“Escobar: a Traição”

Máscaras do poder

Em cinebiografia do narcotraficante Pablo Escobar, o cineasta espanhol Fernando León de Aranoa mergulha no universo das drogas e do poder.

Bem poderia ser o ajuste de contas da amante que ao sentir-se traída por seu amado, escreve um livro em que desvenda as ligações dele com o narcotráfico e os políticos de seu país. É o que o espectador depreende do livro “Amo Pablo, Detesto Escobar”, da famosa jornalista colombiana Virgínia Vallego (Penélope Cruz). Porém, ao adaptá-lo para o cinema, o diretor e roteirista espanhol Fernando León de Aranoa (26/05/68) transforma este “Escobar: a Traição”, num épico sobre a ascensão e queda do chamado “rei tráfico”, Pablo Emílio Escobar Gavíria (1949/1993).

Não deixa de ser irônico, durante vários anos Vallego dividiu seu tempo entre seu influente e popular programa na TV colombiana e o amante Escobar (Javier Barden). Daí a profusão de detalhes nas áreas familiar, na expansão da teia de narcotráfico em seu país e nos EUA, na criação do cartel de Medellín e no poder que obteve na política colombiana. São abordagens que Aranoa usa para criar subtramas, numa narrativa em que Escobar surge com sua figura calma, reflexiva, capaz de explodir e, ao mesmo tempo, se tornar flexível negociador para atingir seus objetivos.

Aranoa torna Vallego o principal contraponto à Escobar, dividindo com ele a narrativa do tema central do filme: a busca incessante do controle do narcotráfico e a acessão política na Colômbia. Ela é o centro ao redor do qual ele transita, não só devido à relação amorosa entre eles, mas também porque ela lhe dá prestígio. A presença dela nos eventos por ele organizados o faz chegar a milhões de famílias país afora. Sua participação, além disso, chega à população carente da região de Medellín através das câmeras da TV a registrar a ligação de Escobar com os pobres.

Vallego tem duplo comportamento

A câmera de Aranoa tem o duplo papel de sustentar a narrativa e flagrá-los em seus instantes íntimos. Eles parecem unidos não só pela paixão, mas pelo mútuo interesse. Como num filme noir, em que a “mulher fatal” começa por envolver o amante e termina por levá-lo ao beco-sem-saída, Vallego mostra desde o início a disposição dela para a dubiedade. É movida pelo índice de audiência e ele lhe dá isso. Desde o instante em que passa a controlar o narcotráfico em todo o país. E então encontra nela o meio para se contrapor à polícia e à Justiça colombiana e fugir ao perigo.

Como mantivesse a exposição narrativa em duplo registro, Aronoa coloca-os juntos na principal estratégia dele. A de executar projetos sociais nas comunidades carentes colombianas, como a construção de duas mil casas no Bairro Moravia, em Medellín, com o dinheiro do narcotráfico. E a de pôr as câmeras do programa de Vallego para mostrá-lo cumprindo o papel que cabia ao governo local e federal e estes não o faziam. E não se restringia a isto. Longe das câmeras, ele dava emprego aos adolescentes, como sicários, ou as chamadas mulas no Brasil. São eles a vender cocaína e maconha nas ruas e becos em meio ao movimento urbano.

De forma didática e sub-reptícia, Aranoa mostra que, além deles, havia os “traficantes independentes”, que recebiam participação de vinte mil dólares sobre o que vendiam, e os “vigias”, fiéis seguranças do próprio. Os elos do poder crescente de Escobar ficam, desta maneira, expostos. Escobar. Enriquecido em poucos anos, chegando a ter fortuna de 30 bilhões de dólares e “seus negócios” chegarem a astronômicos 420 milhões por semana. E, mesmo assim, seu poder estava limitado pela estrutura política do Estado colombiano e sob forte ameaça da polícia.

Escobar: a política precisa de dinheiro

Como se depreende ao longo de 123 minutos de filme, Aranoa não quer apenas valer-se da cinebiografia de Escobar para construir belas cenas de ação, animadas por tiroteios e sangue jorrando. Busca fazer o espectador ver de onde brotou a capacidade do jovem egresso da Universidade Autônoma Latino-americana organizar o narcotráfico de forma inédita no planeta, a ponto de a mítica Máfia parecer amadora. Ele entendeu que em sua país a estrutura de poder tinha de um lado a extrema pobreza, de outro a burguesia e no meio o corrupto poder político.

Numa das sequências, aparentemente sem grande significado, Escobar diz numa reunião com “parceiros independentes” que faltava-lhe chegar ao Parlamento para integrar o poder real na Colômbia. E explica a seus parceiros que desacreditavam de suas intenções: “A política precisa de dinheiro”. Trata-se de apenas uma cena com câmera parada e uma frase para elucidar exatamente o que ele pretendia. E desta forma surge a junção do astronômico poder financeiro do narcotráfico com a estrutura política colombiana, ou seja, quem tem dinheiro pode expandir seu poder.

Bons filmes, dotados de boas frases, boas situações, num roteiro bem armado, podem levar o espectador a captar num átimo todo significado político da trama. Esta por seu lado é cheia de ações dos personagens, centradas em suas ambições e concretos feitos. É, assim, que Aranoa se vale, mais uma vez, do livro de Vallego. Estar no parlamento, ao invés de reduzir a pressão da estrutura de poder real, através de seu braço policial e parlamentar, só a fez aumentar. Escobar ampliou de tal maneira o narcotráfico que chegou à América Central e por meio dela aos EUA.

