O erro de sintaxe política de Sérgio Moro

Sérgio Moro disse, em evento organizado pelo jornal O Estado de São Paulo, que o resultado das eleições de outubro traz riscos de retrocesso para a Operação Lava Jato. Em outras palavras, as eleições são um problema, segundo Moro.

Ilustração: Tainan Rocha
E se o voto em eleições regulares, forma de exercício do poder pelo povo, pode trazer riscos, é a própria essência da democracia que anda incomodando o juiz de Curitiba. Parafraseando um jurista do passado, há nas palavras de Moro um grave erro de sintaxe política.

A expressão é de José Bonifácio, o Moço, sobrinho-neto do patriarca da independência, e foi dita como crítica à lei eleitoral aprovada pela Câmara em 1881, com voto facultativo, censitário e proibido aos analfabetos. A “soberania dos letrados” seria um “erro de sintaxe política” porque criava uma oração sem sujeito, uma representação popular sem um povo que a elegesse. As limitações da lei tornavam ínfima, inexpressiva, a quantidade de eleitores possíveis.

Por aquela lógica, o sistema político deveria pertencer a uma minoria de “iluminados”. Bonifácio, abolicionista e também um precursor da defesa da extensão do direito de voto aos analfabetos (que só viria com a Constituição de 1988), atacou a inconsistência de um regime político que suprime a manifestação da vontade popular. Hoje, é preciso atenção para os que prefeririam a morte da política.

Em regra, o direito de votar foi uma exceção (e não só na história brasileira). Para citar um exemplo, as nossas eleições presidenciais com maior participação da história antes de 1988 foram as de 1945, com pouco mais de 13% de votantes, em relação à população total. O sufrágio universal – com restrição apenas aos menores de 16 anos – foi uma construção das lutas sociais no curso do século XX. Uma conquista das organizações populares e das demandas de uma sociedade cada vez mais urbana e capaz de pressionar um Estado que tem, de nascença, o pecado de ser construído a partir da manutenção de um fosso entre si e a maioria do povo.

A Constituição de 1988 foi um marco nesse sentido, ao garantir o mais amplo direito de voto da história do país. Hoje, 30 depois, dentre as muitas violações às garantias que ela estabeleceu, também se fala mais abertamente sobre o incômodo que causa a alguns o direito de votar e ser votado.

Muito se fala do risco que uma candidatura como a de Jair Bolsonaro representa para a democracia, o que é evidente, mas ainda apenas uma possibilidade. É preciso falar mais sobre o risco concreto e cotidiano que a atuação de magistrados, extrapolando os limites constitucionais e legais de seus poderes, também traz para a democracia. Em regra, os juízes se expressam em melhor português e com voz mais branda que os “bolsonaros”, mas a conclusão que subjaz a declarações como a de Sérgio Moro é tão ameaçadora quanto. Lembrando mais um jurista antigo: pessoas sãs também atentam contra as republicas.

O ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, em vocabulário acadêmico, também expressou sua crença naquilo que Bonifácio ironizava como a “soberania dos letrados”.

Ele tem defendido, em mais de uma ocasião (com a oposição de muitos juristas, é preciso dizer) que o STF teria prerrogativas para exercer um papel “iluminista”. Em suas palavras, o tribunal poderia empurrar a história em nome de valores racionais. Esse poder seria possível, conforme Barroso, devido justamente ao fato de o Judiciário não ser eleito e, portanto, não ter de prestar contas ao julgamento político de eleitores quando adota uma posição contramajoritária.
Sem deixar de lembrar que as conquistas populares vêm do chão das lutas sociais e nunca outorgadas por um poder superior e iluminado, é evidente que o Judiciário é fundamental para a garantia dos direitos (inclusive os políticos). Mas sua atuação deve ser sempre adstrita às normas vigentes, vinculada a elas.
O espaço da liberdade criadora é a política e, entre nós, são as eleições e não os as decisões judiciais, o meio de debate e expressão dessa liberdade. Barroso falou da ação do STF em nome de valores racionais. Que conceito é mais abertamente político que esse de “valores”? Quem escolheu dar a ministros do STF a missão de “empurrar a história”? E quem decide qual é a direção desse empurrão? Qualquer resposta diferente de “o voto” é ameaçadora para a soberania popular.

A desconfiança de Barroso quanto ao direito de votar é explicita no texto “A Razão sem Voto: o STF e o Governo da Maioria”, no qual ele lembra que os nazistas se consolidaram graças a uma base eleitoral. Esquece de dizer que o horror do nazismo foi referendado por seus magistrados. É longeva, entre nós, a tradição política do despotismo esclarecido, que exclui o povo e garante que as transformações virão desde uma cúpula de iluminados. Porém, o que se esconde nesse pretenso esclarecimento é sempre o despotismo.

Por detrás do raciocínio de Moro, Barroso e outros tantos está a antiga concepção aristocrática, elitista, segundo a qual o exercício do poder deve ser restrito a poucos. Essa é a história do Brasil, na qual o período aberto com a Constituição de 1988 e encerrado com o golpe de 2016 foi uma exceção. A realização de eleições livres com plenitude de direitos políticos para todos será condição fundamental para os anos que virão. Nesse ambiente conturbado no qual magistrados abusam de seu poder e agem como gendarmes dos interesses de classe de uma elite sedenta por ir à forra contra as conquistas populares e nacionais, a defesa da democracia voltou ao centro da disputa.

Em “Os Bruzundangas”, Lima Barreto satirizou o Brasil do início do século passado por meio do olhar de um viajante estrangeiro que percorria um país muito parecido com o nosso: a “República dos Bruzundangas”. Esse viajante notou que lá “os políticos tinham conseguido quase totalmente eliminar do aparelho eleitoral este elemento perturbador: o voto”.

Sérgio Moro estava preocupado com o resultado das eleições…Ironicamente, na atual Terra da Bruzundanga quem tem se perturbado com a manifestação da vontade popular são magistrados que deveriam garanti-la.

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