Nosso Marx, mil vezes mais uma vez!

“Falar de uma fase filosófica juvenil de Marx como algo contraposto à sua imersão mais tardia na ‘ciência’ e na economia política é uma representação grosseiramente equivocada, por trás da qual oculta-se uma singular ignorância ou distorção dos fatos mais elementares” (I. Mészáros, 1980). [1]

“Falar de uma fase filosófica juvenil de Marx como algo contraposto à sua imersão mais tardia na ‘ciência’ e na economia política é uma representação grosseiramente equivocada, por trás da qual oculta-se uma singular ignorância ou distorção dos fatos mais elementares” (I. Mészáros, 1980). [1]

O artigo*, de alcance mais teórico, reafirma a defesa do “tesouro” epistemológico de Karl Marx, contra imputações fictícias e marcantemente distorcidas do processo de elaboração de seu pensamento científico. Recorda que, desde os escritos da juventude até os da maturidade, como teórico inovador das ciências sociais, o legado das obras de Marx revela rupturas e continuidades como características centrais da tessitura do conhecimento científico universal.

Como previsto, as comemorações do bicentenário do nascimento de Karl Marx correram milhares de léguas mundo afora. Sua cidade natal, Trier (Tréveris, no Renânia-Palatinado da Alemanha) imprimiu notas de euros com sua foto, em homenagem. Emblemática esfinge!

A chamada grande imprensa global teve que “clonar” a matéria de “The Economist” rogando aos capitalistas do mundo inteiro que lessem Marx. A revista, uma campeã da dissimulação – Marx a lia regularmente e dela fazia anotações – advertira ainda aos “liberais reformadores”:

“Eles deveriam usar o 200º aniversário do nascimento de Marx para se familiarizarem com o grande homem – não apenas para entenderem as falhas sérias que ele identificou brilhantemente no sistema, mas para se lembrarem do desastre que os espera se não conseguir confrontá-lo”. [2]

Ainda antes, em abril, em discurso na “Cúpula do Crescimento”, no Foro de Políticas Públicas em Toronto (Canadá), Mark Carney, [3] presidente do Banco da Inglaterra, insinuou-se como um provocador e declarou que o marxismo poderá voltar a converter-se numa força política importante no Ocidente. E argumentou ele:

“Os lucros, desde a perspectiva de um trabalhador, a partir da primeira revolução industrial, que começou na segunda metade do século XVIII, não se sentiu plenamente na produtividade e os salários até a segunda metade do século XIX. Se se substituem fábricas têxteis por plataformas, máquinas a vapor por máquinas inteligentes, o telégrafo pelo Twitter, tem-se exatamente a mesma dinâmica que existia há 150 anos, quando Karl Marx escreveu o Manifesto Comunista”.

Criticismo pretensioso

No importante Seminário “Bicentenário Karl Marx: desvendar um mundo novo no século XXI” (19 de maio, São Paulo), organizado pela Fundação Maurício Grabois, uma boa polêmica se estabeleceu acerca das dimensões e etapas do pensamento daquele genial revolucionário alemão. E opiniões à base do criticismo.

En passant, estranha-se um repeteco troncho dessa retórica, exatamente em meio às efusivas comemorações do bicentenário de Marx, pensador sabidamente revisitado à exaustão, a partir da explosão da grande crise capitalista global de 2007-8, destacando-se notadamente as inúmeras novas traduções de O Capital, sua obra magna.

Aqui, não vou dar opinião, porquanto inspirado na formulação gnosiológica do cientista e epistemólogo francês Gaston Bachelard: “Opinião não é ciência”. Vou argumentar que são absolutamente irrelevantes as afirmações que Marx foi “utópico”, e “voluntarista” ao tratar do Socialismo; que foi também “teleológico”; que Marx teria condicionado erros graves de marxistas e revolucionários – ex ante (a partir de suposição ou prognóstico); ou ainda que a tradição iluminista o aprisionava a uma “razão libertária”. São críticas que misturam pretenciosismo e ingenuidade.

É como se Marx tivesse que ter sido “desumano, demasiado desumano”, pois omite-se o processo dialético de formação do pensamento científico – e, mais ainda, os termos teóricos do processo de desenvolvimento da teoria do conhecimento.

