“A Festa”

Entre a imagem e o compromisso

Com olhar de quem procura espelhar o impasse político-ideológico atual, a cineasta inglesa Sally Potter discute a necessidade do compromisso.

Em meio às conversas entre os convidados de diferentes países neste “A Festa”, o espectador termina envolvido num emaranhado de ideias e opiniões fora de seu cotidiano. Os temas variam à medida que o grupo vai se ampliando. Eles vão da política à filosofia, passando pelas finanças e a saúde, numa rapidez digna de encontro de velhos amigos. O motivo de tal confraternização é a nomeação da médica Janet (Kristin Scott Thomaz) para o cargo de Ministra da Saúde do Governo Inglês. Dirigente de atuante partido de esquerda, ela sonha vir a ser Primeira-Ministra da Inglaterra.

Com esta tipificação narrativa, a cineasta inglesa Sally Potter (19/09/1949) conduz este drama-político, desde o início, como um filme-leque que avança em acelerado ritmo. Vemos Janet às voltas com a cozinha e a recepção dos convidados. Enquanto isso seu companheiro Bill (Timothy Spall), professor de história, fica estendido no sofá, como se entediado. Cabe-lhe, no entanto, entreter os primeiros convidados, o casal April (Patrícia Clarkson), estadunidense, e Gottfried (Bruno Ganz), alemão. E, assim, Potter lança sobre o expectador uma série de situações inusitadas.

April, por exemplo, não acha que “os problemas ingleses seriam resolvidos através de eleição parlamentar”. Ao que Janet lhe responde com certa acidez que isto é” típico do utopismo-americano”. O caso se expande para a imagem da anfitriã. Contudo, a convidada não se retrai e lhe diz em outra sequência do filme: “Se quer ser primeira-ministra deste país, deveria mudar antes este seu penteado”. O riso aqui é provocado pelas posições direitistas da burguesa April, que vê o candidato através da imagem imposta através da mídia. Não é diferente do que se vê no Brasil.

“Não há dinheiro limpo, diz Tom”

Potter não se detém em explicações sobre as relações entre Janet e April, mesmo espelhando campos políticos opostos. Ela tão só expõe o que a convidada diz, como se a flagrasse em seus piores momentos. Não menos significativa é a chegada do casal de lésbicas, a professora Martha (Cherry Jones), de meia-idade, e a jovem cozinheira Jinny (Emily Mortimer), grávida de trigêmeos por inseminação artificial. Esta logo se enfronha com Janet na cozinha. Forma-se então um trio ao redor de Bill, com a conversa girando em torno do ausente banqueiro Tom (Cillian Murphy).

Depois de tecer maldosos comentários a respeito dele, Martha encerra-os a com a frase: Ele ganha milhões de dólares com o infortúnio dos outros”. Quando ele, enfim, aparece agitado, ela já desconstruiu sua imagem de honesto operador de altas finanças. Tom é jovem, despachado, ao invés de unir-se a ela e Bill, se enfurna no banheiro onde cheira cocaína. Ao voltar está aceso. Ao ser criticado por Gottfried, devido ao seus obscuros negócios, ele esbraveja: “Não há dinheiro limpo (no mercado)”. Pelo menos neste momento, ele não trapaceia.

As desconstruções empreendidas por Potter (Orlando, 1992/Ginger & Rose, 2012) não se restringem às finanças. Na segunda parte do filme, de 71 minutos de duração, a discussão do trio Bill, Martha e Gottfried se expande para o questionamento da medicina em geral. O alemão afirma que” no Ocidente ela não passa de vodu”, ou seja, feitiçaria. “Os médicos (daqui) nada sabem sobre doença. Só tentam identificar os sintomas!” E avança, inclusive para outra polêmica. “O que predomina aqui é o placebo”, cura com falsos remédios e sugestões que fazem o doente se sentir curado. E defende o uso da homeopatia e das curas feitas por curandeiros.

“O feitiço pode ter efeito”

Potter por seu turno não está interessada em elaborar contraposições às ideias de Gottfried. Prefere externar as posições ateísta e materialistas de Bill, que defende as crenças e as curas feitas milenarmente através de rezas e plantas. “O feitiço pode ter efeito”, afirma ele. É sua forma de apoiar as controversas posições do convidado alemão. Gottfried encontra assim outro motivo para ampliar suas críticas. “O que os médicos sabem sobre Deus?” O que ele questiona não está de acordo com o imediatamente confirmável, tudo beira às suposições de momento entre dois amigos.

Potter estrutura sua narrativa da forma como se dá na própria vida. Conversas entre amigos numa festa não fluem segundo um roteiro, surgem de acordo com o que vem à mente de cada um deles. O realismo ao qual se prendem não é o da verdade ocultada por grupos de interesses. O que eles dizem brota de suas próprias convicções político-ideológicas. Em sua vida cotidiana fogem ao imposto pela sociedade de classes. Entretanto, o personagem mais realista em cena é Tom. Na “festa” cheira cocaína no banheiro e guarda seu revólver no latão de lixo e é só um dos convidados.

O universo criado por Potter beira o surrealismo. E pode ser visto como brotado dos recantos submersos do inconsciente, ou seja, da mente de Gottfried, Bill, Tom, April e Martha. Não menos absurdo do que os burgueses ridicularizados por Luís Buñuel (1900/1983) em “O Discreto Charme da Burguesia” (1972). Por mais que tentem não conseguem concluir seu jantar de gala. Neste “A Festa” é a sempre adiada presença da tão importante convidada a não dar ciência de quando chegará.

“Sistema de saúde privado se impõe”

Todo este entrelaçar de situações ganha outro contorno na terceira parte do filme. O que completa o universo abordado por Potter. Há de um lado a convidada tão letárgica e de outro Bill vive preocupante quadro de saúde. Ele revela a Janet o que lhe acontece, depois de os outros tentarem socorrê-lo e ela, enfim, o faz. Nem por isto Potter deixa de tocar num tema central para os ingleses: seu sistema de saúde estatal que atente tanto às camadas despossuídas quanto a própria burguesia. Mas logo se vê que não é bem assim. O sistema de saúde privado já começa a se impor.

Esta é sem dúvida a parte central deste “A Festa”. Potter não quer apenas fazer rir, montar um drama vazio, questionar por questionar, busca tocar numa conquista dos proletários ingleses que nem Margaret Tatcher (1925/2013), em seu governo (1979/1990), conseguiu desmontar. E Janet lhe pergunta se Bill foi ao médico e ele nada lhe diz. Ela insiste, ele revela que buscou outra alternativa longe da tradicional. Então ela se investe contra ele, por ter infringido um dos pilares de sua carreira política: a defesa do sistema de saúde estatal. O filme então ganha outros contornos.

A Janet, prestes a se tornar ministra da Saúde, sente seu calcanhar de Aquiles ser arranhado. A atitude de Bill põe em risco sua carreira política, construída a favor dos trabalhadores. A questão afronta seus compromissos, e ela se vê ameaçada em suas pretensões. Um bom impasse a servir de lição aos políticos e candidatos direitistas nativos cuja ética é medida pelo montante de propina que lhes é proposto. É uma questão crucial para ela, os amigos presentes à sua casa, também se vêm atingidos. Todos se põem a buscar uma solução, sua posse está prestes a acontecer.

“Revelação ameaça carreira de Janet”

O importante nesta sucessão de sequências bem estruturadas por Potter, não é a imagem de Janet, mas o compromisso e a confiança estabelecidos com os trabalhadores ao longo de sua militância. Decorre de sua honestidade e apego à causa. A forma como ela e seus amigos enfrentam a impositiva ameaça os mantém, contudo, em alto grau de equilíbrio e solidariedade para com ela e, por extensão, com eles mesmos. É a afirmação da luta, de manter o conquistado não para si e seu grupo, mas para preservar o que os trabalhadores ingleses conquistaram.

Através deste dilema, o espectador percebe o quanto Janet e Bill preservam o equilíbrio, nem trocam acusações entre si. Ela não faz dele um traidor, nem o acusa de ameaçar sua vitoriosa carreira. Fica tudo em alto nível, considerando-se até que ela preferisse deixar o assunto para ser tratado partidariamente. É tudo muito controlado, um caso de interesse coletivo a ser resolvido mais pelas vias políticas do que familiarmente.

Se no caso do deslize de Bill, ela se comporta como defensora do sistema de saúde estatal, o que virá em seguida, numa sucessão de desajustes, fará o espectador perceber o quanto mais há em jogo entre os dois. A súbita informação sobre a doença dele irá desencadear a revelação que poderá levar a todos, sem exceção, à beira do confronto. E, além disso, os divide em dois núcleos:
I – o de Bill e Martha; II – o de Bill e convidada que se tornou um enigma. E, além disso, os ânimos estão exacerbados.

“Reação de Janet é extrema”

A partir daí, Potter transforma a ansiada festa na defesa que Janet faz de sua relação amorosa com Bill. Não só dela, mas também de Jinny. É contraditório que Potter enverede para esta elaboração dramática, depois de construir a imagem dos convidados e do casal Janet/Bill como seres racionais, capazes de grande sacrifício. E, deste modo, defendem os interesses dos trabalhadores. O ponto de desequilíbrio aqui não é, contudo, Janet, mas Bill. Ele recaiu em conquistas amorosas, difíceis de serem aceitas por ela e Jinny. E é mostrada como capaz de extrema violência.

O positivo neste “A Festa” se resume a seu tema central: o do compromisso de Janet com sua causa, embora Potter não a tenha explicitado a contento. O mais importante não é a imagem, sim o objetivo a ser alcançado em benefício dos marginalizados. O que mais atormenta Janet são os desvios burgueses de Bill. Eles, sim, poderão causar danos de difícil reparação. Ainda mais estando seu partido em destaque. São percepções que o intrigante desfecho construído por Potter irá contrariar. De forma radical, pois a transforma numa vingativa mulher ferida em sua paixão por Bill. E assim põe abaixo a racionalidade antes construída.

Ao preferir filmá-lo em preto e branco, ao invés de a cores, Potter permitiu a seu diretor de fotografia Alexey Rodionov criar o denso clima a demarcar toda narrativa. Num filme centrado nas ações dos atores, com narrativa linear a delimitar espaços, eles conduzem a história onde vícios, fraquezas e emoções ficam à mostra. E, assim, interagem com o espectador, fazendo-o pender para um ou outro personagem, entendendo seus dilemas. O conjunto de intérpretes contribui de forma eficaz para isto ser ressaltado. Isto é crucial num moderno drama político.

“A Festa” (The Party) Drama-político. Inglaterra/Irlanda do Norte. 71 minutos. Edição: Anders Refn/Emile Orsini. Fotografia: Alexey Rodionouv. Roteiro/ Sally Potter/Walter Donohue. Direção: Sally Potter. Elenco: Kristin Scott Thomaz, Patrícia Clarkson, Bruno Ganz, Cherry Jones, Emily Mortimer, Cillian Murphy, Timothy Spall.

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