“O Nome da Morte”

O senhor das execuções

Em filme centrado no pistoleiro Júlio Santana, cineasta brasileiro Henrique Goldman oscila entre o thriller e uma sucessão de obscuras execuções.

Entre uma espaçada denúncia aqui e outra ali na mídia, o que os guardiões do submerso espólio da Ditadura Militar insistem em manter escondido em seus porões desde a década de 70 emerge com grande impacto. Desta vez através da biografia do pistoleiro tocantinense Júlio Santana (1954), de autoria do jornalista Klester Cavalcanti, e de sua adaptação para o cinema, em título homônimo “O Nome da Morte”. Porém, o que o espectador vê na tela é uma livre adaptação feita pelo cineasta Henrique Goldman (Jean Charles, 2009) e seu co-roteirista George Moura.

Como sempre ocorre nestes casos surgem, então, as naturais comparações, pois se cada um ao assistir ao mesmo filme tem visões diferentes sobre ele, imagina num caso destes. A dupla Goldman/Moura prefere eliminar a narrativa linear de Cavalcanti, que permite ao leitor conhecer profundamente a natureza do pistoleiro tocantinense Júlio Santana (Marco Pigossi) em 219 páginas. Assim, o que predomina na narrativa de Goldman em 98 minutos é a tendência a não matizar a estreita relação de Júlio e seu tio Cícero (André Mattos) e nem dizer o que motivou as execuções.

Existe o universo das execuções feitas pelas milícias e o crime organizado por disputas por espaço e poder submerso e o mercado das execuções por onde transitam os pistoleiros. Em princípio este último parece resquício do Brasil feudal, ainda imperante em áreas rurais, indígenas, garimpos, florestas e pequenos municípios. Na verdade, ele sobrevive no meio urbano através dos conflitos familiares, dívidas não pagas, medo de perder espaço político e de mercado para o concorrente. Os executores são silenciosos, “invisíveis” e têm segura cobertura.

Exército concentrou 10 mil soldados no Araguaia em 1972

Na descrição das 492 pessoas eliminadas por Santana em 35 anos de atividade (1971/2006), Cavalcanti opta pelas execuções mais chocantes. Dentre elas as de mulheres, homens, crianças e jovens brancos e afrodescendentes. Não centrava só numa cidade ou estado, ia do Maranhão ao Piauí, de Tocantins a Goiás. Inclusive no auge da descoberta do ouro em Serra Pelada, onde a cobiça e o dinheiro corriam soltos em Imperatriz e Marabá, no Piauí. E a morte podia chegar junto com a recusa de pagar dívida ou brotar da desconfiança de estar roubando o ouro do patrão.

Cavalcanti, no entanto, não se prende só a este universo. Estende-o ao Araguaia de 1971, quando os militantes do PCdoB (Partido Comunista do Brasil) expandiam seus acampamentos na região. Iniciado ainda em 1969, tinha então 69 dos seus em ativa relação com os camponeses e no auge em 1972 chegou a 86. A Ditadura Militar à época do ditador-general Garrastazu Médici (1905/1985), de 30/10/69 a 15/03/1974, chegou a concentrar 10.000 soldados do Exército na floresta sob o comando dos generais Vianna Moog e Antônio Bandeira. Faziam cerrado cerco aos guerrilheiros comunistas e forçavam os camponeses a denunciá-los, sob risco de tortura e execução sumária.

Devido à relação de Cícero com o delegado de Xambioá, Carlos Marra, o jovem Júlio de 17 anos acabou sendo incorporado ao Exército. Sua tarefa era vistoriar a floresta e identificar quem por ela transitava. O objetivo era localizar os acampamentos dos guerrilheiros do PCdoB e quem lhes dava cobertura. No dia 18/04/1972, Júlio localizou Geraldo, codinome de José Genuíno Neto, 25 anos, estudante de Direito na Universidade Federal do Ceará, em plena floresta amazônica. Na fuga, terminou por atingi-lo com um tiro de espingarda no ombro direito.

Júlio depara-se com Maria Lúcia Petit

Logo depois, Júlio viria realizar sua segunda execução, longe de sua cidade natal, Porto Franco, no Maranhão, onde fizera a primeira. Fora do pescador Antônio Martins, de 38 anos, a mando do feirante Marcos Lima, de 36 anos, por ter ele estuprado sua filha de 13 anos. Não só o fez, como lhe rasgou a barriga com o facão e o lançou ao rio Tocantins, deixando os peixes se fartarem. Agora, integrado ao Exército em plena floresta a situação era outra, pois temia a reação dos guerrilheiros. Foi assim que se deparou com a jovem Maria Lúcia Petit da Silva (20/03/1950) e seu grupo.

