“Dedo na ferida”

Catástrofe à vista

Documentário do cineasta carioca Silvio Tendler discute a ameaça que o sistema financeiro representa para a população e os estados nacionais.

Não sem razão, o espectador ao sair do cinema, após assistir a este “Dedo na Ferida”, tem a sensação de que uma crise político-financeira de grandes proporções está prestes a explodir. Ao longo de 91 minutos, o roteirista e diretor, o cineasta carioca Silvio Tendler (1950), confirma esta possibilidade através das análises de economistas, sociólogos, cientistas políticos e, inclusive, um diretor de cinema e geografo. Na visão deles, as multinacionais e o sistema financeiro impõem aos governos nacionais as políticas financeiras a serem executadas em prejuízo dos trabalhadores.

Esta imposição inclui privatizar as estatais, deixando-as sob o controle deles, fazer reformas trabalhistas e previdenciárias que retirem direitos dos trabalhadores, cancelar programas sociais de assistência e inclusão dos mais pobres e, sobretudo, se endividarem para pagar as enormes dívidas externas, em si impagáveis, dado aos juros sobre juros. Desta forma se tornaram uma espécie de governo mundial não eleito democraticamente, apenas por controlarem as economias desses países.

O ex-ministro das Finanças da Grécia (27/01 a 06/07/2015), à época da crise, Yanis Varoufákis (1961), afirma que durante a negociação da dívida externa grega com o então ministro das Finanças da Alemanha, Wolfgang Schäuble, todas as suas propostas foram vetadas. Schäuble não admitiu o plebiscito para consultar os gregos sob o acordo que lhes impunha elevados juros. Seria uma iniciativa democrática, que o alemão não admitia. Não à toa inúmeros países perderam o controle de suas finanças, inclusive o Brasil pós golpe de 2016. Eis a face do capitalismo neoliberal: monopolista, excludente e gerador de sucessivas crises.

Bancos induziram crise e depois lucraram

Elas num entanto não surgem do nada. Como diz um dos entrevistados por Tendler, elas são provocadas pelos altos juros cobrados pelo sistema financeiro, como visto em 2008 durante a crise das hipotecas nos Estados Unidos. Mas, depois, os mesmos bancos que induziram as famílias comprarem casas e apartamentos a altos juros, ao verem os calotes se multiplicarem foram socorridos pelo Governo Obama (2009/2017). Então, com exceção do banco Lehman Brothers, que foi a merecida falência em 15/08/2008, os demais continuaram no lucro. O próprio Barak Obama (04/08/1961) justificou seu ato, dizendo que fez o necessário e riu.

O geografo e professor inglês David Harvey (1935), marxista, autor de “Os Limites do Capital”, diz que os bancos são os que mais lucram com estas manobras bem armadas. Mas também seus acionistas e os especuladores que compram as ações dos bancos e os títulos (papéis com garantia de pagamento certo) das dívidas dos países endividados. O cineasta grego, Costas-Gravas (1933), diretor de “Desaparecido – Um Grande Segredo (1982)”, enfatiza que “a religião deles é o dinheiro. Se não resistirmos vamos acabar sendo seus escravos”. É o que está a caminho!

A outra face dessa usurpação do poder do Estado democrático é a capacidade das multinacionais e do sistema financeiro retirar dos governos democraticamente eleitos suas atribuições. E submetê-los à concentração financeira privada, levando-os a privatizar os bancos públicos, cujas políticas incluem financiar programas sociais, educação, saúde, moradia e incentivar os setores produtivos. E não como se vê no Brasil através dos ataques às estatais Petrobrás e Eletrobrás, com apoio da mídia burguesa. O entreguismo, desta forma, fica escancarado. A população pobre e desassistida termina pagando preços extorsivos pelos combustíveis e a energia.

Como se vê, Tendler (Jango, 1984) e seus entrevistados levam o espectador à reflexão sobre o extremo poder do sistema financeiro e das transnacionais. Pesquisa feita por este colunista após a sessão mostra que ele se concentra em três bancos dos EUA: Wells Fargo, Bank of America e Citigroup; um da Inglaterra: HSBC e um da França: BNParibas. E entre as multinacionais estão Toyota (Japão), Volkswagen (Alemanha), Berkshire Hathaway (Anglo-holandesa), Aple, Exxon Mobil e Walmart (EUA). São elas que detêm o poder global e exercem desmedida influência.

Neoliberais tiraram os direitos dos trabalhadores

Esta extrema concentração implantada durante os governos neoliberais de Ronald Reagan (1981/1989) nos EUA e Margareth Tatcher (1979/1990) na Inglaterra levou à desmontagem das políticas públicas executadas pelos governos sociais-democratas não só na Europa. Já Harvey atribui a derrocada da socialdemocracia ao fim dos embates políticos-ideológicos entre comunistas e capitalistas, durante a existência da União Soviética (1917/1991). Daí os altos índices de desemprego, especialmente entre os jovens, e perdas de direitos e programas sociais.

