“Venom”

Coisas da Terra

Com história centrada na realidade atual, cineasta estadunidense Ruben Fleischer cria super-herói numa fusão de alienígena com ser humano.

Há todo um universo neste “Venom” que leva o espectador a refletir sobre as ambições dos conglomerados empresariais do planeta Terra no Terceiro Milênio. Seus bilionários controladores já planejam realizar não só viagens turísticas ao planeta Marte, como explorar suas riquezas minerais. Daí a veracidade que o cineasta estadunidense Ruben Fleischer (1974) e seu sexteto de roteiristas, David Micheline, Jeff Pinker, Kelly Marcel, Scott Rosenberg, Todd Mc Farlane e Will Beall dão à narrativa desde o início. O cenário é a cidade de São Francisco atual, com seus 870.887 mil habitantes, não a do imprevisível futuro.

A própria aparição do personagem principal, o jornalista-investigativo Eddie Brock (Tom Hardy), de jeans e modo de gente comum, numa rua congestionada de pedestres descontrói o clima de filme de ficção científica. Pode tratar-se, no máximo, de uma aventura, pois não prenuncia sua transfiguração num super-herói, à moda da Marvel Entertainment, uma das produtoras do filme. O que ele busca é descobrir mais um escândalo que reforçará sua posição perante seu exigente editor-chefe Jack na TV onde trabalha. Nada mais cotidiano, pois acostumara-se a pautas que o envolviam em escândalos e lhe davam notoriedade em seu meio.

O que vem a seguir apenas reforça esta impressão. Brock se vê diante de mais um escândalo, dentre tantos já por ele investigados. Inclusive com ameaças e expulsão das instalações do conglomerado, onde pesquisas com seres humanos têm resultado em denúncias de profundas sequelas. A partir daí ele entra numa espiral de decadência. Nenhum veículo de comunicação o emprega mais. Até sua namorada, Annie Weying (Michelle Willians) o troca-o pelo médico Emerson (Wayne Père). E ele começa a passar a imagem de perdedor, encrenqueiro e má companhia.

Com esta condução narrativa, cheia de nuances, sem antecipação do que virá a seguir, Fleischer põe diante do espectador o jovem cientista Carlton Drake (Riz Ahmed), presidente da Fundação Vida, que pesquisa a vida em outros planetas. Como seus congêneres do universo real, ele tem projetos para explorá-los empresarialmente. Suas pesquisas com terráqueos intentam criar os simbionetes, a partir da simbiose de seres humanos com extraterrestes. As investigações de Brock o levaram presenciar um desses casos, o que provocou o confronto entre ele e Drake.

A habilidade de Fleischer e de seu sexteto de roteiristas está em manter a história deste “Venom” em nível de veracidade, sem exageros. Estruturam Drake como ambicioso e cercado de seguranças. Suas pesquisas já o levaram a manter contato permanente com seres de outro planeta. E as simbioses entre eles e os humanos estão avançadas. Pode-se ver nisto os limites entre a ciência e a compulsão do capital para abrir novos mercados no nascedouro das pesquisas planetárias ainda incipientes, mas com potencial para se configurar em grandes negócios. Basta acompanhar os projetos dos conglomerados para o turismo espacial.

Este é o tema central desenvolvido por Fleischer até a segunda parte da narrativa. É uma mescla de filme de aventura e ficção científica para o espectador interessado neste tipo de abordagem factual-ficcionalizada. Sua novidade em relação aos filmes de super-heróis está em Brock não ser um alienígena como o “Super-homem”, criação da dupla de cartunistas Joe Shuster, canadense (1914/1992), e Jerry Siegel, estadunidense (1914/1996), em 1933. Ele é Kar-el, oriundo do planeta Krypton. E como humano é Clark Kent em filmes e series de TV de grande sucesso.

