Muito sentimento no truste do cimento (mecenato e grande capital)

Dentre as múltiplas manifestações de veneração suscitadas pela visita de Sua Santidade o papa Bento 16 ao Brasil, uma das mais emocionadas foi a do proprietário do truste Votorantim. Exibindo não só lingotes, mas também um coração de ouro, além de ente

A emoção respinga já na primeira frase: “Apesar de ter chegado aos 79 anos, nunca havia sequer chegado perto de um papa, embora, durante toda minha vida, nutri (sic) uma enorme veneração por papas que atingiram com profundidade os recantos da minha alma, como foram os casos de João 23 e, especialmente, de João Paulo 2º”.


 


A segunda frase apresenta a peculiaridade teológica de sugerir que, ao contrário do que até hoje sustenta a doutrina católica, a opção preferencial de Deus seria pelos ricos: “Deus me reservou o privilégio de, junto com minha esposa, Maria Regina, desfrutar do aconchego, do carinho, da simplicidade e da humildade de Bento 16”.  Teria Deus, julgando não bastarem ao magnata e a dona Maria Regina os privilégios de que já desfrutam, concedido-lhes o especial aconchego e carinho do papa da Opus Dei e da Inquisição?


 


 


Enfim, não querendo estender-se em demasia nessa hermenêutica de insignificâncias intelectuais, é patético, na terceira frase, o contraste entre o alegado sentimento místico (“o momento mais emocionante da minha vida: tocar nas mãos do santo padre”) e a eloqüência de letra de bolero (“sentir o calor do seu afeto”). Quem sabe o grande capitão do grupo Votorantim ainda chega à Academia Brasileira de Letras! A favor dessa pretensão, pode-se ponderar que há por lá escritores talvez ainda piores do que ele e que, dentre os que escrevem tão mal quanto ele, nenhum dispõe de tantos recursos para promover a própria obra, a qual não se limita a sua copiosa produção folhográfica, mas compreende três peças de teatro,  inspiradas nos mais edificantes propósitos.


 



A última delas, “Acorda Brasil”, que estreou em maio de ano passado, mobilizou noventa participantes, entre eles os 65 músicos da Orquestra Sinfônica de Heliópolis (que recebe apoio financeiro do autor da peça), sob a direção do maestro Silvio Baccarelli. É muito boa a idéia de manter uma orquestra sinfônica na maior favela de São Paulo (segunda da América Latina), onde vivem em duras circunstâncias (cerca 40% das casas não têm saneamento e 60% das ruas carecem de asfalto) aproximadamente 55.000 crianças com idades de 7 a 14 anos. É compreensível que Baccarelli e sua orquestra retribuam o mecenas, trabalhando em sua peça. Diferentemente, porém, do Mecenas original, que há dois mil anos atrás ajudou generosamente os poetas Virgílio e Horácio a enfrentar as agruras materiais da existência e a conquistar um reconhecimento amplamente confirmado pela posteridade, o mecenato do magnata do cimento financia também a própria obra.


 



A jornalista incumbida de apresentar a última dessas peças no Caderno 2 do Estado de São Paulo (de 5 de maio de 2006, quando ocorreu a estréia da peça), diferentemente da maioria dos mediáticos do capital, parece não ser bajuladora dos “ricos e famosos”. Com alguma ironia e sutileza, ela encontrou maneira de sugerir discretamente ao leitor atento, por trás do elogio protocolar, que a qualidade da obra do muito a desejar. Assinala, entretanto, uma “evolução no texto do empresário. Desta vez há personagens e tipos bem definidos e trama bem urdida […]”. Maneira gentil de dizer que nas duas outras peças os personagens eram amorfos e a trama descartável.


 



É verdade que o próprio Antônio Ermírio diz “não se considerar um dramaturgo”. Não há como discordar. Mas se ele fosse mesmo modesto, não se prevaleceria da condição de milionário para promover sua obra literária. Dir-se-á que é preferível gastar riqueza monetária para mecenato em causa própria do que torrar fortunas em exibicionismo vulgar, como fazem tantos cretinos endinheirados. Sim. Talvez por isso ele não seja considerado mero ricaço entre outros, mas “o mais importante empresário do país”, como afirma na capa Isto É Dinheiro (nº 480, 29/nov/06). A reportagem-entrevista, previsivelmente encomiástica, que esse magazine consagrou ao magnata (“O resistente Ermírio”), começa desfazendo rumores que “tomaram conta dos meios empresarial e cultural após o dono da Votorantim ter passado mal no teatro do shopping frei Caneca no dia da estréia de sua peça Acorda Brasil”. Nada disso, respondeu o interessado: “não me senti bem no teatro por conta da emoção da estréia”. Admirável sensibilidade!


 



As pequenas fraquezas do eminente industrial, mencionadas na entrevista, parecem insignificantes diante de sua magnanimidade. Ele gosta de carrões (Mercedes, BMW etc.), do terraço Daslu, mas prefere, diz o entrevistador, “aplicar o dinheiro em algo mais nobre. Financiando peças de teatro, por exemplo. De preferência, aquelas cujo roteiro foi feito por ele”. Não sei se o jornalista quis ser irônico nesta última frase, mas o fato é que o Ego do magnata tem a magnitude de sua fortuna. Não lhe basta fazer o bem ostensivamente. Ele quer controlar aquilo em que investe e não só nos palcos. Não se contenta em ajudar financeiramente a Beneficiência Portuguesa. Consagra-lhe, “feliz da vida”, uma hora e meia por dia.


 



Evidentemente, benefícios e outras benemerências custam dinheiro. Não lhe é possível descuidar da base econômica de seu prestígio, nem menos ainda, da reprodução ampliada de seu capital. Com essa elevada preocupação, o grupo Votorantim expandiu-se muito além do cimento. A principal ocupação de Antônio Ermírio atualmente é a Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), cuja produção em 2007 deverá atingir, conforme ele anunciou, 475.000 toneladas, mais do que a da Albrás, da Vale do Rio Doce. Por isso ao jornalista que obsequiosamente lhe perguntou, “O Brasil precisa acordar, Dr. Antônio?”, o autor de Acorda Brasil respondeu que sim, mas está “ainda um tanto sonolento.[…] Está com uma certa preguiça”. Espreguiçar rápido, tal é o importante conselho que o eminente industrial oferece ao público leitor. Considerando que a Igreja Católica inclui a preguiça entre os sete pecados capitais, esse diagnóstico é coerente com sua visão radicalmente moral dos problemas sociais, fortemente enfatizada nas linhas que dedicou à “comovente visita” do papa integrista ao Brasil:


 



“Joseph Ratzinger impressionou-me pela sua indiscutível bondade. É um homem modesto, afável, amoroso, culto e inteiramente dedicado à propagação dos valores morais, que, aliás, fazem tanta falta no mundo de hoje. Nestes tempos tão difíceis, Deus soube escolher bem -e nem poderia ser diferente- um seguidor de Pedro, que é plasmado para ajudar um rebanho conturbado e que precisa encontrar a luz nos caminhos da ética. A firmeza com que o papa Bento 16 trata a questão dos valores chega a chocar o mundo. Mas a sinceridade com que prega os ensinamentos de Deus o distingue como um pastor que sabe diferenciar muito bem o que alimenta e o que envenena a alma humana. Ele tem a firmeza da qual a juventude se ressente (sic). Bento 16 veio para transmitir lições que foram abandonadas pelas famílias que se desorganizaram; pelas escolas que se desorientaram; pelas instituições que se desmoralizaram”.


 



 


Seria de esperar que esse elevado rigor ético, que nada fica a dever ao pensamento da TFP ou da Opus Dei, inspirasse também o grande moralista no plano dos princípios políticos. Não foi, porém, o que ocorreu num momento decisivo da luta pelo Estado de Direito. Os fatos: em março/abril de 1988, os cripto-fascistas do Exército, empenhados em garantir um ano a mais de mandato para J.Sarney (presidente biônico de uma república ainda fortemente tutelada pela cúpula militar), ameaçaram fechar o Congresso se este os contrariasse. Um dado, entre muitos outros: em nota editorial, O Estado de São Paulo de 24-3-1988 refere-se à “declaração preocupante do general Carlos Olavo Guimarães, chefe do Centro de Comunicação Social do Exército, sobre a certeza de uma intervenção militar na hipótese de se votar os quatro anos”. Embora diagnosticando, naquela ocasião como hoje, a “natureza moral” da crise brasileira, o magnata do cimento e do alumínio, em vez de preconizar respeito ao Congresso (mormente ao de então, investido de poderes constituintes), reiterou em sucessivas declarações à imprensa e num discurso na Associação Comercial do Rio de Janeiro (em 4 de abril de 1988) que “se a Constituinte votasse os quatro anos, haveria intervenção militar” e que a alternativa “era cinco anos ou golpe”.


 



 


Na mesma ocasião, instado pelos bajuladores de plantão a confirmar sua candidatura nas eleições presidenciais de 1989, em arroubo cívico, ele admitiu indiretamente a hipótese: “Qual é o brasileiro que, amanhã, não estaria disposto a fazer um sacrifício pela sua terra?”. Já tinha feito “sacrifício” semelhante ao disputar o governo do Estado de São Paulo em 1986. Lançado oficialmente pelo PTB (um partido “trabalhista” a serviço do capital, como se sabe), com o apoio dos ''cardosistas” (que embora ainda dentro do PMDB,  sabotaram discretamente a candidatura Quércia) e apostando na imagem de milionário suprapartidário, Antonio Ermírio foi derrotado, mas chegou em segundo lugar, à frente de um colega da grande indústria, P. Salim Maluf. Não disputou a presidência em 1989: havia gente demais querendo “sacrificar-se”.


 



Se, no passado, a atitude do plutocrata moralista perante a chantagem militar sobre o Congresso deixou muito a desejar quanto ao rigor ético, chama-nos a atenção agora ua notícia divulgada pela agência Brasil da Radiobrás (9 de Março de 2007). A Secretaria de Direito Econômico (SDE), do Ministério da Justiça abriu processo contra oito indústrias de cimento acusadas de formação de cartel: Votorantim, Camargo Corrêa, Holcim, Lafarge do Brasil, Cimpor, Cimento Nassau, Soeicom e Itambé. Também participaram das “negociações para formação de cartel a Associação Brasileira das Empresas de Serviços de Concretagem (Aberc) e a Associação Brasileira de Cimento Portland (ABCP)”. Sempre “boazinha”, a empresa de Antônio Ermírio explicou que “o mercado brasileiro de cimento é pulverizado”, não havendo, pois formação de cartel. É mais fácil acreditar em milagre: ainda que houvesse milhares de pequenas empresas no ramo, as oito parceiras controlam 90% do mercado de cimento no Brasil. Será que o truste do patrão “muito ético” quer mesmo nos tratar como tolos?

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor