“Uma Casa à Beira-Mar”

A atitude que se impõe

Ao refletir sobre a morte, a meia idade e os dilemas dos refugiados, o cineasta francês Robert Guédiguian defende a urgência da solidariedade.

Nada mais chocante do que a perda, a orfandade e o vazio. Três irmãos à beira da terceira idade irão senti-los ao estar diante do idoso pai Maurice (Fred Ulisses) imobilizado na cama, neste “Uma Casa à Beira-Mar”. Não bastasse o choque, Armand (Gérald Meylan), Angèle (Ariane Ascaride) e Joseph (Jean-Pierre Darroussin) não se encontram há décadas. Além de verem o pai à morte, sentem-se deslocados, como se tivessem contas a ajustar consigo mesmos. Este é, enfim, o tema central que o cineasta francês, de origem arménia, Robert Guédiguian (03/12/1953) irá desdobrar com rara habilidade ao longo de 107 minutos.

Como em outros de seus filmes, a história se passa em Marselha, na Córsega francesa, sua cidade natal. Os três irmãos acercam-se do pai no casarão em que passaram a infância, sustentados pelo restaurante da família à beira-mar. Guédiguian se detém na boa relação entre ambos. Armand, na ausência da irmã, famosa atriz de teatro, e do irmão sindicalista de esquerda, cuidou do pai e administrou o pequeno negócio nestes anos todos. Nenhum dos irmãos pretende dividir com ele, a partir daquele instante, o que manteve sozinho até o ataque sofrido pelo pai.

O que importa a Guédiguian e seu co-roteirista Serge Vallette é estruturar a narrativa a partir do estado vegetativo de Maurice. E então se concentrarem nas reações dos que não conviviam com ele. Porém, nenhum de seus filhos ficou tão chocando quanto seu irmão Martin (Jacques Bourdet) e a cunhada Suzanne (Geneviéve Mnich). Os dois passam então a refletir sobre o ciclo da vida e da inescapável morte. Viam-se, desta forma, em situação idêntica à de Maurice. Serem idosos tornou-se para eles uma verdadeira tortura. Nem o filho deles, o jovem médico e empresário Yvan (Jann Trégouét), deu-se pela silenciosa aflição e o temor de seus pais.

Guédiguian foge ao dramalhão

A abordagem de é de uma racionalidade impressionante. Em momento algum, faz concessão à pieguice e ao dramalhão. São poucas as sequências em que mostra Maurice em seu leito de moribundo. Filma-o ora à distância ora perto, sem se demorar. Quando muito registra por segundos, Armand a ansiar por sua melhora. Ele, porém, não o ouve ou ao menos se move ou abre e fecha os olhos. E pode ficar neste estado de inconsciência por anos, como os próprios filhos comentam entre si. Guédiguian usa, desta forma, informações sobre as consequências do ataque para contextualizar a história e sua narrativa. E torna-a mais densa.

O tema central então se bifurca ao introduzir os impasses de Angèle e Joseph. Às vésperas da terceira idade, eles começam a enfrentar os problemas condizentes com o passar dos anos. Sentem-se marginalizados e incapazes de manter uma relação amorosa. A começar por ela, às voltas com a carreira estagnada e, notadamente, por suas represadas e aflitivas lembranças. Em rememorações, Guédiguian matiza-as por meio das imagens da filha pré-adolescente em meio ao temporal e depois a se debater no fundo do oceano. Não sem razão, afloram doloridas e punitivas feridas, depois de terem sido escondidas por décadas a fio.

São estes impasses que a fazem resistir as investidas do jovem pescador Benjamim (Robert Stevènin). Ele insiste em obter alguma atenção dela. No entanto, a barreira dos anos entre eles a impede. E ela insiste nisto. Guédiguian discute aqui a situação da mulher que se mostra insegura e fragilizada. E teme ser mal-entendida pelo jovem. Mais por ele vê-la como atriz famosa do que mulher. Benjamin tenta desmentir suas impressões na bela sequência em que lhe mostra conhecer suas peças mais importantes e recita uma das falas mais impactantes de “A Boa Alma de Setsuan (1939/1943), do dramaturgo alemão Bertold Brecht (1898/1956).

Angèle sente a perda da filha

É uma criativa elaboração dramático-imagética de Guédiguian, pois há um jogo entre eles. Benjamin, longe de desconhecer os palcos, revela-se o apaixonado que não quer ser apenas fã. Decide lhe mostrar seu amor através das peças por ela interpretadas. E a partir daí, embora resista à insistência dele, se mostra disposta a compartilhar alguns momentos seus, sem se expor demais. Isto a ajuda suportar as dores geradas pela culpa pelo que aconteceu à filha. É o reverso da dor soterrada, pois a dialética da vida a trouxe a Marselha, devido ao caso do pai e a fez reviver a paixão.

Este romantismo não visto nos filmes de Guédiguian atesta seu olhar otimista. A avançada idade não é obstáculo para a recusa ou a impossibilidade do amor. O modo como ele estrutura esta redescoberta em poucas sequências é de grande leveza e sensibilidade. É mais o compartilhar de momentos, como na pescaria em alto mar. Ela se comporta como se fosse uma garota a reviver as possibilidades da relação a dois. E, por mais que se cerque de cuidados, é seu renascer como mulher. É uma ousadia de Guédiguian mostrá-la recomeçar em meio à dor e a culpa.