Em “Ensaio sobre o conhecimento aproximado”, a exemplo, Bachelard afirma que:

“O conhecimento em movimento é um modo de criação contínua; o antigo explica o novo e o assimila; e vice-versa, o novo reforça o antigo e o reorganiza. (…) Por princípio, o espírito que conhece tem de ter um passado. (…) Essa inflexão do espírito, em direção ao passado, para responder à solicitação de um real inesgotável constitui o elemento dinâmico do conhecimento”. [4]

Noutro ângulo, a decisiva problemática do relativismo, ou seja, do princípio da relatividade dos nossos conhecimentos é assim brilhantemente sintetizada por V. Lênin,

“A dialética – como Hegel explicava – contém um elemento de relativismo, de negação, de ceticismo, mas não se reduz ao relativismo. A dialética materialista de Marx e de Engels contém certamente, mas não se reduz a ele, isto é, reconhece a relatividade de todos os nossos conhecimentos, não no sentido da negação da verdade objetiva, mas no sentido da condicionalidade histórica dos limites da aproximação dos nossos conhecimentos em relação a esta verdade”. [5]

A propósito, nesse estudo Lênin insiste vigorosamente em que o enquadramento epistemológico da teoria de Marx e Engels tem como pressupostos centrais: a) a ideia de que se trata de “escolasticismo” saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva fora da prática, pois o ponto de vida da vida, da prática deve ser o ponto de vista primeiro e fundamental da teoria do conhecimento; b) que o desenvolvimento da consciência social reflete o ser social e seu desenvolvimento, “eis em que consiste a doutrina de Marx”, onde o reflexo poder ser “uma cópia aproximadamente fiel” do objeto refletido, sendo entretanto “absurdo falar aqui em identidade”. (Lénine, idem, pp. 103-4 e 107, e 245 respectivamente).

Não sem razões, Bachelard, ao tratar do que denomina “obstáculos epistemológicos”, [6] assevera que o “conhecimento do real é uma luz que sempre projeta algures umas sombras. Nunca é imediato e pleno”; onde as revelações do real são sempre recorrentes; o real nunca é “aquilo que se poderia crer”, porém sempre aquilo que se deveria ter pensado.

Ademais desviacionistas da profunda ruptura epistemológica que realizaram Marx e Engels, as anotadas afirmações criticistas, em verdade, carregam ainda o viés ideológico de um velho idealismo sob as vestes de preocupações com o cultivo do pensamento antidogmático e “renovador”. À medida em que seus subjetivismos reclamam uma ruptura de paradigmas, sem continuidades. Isto é, Marx deveria forjar a criação de uma teoria “inteiramente nova”, sem qualquer sombra de influências anteriores, portanto completa, perfeita e não infensa a defeitos, erros. Ou, como apresenta a questão, em outro estudo, Bachelard: [7]

“É um erro conferir a o conhecimento real um único sentido” (Op. cit., p. 15). Por isso, também, é que “O idealismo, por princípio, não consegue seguir e explicar o aspecto contínuo e progressivo do conhecimento científico” (Op. cit., p. 16); ademais porque nesse tipo de concepção “o conhecimento será sempre inteiro, mas fechado a qualquer acréscimo. Só se moverá diante de cataclismos” (Op. cit., idem, ibidem).

Aliás, duplamente a propósito da temática instigante das rupturas e continuidades epistemológicas, assinalemos que Henri Poincaré, humanista francês genial (1854-1912, matemático, filósofo, engenheiro, físico, astrônomo, poliglota, inventor) não escondia traços marcantes em suas concepções idealistas. [8] Pouco conhecido fora do âmbito dos especialistas, Poincaré, inobstante, indiscutivelmente “formulou igualmente uma teoria relativista da eletrodinâmica próxima em certos aspectos da relatividade restrita de Einstein”, escreveu recentemente o físico e historiador da ciência Michel Paty. [9]

Pois bem e ao que nos interessa, segundo o formidável Poincaré:

“Não devemos comparar a marcha da ciência com as transformações de uma cidade, onde os edifícios envelhecidos são impiedosamente demolidos para dar lugar às novas construções, e sim com a evolução contínua dos tipos zoológicos que se desenvolvem sem cessar e acabam por se tornar irreconhecíveis aos olhares comuns, mas onde um olho experimentado reencontra sempre os vestígios do trabalho anterior dos séculos passados. Não se deve crer, pois, que as teorias antiquadas são estéreis e vãs” (Op. cit.,1995, p. 9).