Disparara contra ela com sua espingarda e só depois viu quem era. “Ao aproximar-se, ele ouviu um dos militares dizer: ”É uma moça” (Obra citada, pág. 126)”. Era junho de 1972. Ela foi enterrada numa vala comum, enrolada numa lona de paraquedas da FAB (Idem, idem), no cemitério de Xambioá, no Tocantins. Durante quase 20 anos, ela permaneceu como “desaparecida”. E só foi localizada e seu corpo exumado devido à comissão formada por familiares de mortos e desaparecidos na guerrilha, (dentre elas sua irmã Laura Petit), membros da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São e peritos da Universidade de Campinas (Unicamp).

Vê-se que Cavalcanti não se eximiu de mostrar o envolvimento de Júlio com o Exército no combate, a tortura e a execução de guerrilheiros, caso de Genuíno e Maria Lúcia Petit. Inclusive presenciou o corpo do guerrilheiro do PCdoB, o cearense Bergson Farias, de 24 anos, morto na manhã da segunda-feira, 08/05/1972, ser açoitado pelos soldados do Exército. “Um grupo de dez ou doze militares escarneciam e praguejavam contra o defunto, ao mesmo tempo que lhe chutavam o rosto e a nuca (…). Os pontapés já tinham aberto cortes no rosto do morto (pág.101, obra cit.).

Goldman elimina a parte do Araguaia

Ao reconstituir a experiência do pistoleiro Júlio em depoimento para sua biografia, Cavalcanti registra importante página da luta popular contra a ditadura militar (1964/1985). Os próprios documentos da CIA, órgão de inteligência do Governo dos EUA, mostraram que as execuções não cessaram nem durante o governo do general Ernesto Geisel (15/03/1974/15/03/1979). Vê-se que fechar os arquivos não significa que elas não emergirão em seus próprios termos, mostrando que a verdade histórica é inevitável. Mostrá-la no cinema é dar ao espectador a chance de ter ciência dela e formar sua própria visão sobre os crimes da ditadura.

Transpor uma obra literária para o cinema não significa vertê-la 100%. Cada diretor ou roteirista, com sua tendência política ou não, sua cultura e técnica cinematográfica o fará em seus termos. Goldman e seu co-roteirista George Moura optaram por desenvolver uma história, a partir de uma narrativa que elimina 76 importantes páginas da biografia de Júlio Santana. Não só por se tratar da Guerrilha do Araguaia, mas por mostrar a utilização de dois pistoleiros nas operações do Exército. Além de Júlio, Cícero também o era, embora se passasse por soldado da Polícia Militar.

O que surge na tela é o enfileirar de execuções sem sentido. Falta uma linha central, a nortear a narrativa. Em primeiro lugar, o fato detonador da ação, o leitmotiv. E depois encadear as ações que mostrem Júlio ciente das motivações de seus mandantes. Não é um autômato, que age movido apenas pelas orientações de Cícero. Desde sua fuga pelos muros e telhados e quintais, no início do filme, percebe-se que ele está envolvido em algo grave. Vê-se tudo como se fosse um pesadelo em flashback do qual o personagem emergirá no desfecho como apareceu.

Cícero ensina a Júlio o código dos pistoleiros

Esta é, ao que parece, a forma de Goldman encadear das ações de Júlio. Ele entra e sai de moto e ressurge num ambiente, onde executa o acertado e foge. No máximo se encontra com quem irá evitar que ele confunda a pessoa a ser eliminada. É tudo mecânico, sem sentido. Os cenários onde se desenvolvem as ações dão a impressão de terem brotado de alguma fantasia. É o caso das rodovias e do campo, da terra avermelhada e do clima noturno. Há, assim, um eterno ir e vir, sem tempo para decantar a própria existência. Ou seja, os instantes de reflexão.

Falta a gênese do pistoleiro Júlio nesta opção narrativa de Goldman. Desde cedo, como enfatiza Cavalcanti, Cícero ensina-lhe os códigos dos pistoleiros, como não chantagear os companheiros de profissão e a lidar com arma. Deste modo, ele se tornou exímio atirador com espingarda. Não é, portanto, um autômato, é frio, calculista e centrado. Sua habilidade de executor não se perde nem quando entra em conflito com o tio. E, além disso, Cavalcanti mostra o que ele faz com o dinheiro e quais são os seus sonhos. Nunca deixa de pensar nos pais Jorge e Marina e nos irmãos adolescentes Pedro e Paulo.

