“A Vida Em Família”,  de papéis invertidos

Em comédia de costumes, cineasta austríaco Edoardo Winspeare põe dois ladrões como heróis e expõe a disputa pelo resta da cidade do interior.

O inusitado deste “A Vida em Família” começa pelo fato de o cineasta austríaco Edoardo Winspeare reviver a comédia de costumes italiana, como no “Meus Caros Amigos (1975)” de Mário Monicelli (1915/2010), que vivem passando trote a quem apareça. Ao invés dos donos do poder, cheios de projetos, aqui são dois ladrões que, embora desastrados, terminam por cativar o espectador por suas mirabolantes ideias. São dois irmãos de meia idade que tentam fazer um assalto, mas seus planos são frustrados à beira da rodovia da cidade de Disperata, no sul da Itália.

A partir deste inusitado fato, Winspeare e seu co-roteirista Alexander Valenti constroem dois anti-heróis com as tintas do humor rasgado. As construções cômicas e às vezes dramáticas são centradas no agitado, sonhador e falastrão Angiolino (Antônio Carluccio), com sua barba e cabelos cacheados brancos. Inconformado com o atrapalhado irmão Pati (Claudio Giangreco), não desisti de seus mirabolantes sonhos. Para isto monta um ousado plano, para o qual tenta cooptar seu sobrinho, Biagetto (Davide Riso), filho de Pati e da vereadora Eufemia (Celeste Casciaro).

Longe de assemelhar-se a um mestre, Angiolino estimula o rito de passagem dele ao mundo adulto, com uma profissional do sexo e o incentiva a namorar a bela Valentina (Alessandra De Lucca|). E, além disso, não esconde de seus amigos e conterrâneos sua condição de ladrão. Enquanto eles passam seu tempo acomodados nas cadeiras das calçadas dos bares, ele se mostra ativo. As risadas de suas ações brotam da rigidez e da disciplina com que orienta Biagetto. Atrapalhado, medroso, o jovem não tem o mínimo traquejo com armas e táticas de assalto a mão armada.

Ação se passa numa decandente cidade

Desta forma Winspeare satiriza os filmes de gangsteres hollywoodianos nos quais o aprendiz logo ameaça o mestre. Mas Angiolino não consegue convencer ao irmão Pati e tampouco a cunhada a deixarem o filho ser seu parceiro. O querem longe do ingênuo e displicente Biagetto. Ambos formam uma dupla de trapalhões sem muito esforço. O ponto de equilíbrio desta história é que outros fatos intervêm na narrativa desta subtrama de “A Vida em Família”. Assim, ela se entrelaça com as outras duas: I – a que envolve o prefeito Filippo Pisanelli (Gustavo Caputo) e os conselheiros, espécie de vereadores; II – a que mostra a influência de Eufemia, como mãe, vereadora e lojista, na pequena e velha cidade à beira do mar Adriático, no sul da Itália.

O tema central do filme é a tentativa de dois grupos políticos antagônicos a recuperar Disperata. Ela sobrevive às custas do fraco comércio, do emprego na Prefeitura e dos aposentados. Os personagens que matizam a narrativa são frutos desta frágil estrutura sócio-econômica. Diante deste quadro, o acuado prefeito Pisanelli decide ministrar, ele mesmo, um curso para ensinar aos presidiários a entender e escrever poesias. Dentre eles Pati, que se torna elogiado poeta, após dois anos de prisão pelo fracassado assalto. E publicou livros e não voltou ao crime.

Esta é a forma encontrada por Pisanelli para manter sua sustentação política, apoiado pela população. E desta forma escapar às pressões dos vereadores de oposição, que tentam cooptá-lo para o projeto de construção de um polo turístico na cidade. O que exige a liberação da faixa litorânea montanhosa e arborizada à beira do Adriático para a construção de estradas e hotéis. “Desta forma vamos atrair turistas para Disperata”, argumenta o líder da oposição. Pisanelli, ao invés de se posicionar, silenciou, pondo a oposição ainda mais irritada contra sua administração.

Projeto turístico podia acabar com fauna e flora

Já o argumento de Eufemia é de que o projeto turístico destruiria toda a fauna e a flora da área a ser liberada. Principalmente depois que os golfinhos voltaram a ser vistos e outros peixes poderiam retornar ao Adriático. A reação da oposição foi destituir Pisanelli do cargo de prefeito. Como sempre, ele não reagiu. Como vem sendo usual no neoliberalismo, a exemplo do impeachment da presidente Dilma Rousseff (1947), em 2016, a qualquer decisão contrária os liquidacionistas reagem com a destituição do chefe do executivo. Contudo, Pisanelli continuou com a oficina poética.