Cartel queria pagar dívida do Panamá

Sem subterfúgios, Aranoa encena a reunião de Escobar com altas autoridades panamenhas como se fosse entre funcionários de Estado, não com um narcotraficante, por ele ser deputado. E chega a negociar a livre passagem de suas cargas de cocaína pelo canal do Panamá. E lhes propõe pagar a dívida externa de 120 milhões de dólares do país caribenho em troca da libração de suas exportações para os EUA. E o então presidente Ronald Reagan (1981/1989) afirmou que a juventude de seu país aumentara o consumo da coca. Assim, Escobar tornou-se seu maior abastecedor.

Este também foi o início de sua derrocada em se próprio país, por denunciar o então Ministro da Justiça, Rodrigo Lara Bonilha, como corrupto por ter recebido financiamento do narcotráfico. A partir daí já não eram apenas as forças federais e estaduais a montar o cerco em torno do Cartel de Medillín. Reagan pôs o agente da DEA (Agência de Combate às Drogas,1973), Sheppard (Peter Sarsgaard) junto com outros da CIA (Central de Inteligência Americana, 1947). Não bastasse, as facções sob o controle de Escobar se insurgiram devido à cerrada vigilância e liquidação.

Em sua articulada narrativa, cheia de suspense e aventura, Aranoa retoma a sub-trama na qual Vallego volta a pontificar de forma não surpreendente. Desde o início, ela é o ponto de ligação narrativa entre Escobar e o agente da DEA. Sheppard a vigia, corteja e manipula por ver nela explícitas fragilidades. Noutras circunstância, esta situação seria chamada de o princípio da derrocada do herói. Mas aqui é tão só o esteio em que a amante se torna seu ponto fraco. Em belas sequências entre ela e Escobar vê-se juras de amor e fidelidade, nem eles acreditam nisso.

DEA E CIA tentam cercar Escobar

Entre uma ação e outra, Escobar raramente tem instantes para relaxar. Aranoa mostra-o na maioria das vezes com Vallego e em algumas se une à companheira Victória Henão (Julieth Restrepo) e ao filho Juan Pablo, de oito anos, ao qual ele diz que não usava tóxicos e não o aconselhava a fazê-lo. Mais tarde a filha adolescente Manoela junta-se a eles. Não são elos que DEA e CIA possam se valer para derrotá-lo. O trabalho todo é feito em torno da bela e elegante e falante Vallego.

Menos quando Escobar demonstra ainda algum poder junto ao próprio governo colombiano ao negociar com ele a suspensão do tráfico e do confronto de rua entre os seus comandados e as forças de segurança. Ele mesmo se encarrega de construir a penitenciária e especialmente a cela-quarto de onde passaria a comandar o que restava do Cartel de Medellín. É nesta condição que recebe seus parceiros de narcotráfico e a negociação entre eles termina num massacre de serra-elétrica no qual pedaços se esparramam por todo canto. É outro Escobar, nada mais tem a reivindicar.

Fora as ótimas sequências de perseguição e tiroteios entre as forças de segurança colombianas e os narcotraficantes do Cartel de Medellín, Aranoa dá ao espectador dois grandes momentos do casal de atores Penélope Cruz (Vallego) e Javier Barden (Escobar). I – Ela conta ao amante que foi demitida e tem de empenhar seus pertences para sobreviver, mas jura que nada fará contra ele; II – Ela lhe pede oitenta mil dólares para mudar para a Alemanha porque está sob todo tipo de ameaça. E é armação.

Aranoa foge ao estilo operístico

Há verdadeira interação entre os dois atores espanhóis, estrelas de vários filmes de Pedro Almodóvar, dentre eles “Carne Trêmula”(1997). Começam por trocar juras e negativas, mas acabam por entrar em atrito, num verdadeiro show de mudanças de entonação, fisionomia e parcos gestos. São instantes de pura entrega de dois grandes atores no ápice de sua genialidade interpretativa. E Aranoa sabe como retirar tudo deles. Principalmente dela ao saber-se usada por Shepard e ver-se encurralada. E ele ao ver-se cercado pelas forças de segurança colombiana, tendo de falar ao telefone com o filho, num ardil da própria DEA, no desfecho.

Assim, Aranoa foge ao estilo operístico de Francis Ford Coppola (1939) na trilogia “O Poderoso Chefão” (1972/1974/1990), baseado no livro do escritor estadunidense Mário Puzzo (1920/1999). Não há o glamour ou o ritual da nobreza, enquanto a família Corleone busca manter seu espaço na máfia estadunidense. Escobar está mais próximo da luta por espaço no mundo do crime de “Scarface – A Força do Poder (1983)”, que Brian de Palma (11/09/1940) adaptou do clássico de seu compatriota Howard Hawks (1896/1977), “Scarface – a vergonha de uma nação (1932).

A abordagem de Aranoa é seca, centrada em ação contínua, em múltiplos cenários nas periferias de Medelin e Bogotá. Usa para isto uma narrativa simples, embora a história seja complexa, devido aos dúbios interesses de Escobar e da burguesia colombiana. Ao final fica a impressão de que ele não sobreviveu porque quis se impor ao ritual de poder em seu país. Ou seja, tentou controlar o parlamento e a estrutura de poder não só usando o dinheiro do narcotráfico para financiar campanhas eleitorais, mas para ampliar a exportação da droga para os EUA e muitos outros países.

Escobar: a traição (Loving Pablo).Drama/suspense. Espanha. 2018. 123 minutos. Música: Federico Jusid. Editor: Nacho Ruiz Capillas. Fotografia: Alex Catalan. Roteiro: Fernando León de Aranoa, baseado no livro “Amando Pablo, Odiando Escobar”, da jornalista Virginia Vallego. Direção: Fernando León de Aranoa. Elenco: Javier Barden, Penélope Cruz. Peter Sarsgaard, Julieth Restrepo.

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