Este seu emblemático início de carreira escapou à câmera de Goldman. Não só isto, também lhe escapa o quanto de medieval ainda predomina nas relações políticas brasileiras. O que fica claro na execução do sindicalista Nativo da Natividade, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Carmo do Rio Verde, interior de Goiás. A motivação é o medo do prefeito Roberto Paschoal, de Rio Verde, interior de Goiás, de perder as próximas eleições municipais. Nativo morreu, mas Paschoal acabou inocentado devido à falta de provas.

Mulher se vê em apuros no banheiro

Não bastasse, Goldman deixa de lado o que seriam duas fortes sequências, capazes de pôr o espectador de cabelos em pé. Numa delas, Júlio e Cícero estão em Serra Pelada no auge do garimpo ao ar livre. Índio, o mais rico garimpeiro de Marabá, no Pará, cheio de posses e exigências, decidiu contratá-lo para ajustar contas com seu empregado João Baiano, um afrodescendente do qual desconfiava. A questão é que, pela primeira vez, ele iria amargar um fracasso. E viu-se diante da perda de sua reputação. O modo como Cavalcanti conta esta história é de arrepiar.

Não menos impactante é a construção do caso que envolve marido e mulher em conflito. É a um só tempo apavorante e hilariante. Um dos mais belos da literatura brasileira em décadas. Se passa todo no banheiro e na cozinha da casa, porque o marido já não suporta mais a esposa. De novo, Júlio é encarregado de executar a jurada de morte. Ocorre que por mais que tente vigiá-la, ela lhe escapa. Ele então se vê na tentativa de afogá-la no tambor d´água. É tétrico e apavorante. Exige frieza e tenacidade do estabanado Júlio. Quando o marido chega, ele está exausto e deixa a casa.

Entra aqui outra das principais sub-tramas da narrativa que poderia render belas imagens. O modo como o valor das execuções cresce à medida que Júlio se mostra confiável e eficiente. E Cícero se torna uma espécie de seu empresário, lucrando mais do que ele, por acertar altos valores e lhe repassar importâncias bem menores. No caso de Nativo, ele soube pelo assessor de Paschoal que fora acertado três milhões de cruzeiros em 1983 e ele só iria receber dois milhões. O choque com o tio então tornou-se inevitável.

Maria consegue fazer Júlio largar o crime

Falta, contudo, o que na maioria das vezes diversifica e equilibra a narrativa. O interesse amoroso de Júlio, a começar pela adolescente Ritinha, com o qual ele se envolveu profundamente na adolescência. Ao estilo Romeu e Julieta, eles juraram amor eterno. A vida, contudo, os levará a caminhos diferentes. É quando ele, em plena Serra Pelada para levar a cabo uma execução, depara-se com a bela e inteligente neta do dono do bar, onde vigia o bancário que pretende dar o cano no agiota e este, em princípio tenta negociar, mas acaba por confiar a cobrança no gatilho de Júlio.

Esta bela dualidade, leva o espectador a notar o quanto ele é sedutor e capaz de ousar na conquista. É a jovem Maria (Fabiula Nascimento) que irá encaminhá-lo para outras vertentes da vida. Juntos irão cuidar dos dois filhos e se encaminharem para o que ele sempre pensou, mas o tio e o dinheiro não deixavam. É quando ele decide mudar de vida, aos 52 anos, com mulher e filhos. Em 35 anos de execuções, matou quatro menores de 16 anos, 59 mulheres e 424 homens, num total de 487. Sem contar os cinco que eliminou, dentre eles Amarelo e Maria Lúcia Petit. Os outros dois não entraram nesta conta.

Em três décadas e meia, a única vez que se viu em apuros foi quando, já no final de carreira, foi detido pelo delegado Estevão Gomes, de Porto Franco, onde morava com a companheira e os dois filhos. E só ficou livre da cadeia porque Maria fez boa negociação com Gomes. Longe de sua cidade natal, os dois e os filhos entraram para a Igreja Evangélica, numa cidade e estado mantido em sigilo. Não se sabe se está protegido pelo Exército ou pela própria Justiça. O único momento em que se expôs sem se deixar fotografar foi quando Cavalcanti gravou seu depoimento sob absoluto sigilo.

“O Nome da Morte”. Drama biográfico. Brasil. 98 minutos. 2018. Trilha sonora: Brian Eno. Montagem: Lívia Serpa. Fotografia: Azul Serra. Roteiro: Henrique Goldman, George Moura, Victor Leite. Direção: Henrique Goldman. Elenco: Marco Pigossi, Fabiula Nascimento, André Mattos, Tony Tornado, Matheus Naschtergaele.

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