“Uma Questão Pessoal”

Vítimas da serpente

O engajamento da juventude na luta contra o fascismo durante a II Guerra Mundial na Itália é o tema deste drama dos Irmãos Vitório e Paolo Taviani.

Nas tragédias engendradas pelos salvadores da pátria tudo começa como uma luta contra o dragão da maldade. E eles logo se alvoram de Santo Guerreiro. A encarniçada luta que daí se expande termina por mudar as vidas dos que nela se engajam ou não. Eles, portanto, jamais serão os mesmos, pois as perdas afetivas e materiais serão irreparáveis. É o que se depreende neste “Uma Questão Pessoal”, último filme dos Irmãos Taviani (Vitório, 1929/2018, e Paolo, 1931). Como em outros de seus 19 filmes, predomina o drama sócio-político, em tons humanísticos.

Toda a narrativa de 85 minutos, centrada na odisseia do jovem intelectual Milton (Luca Marinelli), trata da participação da juventude italiana da região de Lázio na luta contra o fascismo durante a II Guerra Mundial (1939/1945). O olhar dos Taviani é de quem reflete sobre os rumos que as vidas destes partigianis adultos ou adolescentes tomavam, pois ao menor descuido acabavam torturados ou fuzilados. E nem os não participantes escapavam dos espiões do Duce (líder supremo), Benito Mussolini (1883/1945), durante grande parte de seu governo (1925/1943).

Desde o início a narrativa mescla drama-romântico com o drama de guerra. Ou seja, a relação amorosa de Milton com Fúlvia (Valentina Bellè) e os combates entre os partigianis e as tropas fascistas nas montanhas e nas matas de Lazio. É o instante em que os Taviani trabalham seu tema principal: as mudanças que o fascismo provoca na vida dos cidadãos comuns ou não, impedindo-os de viverem em liberdade e fazerem suas escolhas sem vigilância e opressão. Milton logo se envolve nos combates e sem tempo para se encontrar com Fúlvia ou ver o amigo Giorgio.

Jovens partigianis são da resistência ao fascismo

Quando os dois surgem na ampla sala do sobrado onde ela mora na abertura do filme, estão mergulhados num clima de paixão. Enquanto ela canta a composição dos músicos estadunidenses Harold Arlen (1905/1986) e E.Y.Harburg (1896/1981) Over the Rainbow (Além do arco-íris), tema do filme “O Mágico de Oz” (1939), de Victor Fleming (1883/1949), ele se mostra em êxtase. Por longo tempo, eles trocam impressões sobre música ou dividem esses momentos com Giorgio. Esta harmoniosa amizade ressurgirá na sequência em flashback no trem em que os dois amigos compartilham a presença de Fúlvia. Não se percebe, então, um triângulo amoroso ou algo que fugisse à amizade entre os três.

Entretanto, a sub-trama amorosa é decisiva para se entender as reações que mudarão as atitudes de Milton. Envolvido nos combates entre os partigianis e as tropas fascistas nas aldeias e pequenas cidades, ele não tem mais notícias nem de Fúlvia ou de Giorgio. A maioria dos jovens que deles participam conhece a região, suas montanhas, rios e florestas. E os acampamentos não são distantes um dos outros. Numa dessas mudanças de campo de batalha, lhe chega a notícia que o levará a ter a noção de quanto o regime fascista pode mudar sua vida e as de Giorgio e Fúlvia.

Não é, em princípio, qualquer tipo de envolvimento dela com seu melhor amigo. A notícia o faz ter a percepção do que representaria a perda de Giorgio, dado ao risco corrido por ele diante das tropas fascistas. Inicia-se então sua angustiante odisseia em busca do amigo. Os Taviani trazem, assim, a tensão para a narrativa, pois Milton se vê numa corrida, na qual a esperança pode se transformar num choque de horror. As informações que lhe dão os amigos partigianis só encurtam seu tempo. Além disso, estradas, trilhas e desvios estão bloqueados pelos inimigos.

