O jogo de Lula

Sim, jogo será bruto. E quem disse que não seria? Prenderam o cara e queriam o quê em troca?

Lula armou uma seleção com reais chances de enfrentar dois grandes desafios, que se entrelaçam: o Golpe e as Eleições. O genial foi criar uma chapa tríplice, um triplex, entre Lula, Haddad e Manuela. Me perdoem os puristas, mas somente quem realmente sofreu um golpe judicial pode usar a marca do suplício (a anti-prova do triplex) a seu favor.

Simbolicamente, o recado vai no centro da alma brasileira: representatividade regional, oposição ao governo impopular de Temer, apoio ao voto feminino e mudança de gerações. A chance de ter duas composições de chapa em uma (Lula e Manuela ou Haddad e Manuela) permite ao presidente uma margem de manobra crucial nesses próximos 30 dias que ocorrerão entre o registro da sua candidatura e a batalha judicial para cassar seus direitos. Se conseguir furar o bloqueio judicial, Lula vence em primeiro turno e terá uma vice de primeira linha, uma aliada política com grande capacidade de traduzir o processo político geracional que exige uma transição desde junho de 2013. Se for impedido pelo Golpe, entra em campo o melhor quadro disponível do PT, mesmo com todas as críticas que se possa fazer a ele (e eu tenho inúmeras).

Haddad tem problemas em reconhecer o real significado do furacão que varreu do mapa uma das melhores e mais avançadas experiências de administração municipal do mundo, levando-o a uma derrota inglória em primeiro turno contra um projeto de Berlusconi tupiniquim. Fez uma avaliação preconceituosa dos movimentos da juventude de 2013, ainda que esteja correto sobre a parte deste movimento que, posteriormente, sustentou o golpe e a ascensão do fascismo do século XXI. Haddad também possui a genética paulista, um olhar liberal sobre os problemas brasileiros e aquele sotaque que lhe pode fechar portas diante do povo. Mas ainda é o melhor quadro político do PT e tem capacidade e criatividade para propor saídas práticas para a crise que está corroendo as bases nacionais e o sentimento de pertencimento do brasileiro a qualquer projeto minimamente civilizatório. E é dono de uma oratória invejável nos debates públicos, arma fundamental para sobreviver a uma eleição polarizada.

Na jogada de Lula, a construção do plano de governo foi um grande acerto. Diferentemente dos anteriores, foi construído como um partido de massas, com a liderança intelectual de Marcio Pochmann, a articulação social de Renato Simões e coordenado pelo próprio Haddad. O programa partiu de uma base de apoiadores do partido, não necessariamente filiados, e foi subindo na estrutura partidária até a avaliação final de Lula. Veio de baixo para cima. Nesse sentido, incorpora temas que dizem mais sobre a transição de um possível governo atual para os próximos do que temas de governabilidade imediata. O resgate emergencial da população que está sendo imolada pela crise seria um passo conjuntural e absolutamente necessário a um conjunto de reformas estruturais que não deixam dúvidas ao caráter progressista da proposta: convocação de Constituinte; revogação de atos e reformas do governo ilegítimo; reforma tributária progressiva; novo padrão tecnológico/energético; política externa soberana; reintegração regional; resgate do estado de Bem-Estar. Enfim, é um programa à frente do tempo e inclusive transcende o discurso habitual do PT.

A segunda jogada de Lula foi manter a sua capacidade de pautar o ritmo das eleições mesmo com o endurecimento do Golpe ao seu redor. Lula teve seu corpo retirado da cena pública, mas isso acabou gerando um efeito inesperado por seus algozes. Intensificou seu poder político, e esta força vai-se aumentando ao limite da negativa concreta da participação de Lula no pleito. Quanto mais próximo do veto, maior é a intenção de voto em Lula e maior será o poder de transferência dos votos de Lula, o que contradiz com o objetivo maior do bloqueio judicial, o enfraquecendo. A superação dessa contradição será como explodir uma barragem cheia até o talo…a avalanche que se formará deste episódio é tão imprevisível e comparável ao da morte de Eduardo Campos durante as eleições de 2014, cuja comoção do povo levou a um pico de transferência de voto em Marina Silva e teria sepultado a reeleição de Dilma, tivesse o evento trágico acontecido um pouco mais próximo do primeiro turno. O poder de transferência de Lula é a grande arma de dissuasão do Estado Policial, um custo cada vez maior à medida em que o sequestro de Lula se prolonga.

Lula joga com essa contradição a seu favor. Seu adversário real, a direita, não conseguiu estabelecer a unidade sonhada do Golpe, e pior, está presa ao que nomeio por “paradoxo do Chuchu”: precisam ganhar votos em cima de Bolsonaro, mas só conseguem ganhar a eleição contra o mesmo ex-militar. Esse cenário visa a repetir a experiência das eleições francesas, onde o fascismo chegou ao segundo turno e a força oponente levou por, simplesmente, representar o não-fascismo. No entanto, este é o cenário mais provável para o PT enfrentar o segundo turno, não para Alckmin, pois os votos deste estão presos à armadilha criada pelo eleitorado cativo do tucanato, que mudou para Bolsonaro e não tem interesse em deixá-lo tão cedo. O PSDB foi o grande artífice do crescimento do fascismo na sociedade brasileira, ao não reconhecer o resultado das últimas eleições de 2014. Ele que embale o filho do capeta que pariu.

Aqui está a grande sacada de Lula. Sabendo que poderia ganhar no primeiro turno e que, se impedido, possui um ticket para o candidato que escolher para o segundo, o nome de Haddad é o melhor possível na esquerda para desmontar a eventual aliança do fascismo com o capital que viria do esfacelamento da candidatura de Alckmin e da sobrevivência de Bolsonaro. Lula está antecipando este movimento e escolheu seu mímesis mais capaz de derrotar o fascismo no caso de polarização extrema, atraindo frações dos donos do dinheiro e impedindo um bloco único dos 1% contra os 99%. A fraqueza dessa decisão é se Alckmin superar as barreiras estruturais dadas pelo Golpe à própria candidatura e chegar em uma disputa de segundo turno contra Haddad. Nesse cenário, o contraste entre os candidatos não seria tão grande, e a disputa será mais acirrada, ainda que acredite ser possível uma vitória petista também neste caso, desde que o PT consiga, mais uma vez, recriar a clivagem Liberalismo-Desenvolvimentismo que conseguiu vencer as eleições nacionais desde 2002. Aqui, o programa de governo coordenado por Haddad servirá de guia de navegação para este não se confundir em demasia com Alckmin.

Mas tudo isso é o pré-jogo de Lula. Quarta-feira dia 15 dá-se início ao processo de cassação ilegítima de sua candidatura pelo TSE. O clima vai ficar cada vez mais insuportável, pois há o risco iminente de o tribunal eleitoral, o guardião do poder do voto, invalidar entre 40% ou mais dos votos da população em uma canetada. O significado disso para a legitimidade do poder é radical, tão agudo que pode levar as instituições a uma solução contrária, pois não é do interesse delas destruir o Estado em suas atribuições mais elementares. Evidente que este é o cenário menos provável de Lula: sair-se livre para buscar o julgamento popular por seus atos, ainda que este seja o seu mais legítimo direito. A dobra do tempo-espaço necessária para esta ruptura seria possível se as mobilizações populares tomassem corpo pari passu ao julgamento no TSE, o que infelizmente não está no horizonte concreto da sociedade brasileira hoje. Porém, quem é que sabe o futuro que já começou?

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