Ao privatizar os sistemas de saúde, educação, transporte, energia, petróleo, moradia, aposentadoria e os entregar às empresas dos mais diversos ramos, o capitalismo-neoliberal deixou as classes trabalhadora e médias sujeitas às oscilações do mercado e à voracidade dos lucros constantes. Segundo João Pedro Stédile, líder do MST (Movimento dos Sem Terras), “o capitalismo não atende às necessidades dos pobres, só gera milhões de excluídos”. São os desempregados, sem-teto e esperança.

Marginalizou, além disso, a classe trabalhadora e a classe média baixa como mão-de-obra e consumidora de produtos que geram riqueza e sustentam inúmeros setores econômicos. Há muito não defende a inclusão social desses segmentos, como sustentáculo da democracia burguesa. Fala apenas em cuidar das pessoas, slogan vazio e destituído de significado político-ideológico efetivo. Dá a entender que o proletário se tornou um “ser descartável”, só para ser lembrado durante as eleições e esquecido em seguida. E diante dos direitos que lhes são negados isto fica visível.

Capitalismo não eleva o padrão de vida

Diante desta evidência, o capitalismo neoliberal vai, aos poucos, reduzindo o número dos que sustentam o próprio mercado, principal esteio de seu sistema político-econômico. Não há como propagandear seu gênero de vida, seus produtos, se não os emprega e eleva seu padrão de vida. Tendler mostra em várias sequências o caso do jovem podologo, profissional que trata das enfermidades dos pés. Ele se desloca de trem e metrô todo dia de uma cidade da Grande Rio Janeiro até o centro da Capital para trabalhar. Neste vai-e-volta consome mais de três horas e pouco vê a família. Não há tempo para lazer e se dedicar as outras atividades.

Nesta etapa do capitalismo neoliberal tudo gira em torno das multinacionais e em particular do sistema financeiro. Seu apetite voraz para obter grandes lucros e por isso, reclama Karoufakis, “não taxam os ricos e heranças. Seu objetivo é despolitizar a política”. O resultado desta tramoia, como é consenso entre os entrevistados por Tendler, é fortalecer o poder burguês sob controle dos bancos e das multinacionais. “Os países vão ter que segmentar o sistema financeiro”, sugere o economista Paulo Nogueira Batista. Dividir em várias áreas para governar é o caminho.

Para o jovem professor da Unicamp, Guilherme Melo, as soluções ainda não estão prontas. “O futuro (ainda) não está escrito. O que vai (surgir) é a disputa política. Enfim o sistema financeiro ao concentrar o poder global acabará por entrar em choque com as estruturas econômicas, o fragilizado estado burguês e os segmentos organizados da sociedade. O resultado será uma crise maior e mais perversa do que as de 1929 e 2008. O que se vê ao longo do filme é a reafirmação da análise de Karl Marx (1818/1883) de que o sistema capitalista vive em sucessivas crises.

Tendler faz espectador refletir sobre a crise

Tendler ao escolher tema tão urgente lança luz e permite ao espectador refletir sobre os impasses políticos-ideológicos atuais. As variadas avaliações de seus entrevistados, das mais diversas tendências políticas, reforçam a possibilidade de a crise em gestação ser mais devastadora do que as anteriores. Em razão de o neoliberalismo ter despolitizado a juventude, as camadas populares e a classes médias, fragilizado e se apoderado do Estado já em si burguês, gerou frustrações, desconfianças e até mesmo ódio das organizações políticas e do poder.

Tendler não avança para estas questões, mas as análises de seus entrevistados deixam em aberto a possibilidade, não de tudo impossível, de, já dizia Marx, “a revolução só é possível quando as massas já não acreditam na classe no poder”. Então a crise gerada pelo sistema financeiro e a própria burguesia poderá abrir espaço para a ascensão de uma nova classe ao poder, a do proletariado. Nada, porém, está marcado.

Interessante neste “Dedo na Ferida” é ser um documentário de reflexão sobre a realidade político-econômica internacional e do Brasil em curso. Para isso se vale apenas dos entrevistados, gráficos, ilustrações, fotos e imagens que apenas registram, não interferem. Os únicos momentos em que muda um pouco é para mostrar a longa viagem do Podologo em trens e metrô. O que exige atenção do espectador para não perder uma frase ou uma estatística e mesmo números e valores.

A realidade é crua, não mente

Dá para lembrar do documentário “Baronesa”, de Juliana Antunes, centrado nas conversas das três amigas, as cruéis consequências do que Tendler discute em “Dedo na Ferida”. Elas são vítimas das políticas neoliberais. E sendo mulheres moradoras num aglomerado se afirmam à margem do que o Estado burguês deveria lhes dar acesso. É mais um documentário sobre pessoas marginalizadas, suas ideias e sonhos. Tendler foi direto ao ponto: se não está bem é porque lhes roubaram seus direitos. É para isso que servem os documentários. A realidade é crua, não mente!

“Dedo na Ferida”. Brasil. Documentário. 2017. 91minutos. Fotografia: Lúcio Kodato, Maycon Almeida, Tão Burity. Montagem: Franciso Slade. Roteiro/direção: Silvio Tendler. Participação: Costa Gravas, David Harvey, Celso Amorim, Guilherme Melo, João Pedro Stédile, Yanis Varoufákis, Paulo Nogueira Batista, entre outros.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor