso jamais lhe passara pela cabeça.

Sneider cria, desta forma, sequências de forte impacto tanto para Eligio quanto para o expectador. Mesmo sendo a história adaptada de uma ficção literária, eivada da realidade cotidiana de milhões de casais heteros-sexuais mundo afora. Entretanto há uma dualidade a considerar: Susana enfrenta Eligio ao seu modo, como se desprendesse dele e começasse a agir como uma mulher disposta a fazer valer sua liberdade, ainda que se valesse do amante para reafirmá-la diante de seu companheiro. Motivações difíceis de fazerem com que ele entendesse suas razões.

Não bastasse esta elogiável sequência em que Eligio descobre que Suzana tem um amante, Sneider estrutura outra ainda mais emblemática. Nesta ele retoma o humor e o ritmo da comédia ligeira em tons dramáticos. Eligio e Slawormir, para o desespero de Susana, trocam socos num estreito espaço do andar em que estavam, como se o vencedor a levasse como troféu para casa. E o gigante polonês acerta o baixinho mexicano com um direto na testa, levando-o a gritar: Isso dói! Ela se põe a socorrê-lo, mas eles voltam a se defrontar e Slawormir leva uma pedrada na cabeça.

Filme de Sneider é digno do bom cinema

Dá para rir, mesmo sendo Susana o troféu. A partir destas sequências em acelerado ritmo, a alucinação toma conta do mexicano e ele se desdobra para reencontrar a amada. E a câmera de Sneider se abre para focar os grandes espaços, matizados pelas rodovias e as montanhas e os vales. São as sequências mais dramáticas e melancólicas deste “Estas me matando, Susana”. Eligio não desiste e por isso sofre mais ainda, sem que ela lhe explicite os motivos de não voltar com ele. E, se não o faz, ele também não a deixa conviver tranquila com o amante e poeta polonês.

Com este tipo de recurso dramático, Sneider termina por eivar de melancolia a paixão de Eligio por Susana. Nenhum deles cede e o impasse termina por se impor. Ele já não procura captar o que os breves momentos de retomada da relação amorosa deles significam, enquanto ela não garante permanecer ao lado dele. No entanto, entre eles está a insistente Irene com sua beleza e charme. A sequência na qual ela tenta mais uma vez seduzir Eligio é o limite para Susana. E, ao contrário de Eligio, é motivo que precisava para livrar-se de fato da impositiva convivência com ele.

O que Sneider dramatiza a partir deste ponto é digno do grande cinema. Em poucas sequências na rodovia em plena nevasca na qual Eligio dirige o automóvel e se perde, Susana termina por lhe mostrar o quanto é mais ardilosa do que ele. Não é, contudo, razão bastante para retomarem a convivência como um casal. Ela evapora, sem deixar rastro algum desta vez. O que o leva a admitir para os amigos, numa mesa de bar na Cidade do México, o quanto errou com ela todo tempo. E sorri amarelo. Este mea-culpa é, desta forma, o fracasso do macho em tempo de baixa e desamor.

Susana não revela suas motivações

O mais interessante nestas construções dramáticas dotadas de humor e suspense para amenizar a aridez do tema é forma como Sneider não perde o fio condutor da narrativa. Ao ressurgir novamente diante de Eligio, Susana continua enigmática, introspectiva e mais segura do que antes. Por mais que ele insista em obter dela as motivações de seus desaparecimentos, ela continua a lhe negar qualquer explicação, pois se trata de decisões por ela tomadas para atender a seus próprios projetos. E a Eligio não cabe julgá-la ou exigir dela qualquer decisão em contrário.

Pode ser radical demais para uns, mas uma boa reflexão terminará por mostrar que Susana, enquanto escritora premiada em sua primeira obra, tem seus próprios caminhos a percorrer e suas escolhas a fazer. Se ela decide retomar a relação com Eligio sem lhe explicar por que o fez é porque não foi lhe dado espaço para que suas escolhas fossem compartilhadas com ele. E, notadamente, não deveria ser ele a dar a última palavra e ela a aceitar por submissão. Sem dúvida, desta maneira, ela não passaria de uma escrava a admitir a exploração sexual e a imposição da presença e desejos dele.

Convivência a dois, como expõem José Agustin em sua novela e Sneider em sua adaptação para a tela, não é contrato em que um dá as ordens e o outro obedece. O desfecho deste "Estas me matando, Susana” remete ao tema da peça do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828/1906) “Casa de Bonecas (1879)”. E também de sua adaptação homônima para o cinema pelo diretor estadunidense Joseph Losey (1909/1984), em 1973, com Jane Fonda (21/12/1937) no papel de Nora. Reflete a opressão vivida pelas mulheres na sociedade norueguesa do século XIX.

A peça tem um dos mais citados desfechos da dramaturgia Ocidental desde então. É de uma contundência e ousadia sem par para a época e continua atual na sociedade opressora burguesa-capitalista de hoje. E ainda é dotada de uma simplicidade e impacto exemplar para a plateia. Nora deixa o companheiro de vários anos sem ao menos se dirigir a ele para se despedir. Desde então é símbolo da atitude de libertação da mulher que se afirma por sua decisão de não se escravizar perante o companheiro. Isso não significa deixar de compartilhar e amar, com respeito a liberdade do/a amado/a, vivenciando a felicidade a dois sem qualquer imposição.

“Estas me matando, Susana”. (Me Estás Matando, Susana). Comédia dramática. México/Canadá. 2016. 100 minutos. Trilha sonora: Victor Hernandez Stumpfhauser. Montagem: Aleshka Ferrero. Editor: Daniel Giménez Cacho. Fotografia: Antonio Cavache. Roteiro: Roberto Sneider, José Agustin, Luis Câmara. Direção: Roberto Sneider. Elenco: Gael Garcia Bernal, Verônica Echegui, Ashley Grace, Byörn Hlynur Hara Idsson.

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