Julieta, Nua e Crua, mito e suas faces

A persistência do legado dos anos 60 e a desconstrução do mito de famoso roqueiro hoje predominam neste drama do cineasta inglês Jesse Peretz.

Não é preciso ir longe. Afinal que tipo de legado restou dos anos 60, quando os ídolos pop influenciavam o comportamento da juventude mundial? Neste “Julieta, Nua e Crua”, o cineasta inglês Jesse Peretz (1969), discute, a partir de novela de seu compatriota Nick Hornby(1957), o que ditou a carreira de um roqueiro estadunidense de um só disco, de grande sucesso na época, mas desaparecido do meio musical desde então. E só não caiu no ostracismo devido ao site musical montado por Duncan (Chris O´Dowd), professor universitário de uma pequena cidade inglesa.

Deste modo, as músicas do roqueiro estadunidense Tucker Crowe (Ethan Hawke) são tocadas e cultuadas cotidianamente. Duncan e seus ouvintes decoraram todas as letras das canções e as repetem enquanto são curtidas em seu site. Trata-se não só de uma preservação musical, mas também de ativismo cultural para preservar a memória de uma época de radicais mudanças político-sociais. As letras das canções, contudo, expõem o romantismo de Tucker, principalmente quando extravasa seus lamentos. ”Não posso seguir seu coração se não sei o que ele sente”.

No entanto, se Duncan ainda o curte, a juventude de seu país não o levou às estratosferas na época como o fez com Bob Dylan (24/05/1941), Prêmio Nobel de Literatura 2016, com suas canções de apelo social. E ele, Tucker, após curta carreira, trocou os shows por uma reclusão à moda hippie numa fazenda em que vive no paiol da casa de sua ex-companheira, nos Estados Unidos. Uma forma de aderir à tendência de segmentos da juventude dos anos 60, que optou por outro tipo de vida, com liberdade e convivência comunitária, longe da sociedade de consumo e do show-biz.

Imagem de mito faz Tucker sobreviver

Esta forma de vida incluía a recusa de estruturar a família seguindo os padrões burgueses. Os casais cuidavam dos filhos comunitariamente. Nem Peretz ou Nick Hornby, um dos quatro co-roteiristas, com Eugenia Peretz, Jim Taylor e Tamara Jenkins, que adaptaram o livro homônimo para a tela, incluem sequências que mostrem a adesão de Tucker a este tipo de sociedade alternativa. Ou seja, seu descolamento da família burguesa-tradicional. E, portanto, explicaria sua relação com três mulheres e os três filhos, um de cada uma delas, e seu afastamento de todos eles.

O que surge, logo primeira parte deste “Julieta, Nua e Crua”, é o carinhoso relacionamento de Tucker com o filho pré-adolescente Jackson Crowe (Azhy Clatworthy) fruto de sua relação com a quarta companheira. No mais o que lhe restou foi apenas seu desligamento da sociedade de consumo. Por certo, sequências intercaladas de subtramas, mesmo com poucas cenas, ajudariam a ter outra visão do que o levou a optar pelo isolacionismo longe da competitiva indústria musical. Ainda assim, seu desencanto brota da forma quase subliminar pelo modo como vive agora.

Estas nuances de sua vida no campo escapam a Ducan e seus fãs na pequena cidade inglesa. Inclusive a incógnita só persiste graças à falta de curiosidade deles em saber como ele sobrevive na vida real. O que importa para eles é a preservação do mito. É isto que Duncan passa sem o explicitar nem para sua namorada Julieta (Rose Byrne), também professora, pois se trata de não se descolar de sua juventude. Mas esta tendência termina por despertar nela o interesse em descobrir as razões de Tucker ter-se desligado do meio musical e se enfurnado no campo.

Julieta quer apenas entender o homem

Enquanto Duncan se fixa na adoração do mito, ela prefere desvendar o homem, pois acha a música dele sofrível e não lhe desperta interesse bastante para curti-lo. Tudo pode ter acontecido a Tucker para ele se transformar num enigma a ser desvendado. Se a primeira parte deste “Julieta, Nua e Crua” não deixa de ser interessante, embora com os citados buracos no roteiro, a segunda o justifica. O que interessa aqui é o olhar de Julieta, em suas trocas de mensagens com Tucker, descoberto por ela, escondido de Ducan, que o tornara exclusividade de seu site.