Deste modo, a comédia de costumes cede espaço à comédia-dramática. A liderança de Eufemia foi reforçada ao sustentar as posições que frearam os ímpetos da oposição. E Pisanelli também saiu vitorioso por manter o projeto poético que atraiu não só seus presidiários como suas famílias, amigos e os moradores da cidade. A poesia ao canalizar o apoio popular incentivou Angiolino a mudar suas posições. Prefeito e vereadora mostraram, deste modo, terem apoio popular para levar adiante sua luta pró-ecossistema. O impasse pelo desenvolvimento, porém, continuou.

Esta engenhosa forma de fechar a trama central e suas três subtramas, permitiu a Winspeare mostrar ao espectador que a única forma de estimular o desenvolvimento de Disperata seria manter o projeto preservacionista. Não como evidenciava a luta entre os liquidacionistas e Pisanelli, apoiado por Eufemia. Havia um impasse entre eles, precisava surgir um terceiro que levasse em consideração os interesses dos moradores da pequena cidade. Com sua longa cabeleira branca, Angiolino era o único a transitar pelas bordas da montanha às margens do Adriático.

Como sempre nas comédias, a câmera de Winspeare apenas registra a ação, não ressalta ou se movimenta além do necessário. Grandes planos mostram o mar aberto e a montanha pela qual Angiolino e seus amigos passeiam. Existe algo para além da preservação, e tem forte valor familiar. Winspeare então vale-se da religião para provocar a mutação que o leva a se questionar na ótima sequência em que Angiolino liga para o Papa Francisco, por ser seu fiel-seguidor e estar à beira de executar seu grandioso e arriscado projeto de roubar cerca de um milhão de reais.

Angiolino fala com seu guia-espiritual

Na construção desta sequência, Winspeare oscila entre o humor, a crença e o suspense. A divinização do Papa estimula tanto a interpretação de Carluccio quanto a expectativa de quem está na platéia. É o pecador falando direto com seu guia-espiritual. Há um interregno, no qual o suspense prevalece. Surge daí a ansiedade e a esperança não só que ele fale com o Papa, mas que se regenere. É uma sequência tensa e ao mesmo tempo cômica e dramática, entre o ladrão e o líder da Igreja Católica. Sem a pieguice que normalmente ocorrem neste tipo de encenação, inexistem sinos ou escurecimento das cenas iluminadas por etéreas cores.

O contraponto a esta emblemática sequência é a decisão do grupo liderado por Angiolino e Eufemia de construir um espaço que preserve a um só tempo os contrafortes das montanhas, as marinas e o espaço destinado à fauna e à flora. Forma de Winspeare desconstruir, através de seus personagens, o projeto dos liquidacionistas às custas da devastação ambiental e da extinção da área de desova de grandes e pequenos animais. Trata-se do resultado da regeneração de Angiolino e da derrota da oposição por Pisanelli, mas também a reconciliação de Eufemia e Pati.

O que prevalece nesta comédia de costumes de Winspeare é a desconstrução do estigma do suposto ser humano irrecuperável. Mas também a necessidade de as camadas populares tomarem a si a construção

das estruturas econômico-sociais que preservam o ecossistema. E que lhe permita ter sob seu comando o que gera a riqueza a ser compartilhada pela maioria, não pela burguesia e sua limitada elite. Filmes como este ““A Vida em Família” encontram na arte uma forma de dar voz àqueles que não teriam um meio de mostrar sua capacidade de pensar e agir. Não à toa o título original deste filme é ´”A Vida em Comum”. É isto que se vê na tela.

“A Vida em Família”. (La Vita In Comune. Itália). Comédia de costumes. 2018. 110 minutos. Música: Mirko Lodéda. Montagem: Andrea Facchini. Fotografia: Giorgio Gianocaro. Roteiro: Edoardo Winspeare/Alexander Valenti. Direção: Edoardo Winspeare. Elenco: Gustavo Caputo, Antonio Carluccio, Claudio Giangreco, Celeste Casciara, Davide Rice.

Assista o trailer:



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