“Benzinho”

Supermãe

Ao centrar sua narrativa em mãe que se desdobra para manter a família unida, cineasta carioca Gustavo Pizzi reflete sobre os reflexos do golpe.

As risadas a brotar das situações que envolvem a ambulante Irene (Karine Teles), em seu cotidiano de supermãe neste “Benzinho”, muitas vezes são amargas. Ela se equilibra entre cuidar dos quatro filhos, apoiar o companheiro Klaus (Otávio Müller) e ainda socorrer a irmã Sônia (Adriana Esteves). E suas esperanças surgem e evaporam sem que possa consolidar seus projetos de uma vida melhor na periferia do Rio de Janeiro. E torna-se, assim, o reflexo da classe média brasileira mergulhada na desesperança, engendrada pelo desmonte provocado pelo golpe de 2.016.

Todas estas construções do cineasta carioca Gustavo Pizzi (1977) e de sua co-roteirista, a atriz principal Karine Teles, se dão em cenários que os brasileiros já se acostumaram a conviver com eles. Irene e a família vivem num sobrado cuja construção nunca acaba, como numa metáfora do Brasil país de futuro sempre adiado. As paredes continuam sem reboco, as janelas não têm vidros, as fechaduras das portas imperaram, a torneira não fecha. Quando chove é um pandemônio. Não bastasse, ela sobrevive como ambulante, vendendo salgados e livros numa Kombi com Sônia.

Desta forma, a dupla Pizzi/Teles introduz o realismo numa comédia dramática. É como se o horror e o sofrimento brotassem do vivido pelo espectador em seu próprio dia-a-dia. Principalmente quando Irene se candidata a uma vaga numa empresa e diz que está em busca de um emprego com carteira assinada. Desta forma, a dupla transpõe para a tela o confisco dos direitos trabalhistas imposto pelo governo-golpista de Michel Temer, que gerou cerca de 13 milhões de desempregados. E levou 27 milhões de trabalhadores a deixarem o mercado do trabalho no país.

O raciocínio neoliberal só faz a conta dos ganhos e perdas do capital, não leva em conta que se o trabalhador manual ou intelectual tiver seus direitos trabalhistas reduzidos e suas perspectivas de trabalho bloqueadas, ele não terá como sustentar sua família. Ele, como é no sistema capitalista, é o motor do mercado de consumo. Mesmo se tiver emprego mal remunerado e com garantias de direitos trabalhistas reduzidos, seu poder de compra cairá. Não será o bastante para adquirir bens de consumo, bens duráveis (carro, geladeira, etc) ou comprar lote ou casa ou apartamento.

E com isto, a máquina econômica de trocas comerciais e financeiras sofrerá uma queda e o país crescerá a paupérrimos índices. O centro de tudo é o poder aquisitivo do trabalhador. Não se pode falar em consumo e crescimento se ele vive em perene insegurança de emprego, sua única forma de sobrevivência. Ele viverá em constante insegurança de vida, familiar e de autoestima, enquanto transfere para o capitalista a riqueza gerada por sua força de trabalho. Pior ainda se trabalha com contrato temporário ou intermitente ou nem acesso ao emprego tiver. Não à toa os setores comercial, de serviço e não só eles não vendem. O sistema financeiro é o único que se enriquece. Daí o pauperismo dos trabalhadores.

Irene também é chefe de família

Contudo, o tema central deste “Benzinho” é o papel da mulher classe média na sociedade brasileira nestes quase vinte anos de terceiro milênio. Ela assumiu novas e importantes funções e se libertou do “chefe de família”. Irene divide todas as responsabilidades com Klaus, sonhador e empreendedor-aprendiz, não só a educação dos filhos como as despesas da casa. Em certo momento, ela critica-o e o leva a refletir sobre suas ambições. Chega a visitar com ele a área e o galpão em que ele pretende montar seu ambicioso projeto e logo vê as impossibilidades. Inclusive, a distância do cliente e, notadamente, a falta de dinheiro para investir.

Afinal o empreendedorismo oculta as armadilhas do capitalismo em incentivar através do neoliberalismo o surgimento de novos empresários. Demanda tempo e capital numa época de juros estratosféricos e ferozes monopólios do sistema financeiro. O fracasso é tal que seus apologistas e a burguesia nem mais falam em ascensão social e igualdade para todos. Vive-se a época da globalização dos conglomerados. Klaus logo sente o baque e revela seu fracasso aos prantos e é afagado por ela. Afinal é muito pretendente para conquistar seus espaços e estes são cada vez mais raros.

O que se vê na primeira parte deste “Benzinho” é outro tipo de ascensão com menos dramaticidade. É a aposta de Irene e Klaus na transferência do filho adolescente Fernando (Konstantinos Sarris), grande promessa como jogador de handebol, para uma equipe da Alemanha. É como se o futuro já estivesse garantido. Pizzi, em boa hora, foge ao espectro e à fantasia do jogador de futebol, tão comum hoje no Brasil. Como se o acesso a estrela no mundo dos esportes fosse igual para todos. E, além disso, não faz desta possibilidade um dos temas de sua narrativa.

Confusões relembram chanchada nacional

Pizzi e seu diretor de fotografia Pedro Faerstein trabalham no estreito espaço dos cômodos e da frente da casa de alvenaria em ruínas. Por eles transitam os dois filhos gêmeos Arthur e Francisco, ainda criança, o pré-adolescente Rodrigo (Ivan Teles), tocador de trombone, e Fernando. Não faltam, Sonia e o companheiro dela Alan (César Troncoso) em sistemático confronto. Ao disputarem a guarda do filho Thiago (Vicente Demori), eles provocam tensão e risos. E Irene acaba por interferir para evitar a agressão à irmã mais nova. Não raro, o atrito se generaliza entre eles.

Nestas sequências bem estruturadas por Pizzi, os limites acabam sendo borrados. Alan é o machão que ora briga pela chave da casa, ora quer a companheira de volta, quando não diz só querer ver o filho. Desta forma surge uma inteligente comédia digna da velha e boa chanchada nacional. Transforma o machismo de Alan em ato ridículo, destituído de sentido, pois não tem o equilíbrio para voltar a ter sua família de volta. Sua contraposição é Klaus, calmo e flexível, que não se atrita, por ter em Irene a companheira com quem compartilha suas boas e más fases.

Devido a isto, Irene é a personagem a concentrar todas as ações em torno da qual os demais transitam. Ela é capaz de estar irada e punitiva num instante para dali a pouco se tornar uma mulher risonha, cativante. É capaz de criticar severamente o filho Rodrigo, de 12 anos, por não ter cuidado dos irmãos como ela o orientara e dali a pouco ser carinhosa com ele. Só procura manter a família ao seu redor. Não é tão distante da matriarca Rosaria Parondi (Katina Paxinou, 1900/1973), que no filme neorrealista “Rocco e Seus Irmãos, 1960), do italiano Luchino Visconti (1906/1976), sofre por ver sua família se degradar na Milão do pós-guerra.

“Benzinho” é filme de personagem”

Com tais estruturações dramáticas “Benzinho” torna-se um filme de personagem e menos de trama, por esta conduzir a ação. Não há reviravoltas na narrativa. Deve-se mais ao roteiro da dupla e o modo como a atriz/roteirista Karine Teles constrói sua Irene. Ela varia seus estados emocionais de acordo com o que exige a cena por inteiro. Não é mãezona ou histriônica. Quando se irrita, como na sequência em que esbraveja contra Klaus, seu ódio é contido. Passa segurança e lucidez. Não é tão risonha ou de brilho olhos nos olhos. O filme gira em torno dela.

Não bastasse, Pizzi não se restringe ao universo pessimista de que a luta cessou. Irene com suas tentativas de criar seu espaço com Klaus, seus filhos e a irmã, mesmo diante de tantas barreiras, tem seu instante de catarse, diversão e preservação de sua identidade. Isto faz o espectador ter a sensação de que, ao assistir ao desfile das fanfarras nas ruas da periferia, com Rodrigo numa das bandas, ainda é possível ter de volta o Rio de Janeiro dos tempos em que a rua era do povo. Tudo ainda é possível.

“Benzinho
”. Comédia dramática. Brasil.2018.97 minutos. Trilha sonora: Dany Roland/Pedro Sá/Maximiano Silveira. Edição: Livia Serpa. Fotografia: Pedro Faerstein. Roteiro: Gustavo Pizzi/Karine Teles. Direção; Gustavo Pizzi. Elenco: Karine Teles, Adriana Esteves, Otávio Müller, Cézar Troncoso. Konstantinos Sarris, Ivan Teles.

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