Sua similaridade com “Venom” se limita à origem. Ambos vêm de outros planetas. Fleischer e seu sexteto de roteiristas fogem, assim, às abordagens da série “Os Vingadores”, centrada em heróis criados para preencher vácuos em aventura, suspense e diversão para adolescentes e adultos com saudade da juventude. Assim, Fleischer muda, aos poucos, o enfoque narrativo, sem deixar Brock fora do centro da ação. É o jornalista decaído, com dificuldade de fazer compra na mercearia da chinesa Chan (Peggy Lu), que, de repente, é forçado a aceitar o papel de hospedeiro.

Embora pareça ter adquirido superpoderes, Brock não passa por nenhuma mutação como as vistas quando Clark Kent se torna o Super-Homem nos filmes da série. Não está dotado do que o torna imune a qualquer projétil ou ataque físico do inimigo. Tampouco se transforma no herói do combate a Drake, muito pelo contrário, escancara sua incapacidade de agir como tal. As implicações aqui são outras, envolvem a aceitação pelo espectador de um herói que grita ao menor avanço do inimigo, clama por socorro, enquanto se defende em meio a encarniçada batalha nas ruas e avenidas congestionadas de São Francisco.

Em todas os múltiplos embates contra o inimigo Drake, ele não está no comando. Quem o faz agir como um guerreiro extraterreste é Venom, que o transforma em seu hospedeiro. E o faz agir de acordo com seus movimentos e ações durante a violenta luta contra Riot, seu inimigo desde seu originário planeta. Este se vale de Drake, como seu hospedeiro ao enfrentar Venom. São bem encenadas sequências que fazem Tom Hardy interpretar preso a finos e invisíveis fios de aço, sob o fundo neutro. Depois, todas as cenas foram montadas num contínuo como se vê na tela.

O novo aqui, entretanto, não decorre da conhecida técnica de montagem, mas da concepção e estruturação dos personagens Venom e Riot. Vistos nas cenas iniciais, têm a forma de um polvo negro, cheio de compridos e finos braços, com os quais aprisionam os inimigos quando são atacados. E ao tornarem Brock e Drake seus hospedeiros o fazem como encarnados espíritos guerreiros. Venom é o mais eficiente, se mostra capaz de conduzir seu hospedeiro nos mais difíceis e violentos combates, inclusive nas sequências em que Brock luta contra Drake. Numa delas, ele está pendurado de cabeça para baixo e grita para Venom não deixar cair.

Não bastasse, Fleischer, diferente dos diretores que repetem o clichê da corrida desenfreada em meio ao caótico tráfego, transforma a escapada de Brock/Venom numa corrida maluca ao estilo das comédias ligeira dos anos vinte. O espectador fica preso à cadeira do cinema, dada à gritaria de Broke, temendo o choque fatal do carro em que estão com outro. O que emerge não é o medo, mas o riso mesclado ao horror e o suspense. Fleischer reconstrói, assim, uma narrativa com sugestivas estruturações

Sob este ângulo, “Venom” difere dos demais filmes de super-heróis atuais. Não tem propriamente um herói e o alienígena cheio de múltiplas forças não consegue escapar ao cerco do inimigo se não tiver um hospedeiro. Fleischer desmonta o mito do herói solitário, o resolve tudo, tão caro à ideologia político-ideológica capitalista. Nem o vilão Drake/Riot escapa. Se o hospedeiro morrer, o leva junto. Não se trata de rememoração da mitologia grega, com seus heróis e mitos em pleno século XXI, mas da urgência da construção coletiva da liberdade sempre ameaçada como hoje.

Venom (Venom). Aventura, ficção científica. EUA. 2018. 112 minutos.Trilha sonora: Ludwig Goransson. Montagem: Alan Baumgarten, Maryann Brandon. Fotografia: Matthew Labatique. Roteiro: David Micheline, Jeff Pinker, Kelly Marcel, Scott Rosenberg, Todd Mc Farlane e Will Beall. Diretor: Ruben Fleischer. Elenco: Tom Hardy, Michelle Willians, Riz Ahmed, Wayne Pére, Peggy Lu.

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