A impugnação de Lula e o direito dos maus juízes

No último dia de agosto, mês em que tradicionalmente os projetos populares são apunhalados no Brasil, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em uma sessão dantesca, rasgou a Constituição Federal, uma decisão da ONU, o que restava de vergonha e impugnou a candidatura do presidente Lula.

Ilustração: Tainan Rocha

A decisão é um ataque à democracia brasileira. Segundo o voto do ministro Luís Roberto Barroso, vencedor no plenário, não vale para Lula a aplicação de norma da própria Lei da Ficha Limpa, que não impede a candidatura de alguém que ainda esteja em julgamento (há farta jurisprudência do próprio TSE nesse sentido). Aliás, para Barroso e a atual maioria da cúpula do Judiciário, também já não valia a garantia da presunção de inocência, uma evidente inconstitucionalidade que será revertida tão logo passem as eleições.

Agora, em mais um passo rumo ao estado de exceção, o ministro decide que tampouco tem valor uma decisão, de cumprimento obrigatório, do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, adotado no âmbito da ONU, foi assinado pelo Brasil e está incorporado ao direito interno brasileiro. É este, aliás, o entendimento claro, latente, da jurisprudência, dos manuais jurídicos e, inclusive das palestras e aulas de ministros do STF, Barroso entre eles. Mas, contra Lula vale tudo.

A decisão exclui das eleições o líder em todas as pesquisas e, como se não bastasse, ensaia inclusive uma proibição de que ele fale na propaganda eleitoral de sua coligação. Pela vontade do ministro Barroso, o horário eleitoral que caberia à candidatura de Lula seria preenchido com uma tela azul. Para que isso não acontecesse, foi preciso uma reunião fechada do TSE, de madrugada, sem transmissão pela TV, não qual se demoveu essa ideia que só escancararia ainda mais as portas do arbítrio.

Victor Nunes Leal, um verdadeiro jurista e democrata, que foi ministro do TSE e do STF, expulso da Corte por não ter se curvado ao golpe de 1964, deixou uma advertência em seu discurso de posse no Supremo, em 1960: o povo não esquece os maus juízes. “O povo pode esquecer os bons juízes, como deixa de prestar atenção às milhares de casas que se mantem rijas a despeito do tempo. Mas o povo não esquece o mau juiz, como se lembra, pelos anos afora, dos prédios que desabaram por imperícia ou negligência do construtor”, disse. Isso era verdade em 1960 e é também hoje.

A noite de 31 de agosto foi dos maus juízes. A sessão do TSE já mostrou a que vinha ao incorporar à pauta, em última hora, os pedidos de impugnação da candidatura de Lula. A defesa do presidente havia apresentado suas considerações às 23h do dia anterior, cumprindo o prazo regulamentar. Mas o ministro Barroso garantiu que as poucas horas que separaram a apresentação da defesa e sessão do Tribunal foram suficientes para ele analisar com correção e fundamentar cada um dos argumentos.

“A noite foi longa para mim e para minha equipe”, disse Barroso, com cinismo. Se todos os magistrados do país tivessem o mesmo afinco para longas noites de estudo e análise de qualquer caso, a morosidade não seria uma das marcas negativas do nosso Judiciário. E, talvez, não fosse tão escandaloso mais um reajuste salarial para a magistratura, justamente na mesma semana em que o TSE apunhalou a democracia e também em que o STF permitiu a intensificação da precarização do trabalho ao liberar a terceirização irrestrita.

O TSE, além de referendar o “law fare” contra Lula e aprofundar o estado de exceção em que vivemos, trouxe mais esse agravante do desrespeito a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU, abrindo um leque de consequência externas de extrema gravidade para o Brasil.

A questão era simples: o Comitê da ONU emite decisões às quais o Brasil se obrigou por força de tratado e do parágrafo 2º do artigo 5º da nossa Constituição. Lula ganhou uma liminar do Comitê determinando o respeito a todos os seus direitos políticos, entre eles o de ser candidato. Gostando ou não esse ou aquele ministro, a decisão deveria ser cumprida. Barroso, tal como a PGR Raquel Dodge, rasgaram sua biografia intelectual, suas próprias obras, e negaram a força vinculante do Comitê por mero cauísmo.

Nós já vivemos em um contexto de enfraquecimento da legalidade internacional que surgiu após a Segunda Guerra Mundial e isso é muito ruim. Bem ou mal, o sistema multilateral, com todas as suas imperfeições e desequilíbrios, foi o único espaço onde os estados mais pobres e desarmados puderam fazer-se ouvir. Justamente por isso vem sendo atacado desde o centro. Ele incomoda os Estados Unidos na OMC, quando emperra o avanço de medidas comerciais que só ajudariam os mais ricos, e incomoda na ONU, quando denuncia ações militares e condutas que desrespeitam direitos elementares e amplamente reconhecidos a todos os povos.

É verdade que o apego ao Direito pode soar ingênuo em um mundo no qual o realismo enquanto método de ação dos estados mostra-se cada vez mais revigorado. Mas também é verdade que, sem o Direito, estaríamos sem qualquer defesa possível diante do arbítrio da força que rege as relações internacionais. Por isso, quando um Estado como o Brasil, que vinha se destacando na liderança dos interesses do sul global, simplesmente rasga um tratado internacional como esse, é muito o que estamos perdendo. Na sanha de impedir Lula de ser candidato (e vencer!), seus inimigos não estão sequer mensurando a amplitude de suas ações.

O mesmo já havia ocorrido com o impedimento da presidenta Dilma. A cegueira do ataque a ela não permitiu que fossem vistas as consequências para a Presidência da República como instituição. O golpe deu lugar ao caos institucional em que vivemos, com a disputa em campo aberto por orçamento e poder no Estado. Agora, para atacar Lula, seus inimigos lançam o Brasil na ilegalidade diante da ordem jurídica internacional que regula os direitos humanos. Virão consequências ainda mais graves que o esvaziamento de nossa importância como país, em proporções ainda maiores que as já trazidas pelo Itamaraty em mãos do golpe e do PSDB.

Hoje, aos olhos do mundo e do Direito, Lula é um prisioneiro político, com o referendo de um Judiciário ilegítima e ilegalmente mergulhado na luta política. Mas, esse edifício pseudo-jurídico construído pelos tribunais superiores para referendar esse abuso certamente ruirá, porque a democracia é mais forte que os maus juízes. A estes, como lembrava Victor Nunes Leal, caberá sempre um lugar especial na memória do povo.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor