Turquia: dilemas entre o Islã e o Estado laico

Já era previsível a esmagadora vitória do Partido do atual primeiro Ministro, Recep Tayyip Erdogan, do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento). As pesquisas mostraram com bastante antecedência e comentamos isso em nossas colunas. O que se discute hoje

Os resultados


 


O que estava em jogo, em uma eleição antecipada, ocorrida no último domingo, 22 de julho, eram as 550 cadeiras do parlamento unicameral turco. O Partido – dito pela imprensa de “moderado” – de Erdogan venceu. Não atingiu a maioria dos votos e do eleitorado, obtendo 46,4% da votação popular. Mas, mecanismos de cláusulas de desempenho e de barreira, fazem com que as cadeiras sejam distribuídas em sua maioria ao partido que teve mais votos. Por essa matemática política, o AKP ficou com 340 vagas (isso equivale a 66% de todo o parlamento). Mas não obteve a maioria para as reformas que pretende ainda fazer.


 



No poder desde 2002, há cinco anos, o AKP terá que negociar alguma composição com o Partido Republicano do Povo (social democrata, CHP, que obteve 20,8%) e/ou com o nacionalista e direitista MHP (Partido de Ação Nacional, que obteve 14,2%). Todos esses dois partidos, mais os independentes professam um estado completamente laico. A surpresa é que os independentes obtiveram 18,6% dos votos populares. Dos 73 milhões de habitantes da Turquia, 42 milhões estavam escritos para votar e surpreendentemente, cerca de 80% compareceram e ajudaram a manter no poder o AKP.


 



Os dados que pudemos ter acesso mostram o apoio dos estratos mais populares ao partido do governo, cuja elite no país vê com desconfiança. Nos bairros mais fortemente islâmicos, mais populares de Istambul, a votação foi esmagadora no AKP. A grande questão é: as reformas que estão ainda por serem feitas, vão mudar os rumos do país? Como ficará a questão dos curdos e seu braço político PKK ou Partido Curdo da Turquia (1).


 



A questão do Estado laico


 


A Turquia foi sede do Império Otomano desde o histórico ano de 1453. Nessa data, a cidade de Constantinopla (fundada pelo Imperador romano Constantino), fora tomada por exércitos guerreiros islâmicos. Era a época do Império Islâmico, que passava das mãos de seu comando dos árabes para os turcos, mas seguia islâmico.


 



A cidade histórica de Constantinopla, fora sede do império Romano do Oriente, cristão desde o ano de 330. De 1453 até o fim do Império Otomano, em 1922, a Turquia passou por mudanças profundas. Mas, nada mais profundo do que pode ter sido o Getúlio Vargas dos turcos. Trata-se do general Mustafá Kemal, conhecido como Ataturk (Pai dos Turcos). Governo até o mesmo número de anos que Getúlio governo o Brasil: 15 anos! (1923-1938). Era até uma mesma época. Ataturk (1880-1938) morreu jovem. Tomou o poder jovem, com menos de 43 anos. Uma das suas reformas foi até da escrita, que passaria a ser com alfabeto latino, letras ocidentais. Separou radicalmente a religião dos negócios de Estado. Radicalizou o Estado laico, conforme preconizava, desde o século XVIII, os burgueses na França.


 



O Exército avalizou essas mudanças. E nesses 84 anos de estado laico, os militares intervieram quatro vezes, produziram golpes de estado, quando se fez necessário, para manter a Turquia laica, ainda que majoritariamente muçulmana. Até onde isso será possível? A pergunta que se faz é o AKP tem alguma carta na “manga”? Estaria querendo a volta de um “estado islâmico”? Não tenho uma opinião formada ainda.


 


O que se tem visto é um esforço, iniciado em 2002, mas aprofundado a partir de 2005, para que a Turquia ingresso na União Européia. Acho difícil que isso ocorra e se ocorrer, será com muitas resistências de boa parte da comunidade que pensa que isso faria com que as portas de toda a Europa fossem abertas para milhões de turcos, migrassem imediatamente para os países europeus, onde as condições de vida seriam melhores.


 


A Turquia vive o dilema de ser um país dividido entre a Ásia e a Europa, separado pelo estreito de Bósforo, na cidade de Istambul. Qual a vocação desse país? Identificar-se e unir-se à Ásia e aos países islâmicos ou juntar-se ao Ocidente europeu? Um dos mais conceituados cientistas políticos ainda vivo, Samuel P. Hungtintton tratou disso em seu já histórico Crash of Civilization, da Foreing Office do verão de 1995, ao qual tive oportunidade de estudar e publicar um artigo comentando. Hungtintton diz que a divisão é real e profunda. Parte da elite pode dar às costas ao povo islâmico e juntar-se à Europa, que rejeita a Turquia, que não a aceita. Quer apenas o seu mercado de consumo. Outra parte, talvez mais patriótica, deseja aprofundar as suas raízes e identidades asiática, islâmica e turca e quer distanciar-se do Ocidente.


 


Não esta em jogo aqui o conflito capitalismo ou outro modelo de sociedade, ainda que haja contestação ao modelo econômico do atual primeiro Ministro, excessivamente liberal para alguns. No entanto, o que poderia estar por trás de seu projeto de eleger um presidente de seu próprio Partido, Abdulla Gull? Estaria em curso um projeto de islamizar a sociedade, retirando a sua laicidade?


 


Todos os que me conhecem sabem que defendo o estado laico, não professo religião alguma, ainda que estude e respeite a todas elas com equidade. No entanto, já se disse certa vez que o Islã pode ser hoje uma das últimas trincheiras de resistência do Ocidente capitalista, consumista, vulgar, individualista. Não é por acaso que em várias partes do mundo, especialmente na Índia e Oriente Médio, vê-se amplas alianças entre comunistas e muçulmanos, para derrotar o que hoje seria o inimigo principal da humanidade, o imperialismo norte-americano e seus aliados.


 


Acho difícil Erdogan emplacar o seu presidente, que já se declarou e reafirmou a sua candidatura. Isso irritará os militares, tidos como guardiães da constituição e da separação da Igreja do Estado. Mas, e o povo, como reagirá? Poderá ocorrer uma alteração constitucional para que o voto seja direto e não em sessões no parlamento. Vencerá o AKP? Mesmo vencendo, quem é que sai ganhando com isso? Como ficarão os interesses americanos com isso? Não tenho todas as respostas, mas seguiremos acompanhando os acontecimentos.
 


Nota



(1) Muitos dos dados desta coluna foram obtidos na reportagem intitulada “Modernidade islâmica”, de autoria de Gianni Carta, publicada em Carta Capital nº 455, de 1º de agosto de 2007, página 54-58.



 

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor