Lembranças de Woodstock

O mais importante festival internacional de artes populares do século XX foi, sem dúvidas, o de Woodstock. Em agosto, comemora-se o seu 49º aniversário, mas parece que foi ontem, tal o realismo e a atualidade dos temas que afloraram naquele psicodélico evento, que ficou na memória como um grande encontro musical.

Foi um momento único, de origem despretensiosa, que nasceu da iniciativa de dois jovens que não sabiam o que fazer com o dinheiro que tinham, no país mais rico do mundo. E inigualável, pois foram em vão as inúmeras tentativas de reeditá-lo depois, lá mesmo, nos Estados Unidos, e em outras partes do planeta, inclusive no Brasil.

Era pra ter sido um evento bem organizado, em uma área cercada no interior de uma fazenda de Bethel, uma pequena localidade distante 160 quilômetros de Nova Iorque. Em verdade, era pra ter sido realizado na cidade de Woodstock, mas a comunidade local, temerosa de uma possível perda de seus valores morais e de danos ao seu patrimônio, entrou na justiça e impediu a festa. Isso, às vésperas do evento.

Os organizadores argumentaram em contrário, mas o esforço não foi considerado. Tiveram a sorte de um fazendeiro da minúscula Bethel, vizinha de Woodstock, oferecer sua propriedade. Afinal, as inscrições de participantes e a venda de ingressos antecipadas, em números limitados, garantiriam ordem e rentabilidade, como queriam os organizadores. E o espaço foi preparado como estava nos planos.

Logo no primeiro dia, contudo, a cerca foi ignorada e derrubada pelo público em número dez vezes superior ao previsto e muita chuva enlameou o terreno com barracas improvisadas ou gente espalhada ao relento. Banheiros públicos e lanchonetes não deram nem pro começo e o policiamento sumiu na multidão. Enfim, foi uma grande bagunça que deu certo – e marcou história.

No evento em si, os organizadores tiveram um baita prejuízo, pois deixaram de cobrar ingressos da grande multidão e gastaram dinheiro extra com reforço do palco e passarelas. Mas recuperaram quase tudo com o filme e os discos gravados durante o festival e vendidos depois.

A grande diferença com os dias atuais estava no público que foi ao local do evento ou que o acompanhou à distância, mundo afora. Em 1969 havia no mundo ocidental enorme movimento de insatisfação com a sociedade capitalista, cujas faces mais visíveis eram o consumismo e o imperialismo.

O que era marcante na maior parte daquele público que foi a Woodstock, de mais de meio milhão de pessoas, era o comportamento “hippie”, do desapego aos valores dominantes no mundo capitalista da época. 

Cabelos longos e desalinhados, trajes exóticos – o sári indiano, por exemplo –, com muitos colares e outros adereços (ou a simples nudez), a vida em comunidades, a produção de artesanatos e a pregação da liberação do uso de drogas eram as suas marcas mais visíveis.

O fato, contudo, é que os chamados hippies eram apenas uma parte da Contracultura, um movimento que influenciou fortemente a juventude dos anos 1960, mas envolveu, de igual modo, adultos e idosos. Tampouco o uso de drogas era tão generalizado quanto parecia.

Era principalmente um ideário de contestação à sociedade reinante, que se manifestava no comportamento e vestimentas, mas também na literatura, na música, nas artes plásticas, no cinema, no teatro, na arquitetura, na educação, na filosofia, em muitos aspectos da vida, enfim.

Entre tantas manifestações da Contracultura, vale lembrar uma da música, no Brasil. Foi a Tropicália, surgida em 1967, que não era um gênero rítmico e melódico, pois misturava tudo, a começar por samba, rock e baião, mas sacudiu o cenário cultural brasileiro da época.

Os cantores-compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, José Carlos Capinan, Torquato Neto, o maestro Rogério Duprat, o artista gráfico Rogério Duarte, os grupos Mutantes e, depois, Novos Baianos foram seus principais integrantes.

Entretanto, na literatura muitos autores são anteriores ao movimento massificado e são considerados inspiradores dessa doutrina libertária. Hermann Hesse, escritor e artista plástico alemão, por exemplo, morreu já idoso, sete anos antes de Woodstock, mas seus livros, como “Lobo da Estepe”, “Sidarta” e “Knulp”, eram presença nas bolsas e mochilas dos andarilhos, com personagens marcantes desse jeito novo de encarar a existência humana, antiopressivo.

O também alemão Herbert Marcuse, naturalizado nos EUA, filósofo seguidor da doutrina clássica marxista, proclamava o fim da classe operária com a automação excessiva da sociedade industrial. E arrebatava simpatias pelo seu combate à tecnologia como instrumento de maior exploração por parte da classe dominante, a burguesia.

Ou seja, o desapego aos bens materiais supérfluos, desnecessários e fatores de dominação, era uma característica desse movimento, apesar da massiva pregação em contrário dos grandes meios de comunicação. Um sentimento que ainda persiste entre a juventude nos países centrais do capitalismo.

É impressionante, no entanto, como grande parte da juventude brasileira de hoje se apega aos verbos “ter” e “possuir”, desdenhando os substantivos “solidariedade” e “humildade”. São valores trocados, que nos trazem saudades de Woodstock.

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