“Hotel Artemis”

Fora de controle

Ao projetar uma Los Angeles futurista em meio ao caos, cineasta escocês Drew Pearce projeta o que ela seria sob o controle do crime organizado.

As projeções futurísticas da vida nas megalópoles feitas pelo cinema nem sempre são otimistas. A tendência é construir um universo sombrio, opressivo e violento. Em “Los Angeles-Cidade Proibida”(1981), o cineasta estadunidense John Carpenter (1948) mostra-a como cenário de confronto entre gangues rivais. Neste “Hotel Artemis”, o diretor-roteirista escocês Drew Pearce, embora não seja uma refilmagem ou continuação, situa sua narrativa em 2028. O crime organizado dita as normas e seus 12.923.547 milhões de habitantes, conforme o censo de 2012, vivem em meio ao caos.

Relacionar a ficção à realidade ajuda o espectador a entender o que o cineasta/roteirista muitas vezes elabora a partir de sua visão de mundo. É como um sonho contado através das imagens projetadas na tela. Dá uma sensação de que algo escapou ao controle e logo remete a situações reais, como as vividas pelos moradores da megalópole do Rio de Janeiro. Em sua narrativa, o diretor Pearce divide sua narrativa entre o que motiva o caos nas ruas e no prédio em que a enfermeira Jean Thomaz (Jodie Foster, 1962) socorre os feridos das facções do crime num precário consultório.

Do lado de fora manifestantes protestam contra a privatização do sistema de água da cidade de 3.923.547 milhões só no meio urbano. A eles se juntam os funcionários municipais em greve e os membros das facções rivais em confronto entre si e a polícia. A impressão é de que a Prefeitura, numa alusão falência do Estado burguês, perdeu o controle da megalópole. Diante disso, as facções organizadas utilizam um velho prédio como refúgio, onde está o consultório só utilizado por eles. E o chamam de Hotel Artemis, alusão à deusa grega, símbolo da vida selvagem e da caça.

Thomaz cuida das vítimas das facções

É nele que transita a centrada Thomaz, obrigada a se virar com os recursos que tem. E ainda ressuscitar o ferido a bala através de choque elétrico ou realizar complexas cirurgias. Seu único apoio vem do gigante Everest (David Bautista), seu guarda-costas. Além dela, vivem ali a francesa Nice (Sofia Boutella), assassina de aluguel, às voltas com o assédio do afro-estadunidense Waikiri (Sterling K. Brown). E dele escapa ao brincar lhe dizendo que “os americanos falam alto demais”. Ela está ali para eliminar os inimigos de certa facção, e se utiliza de artes marciais.

É neste contexto que Pearce encadeia a narrativa em ação contínua, a envolver as facções organizadas no Artemis e a multidão nas ruas e avenidas. Os diálogos, situações e movimentos entre os atores reforçam a impressão de que estão sob constante pressão vindas de fora. Principalmente Tomaz com a cabeleira branca, a rápida fala e os contidos gestos. “Aqui está faltando água, mas lá for está chovendo gente babaca”. Ela é sarcástica, às vezes se irrita, mas não tem para onde ir. Seu compromisso é atender todos os feridos das facções do crime organizado.

Mas é também a única a refletir sobre a ética de sua profissão, não se negando a socorrer a quem dela precise. As sequências em que se recusa a ouvir Everest sobre sua decisão de socorrer a policial ferida a humanizam. Ela acha que deve fazê-lo porque os colegas de farda ao invés de levá-la junto com eles a deixam num beco. No entanto, há desconfiança de parte até da policial. Mesmo socorrida, ela ainda acha que eles a entregariam a uma das facções por terem trocado tiros com eles no beco. Porém, nada impede de Thomaz salvá-la e Everest deixá-la em segurança.

Nenhum personagem foge do mal absoluto, só Thomaz

É único momento no decorrer da narrativa que Pearce se descola do universo do crime, para não generalizar, mostrando que, afinal, há alguém digno de atenção e em condições de escapar àquele meio onde impera o crime. Nenhum dos personagens, salvo ela, foge ao mal absoluto. Inclusive Nice que circula pelo Artemis à espera do momento em que terá de eliminar quem justifica sua estadia em Los Angeles. Suas sequências com ele e alguns de seus guarda-costas reforçam a visão de que é realmente fria e profissional. Não é, assim, um personagem fortuito, ela dá sentido à ação.

Com estas caracterizações, Pearce encadeia sua narrativa como filme de ação e de personagem. No primeiro caso, a ação dita a narrativa, pois as motivações interiores do herói ficam submersas. Ele apenas reage a quem o ameaça ou o faz perder seu ente querido. E, sobretudo, age como herói ao liquidar o assassino. Já quando se trata de filme de personagem, suas motivações e objetivos brotam de situações que o levam a ter reações plausíveis, realistas, não de herói. O espectador, ainda que em meio s confrontos, tiros e mortes pode perceber as diferenças entre um e outro.

É o caso de Thomaz neste “Hotel Artemis”. Desde o início, Pearce introduz cenas do garoto sob a ponte nas sequências em que ela aparece. Isto remete a lembranças que lhe causa sofrimento. Como enfermeira, ela se atém ao que lhe é exigido para manter vivo o membro de certa facção. Sua dor e motivações permanecem submersas por quase todos os 95 minutos de duração da narrativa. Só aos poucos, o espectador percebe a ligação entre um e outro, em suas conversas com Everest. Decorre daí que, devagar, ela predomina na narrativa e o filme se torna sua história.

Espectador se vê mergulhado num clima do final dos tempos

O clima de horror ditado pelo ambiente fechado do “consultório”, mal iluminado, em constante tensão, cercado pelos equipamentos de socorro, é construído pela fotografia do mestre sul-coreano Chung-hoom Chung, de “A Criada, 2016”, dirigido por seu compatriota Park Chan-Wook (1963). Tanto nos corredores e “quartos” do Artemis quanto nas ruas e praças, o que se vê são os feridos na guerra entre as facções rivais e a multidão a se locomover em meio aos conflitos urbanos, numa espécie de final dos tempos. O microcosmo em que Thomaz vive seus impasses tem mais lógica do que ocorre lá fora. Ali pelo menos ela sabe o que a espera.

Nesta antevisão do 2.028, o espectador sem perceber é envolvido pela fragilização do Estado, via privatização de áreas estratégicas e não só delas. O predomínio do crime organizado advém daí, evidenciado através do que ocorre no Hotel Artemis. Quanto menos forte ele for, mais as facções do crime organizado guerrearão entre si para liderar o controle das estruturas sócio-econômicas. Ainda que Pearce não politize política e ideologicamente seu filme, sub-repticiamente é o que deixa o espectador antever. Tudo depende de como encadeia a narrativa e ficciona os fatos.

Os dilemas de Thomaz, enquanto personagem, portanto ficcional, é bem outro. Eles advêm da guerra entre as facções. Suas reminiscências brotadas das sequências nas quais ela não vê mais uma criança, mas um jovem, vão se formando na cabeça do espectador, levando-o a entender o que a atormenta. Deste modo, Pearce introduz outro fio dramático para ele se preocupar. Thomaz não consegue mais fugir às aflições engendradas por seus conflitos familiares que, na verdade, são a razão de ela acabado no Hotel Artemis. Percebe-se que vive na expectativa de ali encerrá-los.

Thomaz é vítima do meio em que vive

Difícil não a ver como vítima do meio em que agora vive. Toda esta construção dramática se evidência quando o repentino surgir de Rei (Jeff Goldblum) põe Thomaz entre a urgência de salvá-lo e a necessidade de curar suas feridas interiores. O Codinome Rei vem do absoluto controle imposto por ele a todo crime organizado de Los Angeles. O ambiente que até ali já era carregado, perigoso, fica ainda mais explosivo. E a razão deste ”Hotel Artemis” ser também um filme de personagem é reforçada quando as motivações de Thomaz se tornam claras e conclusivas.

Não se pode afirmar que ela, de repente, sofreu uma mutação, tornando-se o que não evidenciara até o desfecho. Como criatura do meio se mostra capaz de extrema frieza e violência. Os mesmos instrumentos de salvar a vida dos feridos na guerra entre as facções tornam-se ferramentas de acerto de contas. Nem o confronto entre elas nos corredores, comandado por Tick-tak (Zachary Quinto), filho de Rei, evitam que ela e Waikiri sintam-se livres para libertarem-se do Hotel Artemis. Enfim, um filme que não se prende só à ação, também ajuda a refletir.

Hotel Artemis
. Drama, ação. EUA/Reino Unido. 2018. 95 minutos. Trilha Sonora: Cliff Martinez. Montagem: Gardner Goul/ Paul Zucker. Fotografia: Chung-hoom Chung. Roteiro/direção: Drew Pearce. Elenco: Jodie Foster, Jeff Goldblum, Sofia Boutella, David Bautista, Sterling K. Brown. Zachary Quinto.

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