Ao contrário dele seu foco era o homem Tucker e suas razões para encerrar a carreira. Não o tratava como mito, apenas como alguém que fizera repentino sucesso com primeiro disco e não o repetira. Ele logo percebe que havia ponto de identidade entre ele e ela por não ser visto como um mito decaído. E não demoram a estabelecer contatos que evoluem para além das mensagens virtuais. É também a partir destas trocas que todo seu novo universo se põe em movimento. Até a filha afrodescendente Lizzie (Ayola Smart), a mais velha, que pouco o visitava, não mais se afasta dele.

De forma indireta a dupla Peretz/Hornby decide então inverter o passado, numa reconstrução impulsionada por Julieta. Simplesmente o faz retomar sua relação com a realidade imediata na sociedade burguesa, a partir do reencontro com suas ex-companheiras e seus filhos já crescidos na cidadezinha inglesa. Pode parecer conservador, porquanto a opção por viver fora das tradicionais estruturas familiares supostamente não o deixou se relacionar com elas para compartilharem a educação das crianças. Embora ainda persistam mutuas exigências, ele decide superá-las e ir em frente.

Peretz não cai no conservadorismo

A elogiável diferença estabelecida pela dupla Peretz/Hornby não cai no conservadorismo. Pelo contrário, edifica o novo como saída para tais impasses, visto nas sociedades mais democráticas. Se constitui em compartilharem a educação dos filhos e dotá-las de um pai assíduo e participativo. É tocante a sequência em que Lizzie apresenta a Tucker o filhinho recém-nascido e ele se encanta com o netinho, como faz com Jackson, de quem é pai e amigo. É uma cena de rua bem estruturada e dirigida usando a calçada, à frente de lojas, portas de prédio e o fluxo de pedestres.

Também com sutileza, Peretz inclui o universo das relações sociais e amorosas em 1998, final do século XX, quando Hornby lançou sua novela. São mais diversificadas do que nos anos 60 de Tucker. Inclui os casais heterossexuais e os homossexuais, integrantes da tendência LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais e transgêneros). O avançado é Peretz mostrar o casal gay Caty (Alex Clatworthy), irmã de Julieta, e sua companheira Gina (Denise Gough) sem maneirismo, rompendo as barreiras da sociedade burguesa com à normalidade que uma conquista dessa exige.

Percebe-se que o NOVO aqui nada tem do manipulado pelo marketing, que tenta confundir o público com alguém ou movimento político-social que se apresenta como tal. Percebe-se logo que um ou outro se enquadra nesta enganação por ter se afastado do segmento social ou político ao qual sempre pertenceu. Em sua maioria são direitistas, conservadores, reacionários ou fascistas, emoldurados pela tarja de Novo. Seu objetivo é, simplesmente, solapar os direitos dos segmentos sociais já explorados e empobrecidos, em reforço ao voraz poder burguês. É um mero truque.

Filme é centrado na capacidade da mulher

Ducan percebe o quanto Julieta avançou na reintegração de Tucker ao meio do qual se afastou ao vê-lo de novo sentado num banquinho de guitarra apoiada nos joelhos, diante de auditório lotado. Dele participava as quatro mulheres do roqueiro e sua ex-namorada Julieta. Ao invés de ficar feliz ao vê-lo tão animado quanto em seu passado, ele sente a perda de quem achava que jamais se interessaria por Tucker. Ele próprio ao ouvi-lo não o vê mais como mito cuja música tanto preservou. Pelo contrário, critica as novas composições do ídolo como algo ultrapassado.

Este “Julieta, Nua e Crua” está centrado na capacidade de a mulher, a exemplo de sua personagem título, desvendar o homem ao invés de mitificá-lo. Só desta forma chega-se ao fato motivador de sua negação ao meio em que despontou e se tornou referência. Como os demais artistas, Tucker vivia de motivações e criações. Faltava-lhe quem o incentivasse a persistir e se entregar às vivências que o pusessem cercado pelos que o amavam de fato. Julieta com sua perspicácia faz justamente isto. E sem exigir mais do que ficar ao lado dele vivenciando seu reerguer no palco.

Julieta, Nua e Crua (Juliet, Naked), Drama. EUA,Reino Unido. 2018. 105 minutos. Trilha sonora: Nathan Larson. Edição: Sabine Hoffman, Robert Nassau. Fotografia: Remi Adefarasin. Roteiro: Nick Hornby, Eugenia Peretz, Jim Taylor, Tamara Jenkins. Direção: Jesse Peretz. Elenco: Rose Byrne, Chris O´Dowd, Ethan Hawke, Alex Clatworth, Ayuola Smart, Azhy Clatworthy, Danise Gough.

Assista o trailer:



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