Milton tenta encontrar o amigo de infância

É na estruturação desta frenética busca que os Taviani usam os recursos do suspense para delimitar tempo e espaço. Entre eles adicionam incidentes e obstáculos, pondo o espectador frente a frente com os fascistas. O que reforça sua visão do tipo de inimigo enfrentado por Milton e os demais partigianis. Principalmente na bem estruturada sequência do frio e cruel oficial fascista de farda preta que ao pressionar o garoto partigiani para dedurar o local em que estão os demais, ele não o faz e é executado na frente dos demais. Mesmo assim, os outros, embora aterrorizados, não o fazem e a fila de execução só tende a aumentar.

Como se trata de uma tentativa de localizar em curto tempo o amigo, os obstáculos são cada vez mais perigosos. Ao entrar por uma trilha, Milton termina cercado pelos fascistas. Os tiros trocados entre eles, o tornam menos dado à complacência, além de aguçar seu instinto de sobrevivência. Não está mais apegado à causa, mas apenas à busca do amigo. São a amizade e o medo da perda que ditam seus interesses. Daí o título dado pelos Taviani: ”Uma Questão Pessoal”. É o instante de romantismo e, a um só tempo, de humanismo da parte do personagem e dos diretores/roteiristas.

A dupla italiana não se vale dos fáceis recursos de suspense para prender o espectador na poltrona. Inexistem sequências em ambientes fechados, cantos mergulhados nas sombras, escadas ou túneis. Ela se vale de ambientes abertos, montanhas, vales, estradas, salvo nas sequências em que estão Milton, Fúlvia e Giorgio. A câmera da diretora de fotografia Simone Zampagri enquadra toda a ação em grandes planos. Às vezes fecha um pouco, em plano aproximado, como na cena da execução do garoto partigiani. Torna-se, desta forma, um filme com o crítico olhar dos Taviani.

Fascistas fazem acenos às famílias

Toda a tensão da segunda e da terceira parte deste “Uma Questão Pessoal” gira em torno de uma simples indagação: onde está Giorgio? Milton teme que ele pode ser executado a qualquer momento pelos fascistas. Esta sua preocupação vem tanto da ansiedade e do medo provocado por obstáculos, como do terror provocado pela execução do garoto e da perseguição sofrida por ele em sua tentativa de localizar o amigo. O sadismo do oficial fascista italiano é o mesmo do oficial fascista que executa os membros da resistência espanhola em “A Forma da Água (2017)”, do mexicano Guillermo Del Toro (09/10/1964), Oscar de Melhor Filme de 2018. Não há como ver o fascismo de outro ângulo.

O que talvez incomode o espectador à espera de que Milton tenha sucesso em sua busca do amigo é sua súbita mudança de objetivo. Ela não é uma questão política, nem o medo de ser pego pelos fascistas, mas algo de outra natureza. Os Taviani, mesmo dando alguma pista, deixam o espectador entender de que se trata de forma sútil. A narrativa termina num anti-climax, como se o desfecho fechasse as duas subtramas de uma só vez. I – O fim da participação de Milton na resistência antifascista; II – A compreensão de que ele devia punir Giorgio. Boa saída para o final.

Os Taviani e Del Toro dão grata contribuição ao relembrar as lutas da resistência ao fascismo como alerta à juventude e aos que não percebem o avanço dos neofascistas na Europa, na América Latina e, inclusive, no Brasil. Eles começam com acenos à família, prometem mais segurança, combate ao crime organizado e à corrupção e terminam com desmonte dos direitos dos trabalhadores, repressão às forças democráticas e, principalmente, às de esquerda. E adeus, democracia! O cinema ao rememorar a história através de imagens contribui para nos manter alertas.

“Uma Questão Pessoal”. (Una Questione Privata). Drama-político. 2018. 85 minutos. Música: Giuliano Taviani/Carmela Travia. Montagem: Roberto Perpignani, Fotografia: Simone Zampagni. Roteiro/direção: Paolo e Vittorio Taviani. Elenco: Luca Marinelli, Lorenzo Richelmy, Valentina Bellè, Francesca Agostini, Jacopo Olmo Antinori.

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