O reverso desta relação ocorre entre Joseph e a jovem e bela Berangère (Anais Demoustier). Ele não esconde a diferença de idade entre eles, está ciente de que o vigor dela se contrapõe ao esvair de sua energia. Busca mantê-la, mas sabe que ela acabará por se cansar dele. Procura não ser tão exigente e deixa-a à vontade. Guédiguian não a compõe como espevitada e volúvel, muito pelo contrário é inteligente e boa companhia. Nem por isto quer perder sua liberdade. Joseph, por seu lado, está na fase de perceber que é melhor deixá-la se distanciar do que lutar por ela.

Armand e seus irmãos escondem refugiados

Ainda assim, Guédiguian opta por criar um inimaginável triângulo-amoroso. O outro vértice é o jovem e impetuoso Ivan, energizado e ciente de suas possiblidades diante do primo. Aos poucos nenhum deles esconde do outro o que se passa. Joseph vê, assim, o quanto Berangère está fora de seu alcance. Não se mete a ciumento ou lhe atribui a culpa. Definitivamente não é machista. Sua saída é se unir a Armand para cuidar da mata nas proximidades de seu restaurante, a fim de evitar incêndio durante o verão. É uma forma de ele ser útil e não sofrer a perda da amada.

Através destas conciliatórias construções dramáticas, Guédiguian lança sobre o espectador a realidade irreconciliável. Numa de suas caminhadas pelas trilhas Armand e Joseph encontram a adolescente e seus dois irmãos pré-adolescentes árabes. Assustados, ambos terminam por se entender. A partir daí o que brotara da solidariedade, decorrente da visão política dos três irmãos, se transforma num confronto entre eles e o batalhão do Exército francês. Encarregado de encontrar os desgarrados e os levar de volta ao centro de triagem, eles não os deixam em paz.
Da primeira vez, o Tenente afro-francês (Diouc Konet) indaga a Joseph se algum refugiado foi visto nas redondezas. O que ele nega. “Se virem algum deles me informe”. A informação do oficial era que o Governo francês trataria dos fossem vistos e, se fosse o caso, os levariam para o abrigo. O que ocorre, a partir deste encontro, é esclarecedor das falsas promessas, denunciadas por Guédiguian. Cientes de que garantia alguma teriam de que os menores seriam legalmente abrigados em local seguro, eles as escondem. Enquanto isto, elas vão se adaptando e se tornando membros da família, ainda que Maurice continuasse em coma.

Joseph troca insultos com tenente afro

Ao retornar à casa dos três irmãos, o Tenente afro-francês está irado. Embora Joseph, com o apoio de Armand e Angéle, volte a lhe garantir que nenhum refugiado aparecera, eles trocam pesados insultos. Não se trata mais de autoridade e cidadão, mas de dois homens à beira da agressão física. “Meu trabalho, diz o tenente, é garantir a tranquilidade de vocês burgueses (citação não literal)” Joseph lhe responde no mesmo tom. “Não fale assim comigo! Lutei para que negros como você chegassem aonde estão” Enfim, o Tenente entende o que se passa e deixa-os entregues às próprias escolhas. Deste modo, o ódio ao refugiado, ao outro, ao marginalizado, expulso de sua própria terra fica escancarado.

Este é o estilo de Guédiguian: introduzir o espectador num universo aparentemente distante do que vê na tela. Aqui é o dos refugiados largados à própria sorte, depois de os governos de George W.Bush (2001/2009) e de Barack Obama (2009/2017) e seus aliados da União Européia terem destruído o Iraque e a Líbia e iniciado os ataques à Síria. O objetivo é garantir o controle das reservas de petróleo e das rotas marítimas de seu transporte para os EUA e a Europa. E antes disso, seus antecessores fizeram o mesmo com as reservas minerais de vários países africanos, hoje empobrecidos. Devido a isto, seus povos são obrigados a se refugiar nos países que os dilapidaram. E são vistos como invasores. Dá para acreditar?

Mesmo com esta complexidade, este “Uma Casa à Beira-Mar” transita entre a realidade e a construção ficcional. Nem por isto, Guédiguian deixa de estruturá-lo com simplicidade. O que importa para ele é contar bem a história através de fortes imagens. No final, o espectador fica com a sensação de que a ficção lida com fatos tão reais quanto a realidade que o circunda. E leva-o tanto a se divertir, quanto refletir sobre o que acabou de assistir. Assim foi em “A Cidade Está Tranquila (2000)”, quando a mãe para não ver a filha morrer consumida pelas drogas decide acabar ela mesma com o sofrimento da garota. O choque é válido!

Uma Casa à Beira-Mar. (La Villa). Drama. França. 2017. 107 minutos. Montagem: Bernard Sassia. Fotografia: Pierre Milori. Roteiro: Robert Guédiguian/Serge Villette. Direção: Robert Guédiguian. Elenco: Ariane Ascaride, Jean-Pierre Darroussin, Gérard Meylan, Jacques Boudet, Anais Demoustier, Robison Stévenin.

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