Irrelevantes e também criticistas, as aludidas opiniões desaguam – isto sim – numa tautológica visão finalística, como se Marx fosse não se distinguisse nitidamente de Kant e de sua “Crítica da razão pura” ou de seu transcendentalismo imanente. Ou como se Marx não tivesse rompido com o próprio “hegelianismo de esquerda”, já crítico de Hegel. Ou como se ele e Engels não tivessem superado os grandes pensadores do socialismo utópico (Owen, Fourier, Saint-Simon, Proudhon), num esforço de teorização prospectivamente novo e avançado para as condicionalidades do desenvolvimento da filosofia materialista e suas bases históricas reais: o incipiente processo de configuração da grande indústria capitalista, as recentes descobertas científicas etc.

Vulgata idealista: a reinvenção do utopismo [10]

A acusação de existir um Marx teoricamente portador de “utopias” não se eleva nem a uma piada de mal gosto. Exala, além, um requentado amargor, hoje visivelmente professado por correntes do pós-modernista – niilista e à última instância negacionistas do marxismo e da teoria que quer se configurar totalizante. [11] Desde logo, porque sequer se situa no significado do termo historicamente plasmado. Isto é, a incursão de Thomas More e seu celebrado estudo (“Utopia”, 1516), que se dá nos albores da modernidade; formatando-se paulatinamente o conceito a partir do impulso desenvolvido através da grande indústria.

Com efeito, os socialistas utópicos acima referidos já eram pensadores críticos fundamentados do processo de emergência da modernidade societária burguesa. Críticos e teóricos de elevada cultura. Conforme escreve Engels, em seu conhecido livro “Do socialismo utópico ao socialismo científico” (1880), Robert Owen, por exemplo, era o homem mais popular da Europa, sendo ouvido por empresários, estadistas e príncipes, evidentemente antes de expor em “público suas teorias comunistas”. Mas Owen permaneceu 30 anos trabalhando entre a classe operária, sendo que todos os movimentos sociais, todos os progressos efetivos que no interesse dos operários se verificaram em Inglaterra estão ligados ao nome dele – testemunhou literalmente o companheiro de Marx. [12]

Generalizando o papel dessa corrente, atesta Engels nessa obra fundamental:

“O modo de ver dos utopistas dominou, durante muito tempo, as representações socialistas do século XIX, e em parte ainda as domina. Cultivavam-no, até muito pouco tempo todos os socialistas franceses e ingleses…também o comunismo mais antigo…”. (Engels, idem, p.141).

De outra parte, recorde-se que é Marx, ainda em 1847 (“Miséria da Filosofia”) e precisamente na sua crítica demolidora a Pierre Proudhon, quem assenta a base concreta e histórica do pensamento dos socialistas utópicos, como representação de um estágio de elaboração teórica. Afirmou então Marx, ali:

“Enquanto o proletariado não está ainda suficientemente desenvolvido para se constituir em classe; enquanto a própria luta do proletariado com a burguesia não tem ainda um caráter político; e enquanto as forças produtivas não se desenvolveram ainda suficientemente…não são senão os utopistas que, para obviar às precisões das a classes oprimidas, improvisam sistemas e correm atrás de uma ciência regeneradora”. [13]

Essas duas obras referidas foram escritas num intervalo de 33 anos. O que elas atestam são uma incrível coerência de Marx e Engels quanto aos fundamentos epistemológicos que sustentam a construção da teoria dialética e materialista por eles desenvolvida, onde abriram um novo caminho de interpretação e transformação da história da sociedade capitalista.

Como diz Barata-Moura, eles dispuseram-nos a partir daí de “um balcão de perspectiva enriquecido para uma transformação do mundo que nos incumbe levar a cabo” (Op. cit., p. 50). Noutras palavras, abriram-se clareiras imensas à compreensão da realidade em movimento, largas veredas condutoras aos combates mudancistas. Mas não só: uma questão crucial da grandeza teórica de Marx e Engels no desvelamento das limitações reformistas dos utopistas é a demonstração que realizam: a) no sentido de desnudar a gênese e o caráter classista do capitalismo; b) em argumentar, mais uma vez inovadoramente, que a sociedade burguesa corresponde a um estágio transitório na história (Idem, p.63).

Marx teleológico: “tautologias vazias”

O excelente “Novo Dicionário da Filosofia e das Ciências Humanas”, de Louis-Marie (Grandes Écoles) e Jean Lefranc (honorário Paris-Sorbonne) define epistemologicamente “teleologia” como sendo “Doutrina da finalidade”. Quer dizer, uma explicação geral dos fenômenos pela consideração dos fins divinos ou humanos. Por isso, também, I. Kant falava em “prova físico-teleológica” da existência de Deus. [14]

A questão é que, definitivamente, essa matéria seguramente não é para principiantes, muito menos prosa afeitas à leviandades ou acusações ignorantes a Marx. G. Lukács, em “Para uma ontologia do ser social”, seu estudo mais badalado, discorre de modo claro sobre a temática, a partir da crítica de Marx a ele mesmo: ao poderoso filósofo (idealista) I. Kant. Porque ao tratar insistentemente do transcendentalismo divino, um problema central é que Kant encerra seu aparato teórico analítico de “teleologia” do plano cognitivo, e não no ontológico, onde deveria estar situado. Noutras palavras, mesmo que ele consiga desmontar a crítica da “teleologia superficial da teodiceia de seus predecessores” [15] – onde bastaria uma coisa beneficiar outra para a realização de uma teleologia transcendente -, Kant, entretanto, “fecha o caminho” no plano metodológico imediato, ao substituir cognição por ontologia. Aqui, conforme Lukács:

“(…) em última instância, o problema ontológico continua não resolvido e o pensamento é bloqueado dentre de um determinado limite ‘crítico’ do seu campo operativo, sem que a questão possa receber, no quadro da objetividade, uma resposta positiva ou negativa. (…) Dessa forma, o problema da causalidade e da teleologia se apresenta, do mesmo modo, na forma de um – para nós – incognoscível. Kant pode repelir o quanto quiser as pretensões da teleologia: essa negação se limita ao ‘nosso’ conhecimento, pois a teleologia aparece como pretensão de ser ciência e por isso, na medida de tal pretensão, fica sujeita à autoridade da crítica do conhecimento”. [Lukács, 2013, idem, pp. 50-51).

Em direção contrária, Lukács lembra ainda que Marx nega a existência de qualquer teleologia exceto aquela concertada pela práxis humana: a do trabalho. Dito de outra maneira por Lukács, para Marx, o trabalho não é uma das muitas formas fenomênicas da teleologia em geral, mas “o único ponto onde se pode demonstrar ontologicamente um pôr teleológico como momento real da realidade material” (Idem, p.51).

Marx “teleológico”? Ora, acusadores de Marx, deliberadamente ou não, ignoram aspectos fundamentais de sua tese doutoral “Diferenças entre a filosofia da natureza de Demócrito e Epicuro”, [16] escrita em 1841, quando Marx tinha somente 23 anos – isto é, na fase alcunhada de “o jovem Marx”.

Repondo questões relevantes Ana Albinati, discorre sobre a pesquisa de Marx, encontrada incompleta, onde, apresentando bem além uma interpretação original da filosofia de pós-aristotélica, ressalta haver nela as inquietações percucientes diante do influente pensamento da era pós-hegeliana. “Notável escavação de princípios” observa Albinati, [17] onde, a) as distintas visões atomistas dos dois filósofos gregos; e, b) e a nova problemática da “autoconsciência, assumida então por Marx, o fazem discorrer analiticamente “dois blocos filosóficos diferentes sistemáticos e coerentes”.

De outra parte, chama a atenção de que, já em “O jovem Marx e outros escritos de filosofia”, Lukács enxergando ali um embrião das teses sobre Feuerbach, considera ademais que há na dissertação de Marx uma vinculação da filosofia à oposição liberal sugerindo nexos a um “programa político” [18]. Isto já significa – afirma Albinati (Op. cit., p. 13) – que Marx, ao escolher a filosofia antiga como base de sua crítica, passa a pensar os fenômenos de seu próprio tempo, referindo-se inclusive à cisão entre os discípulos de G. Hegel como sendo também uma batalha entre duas tendências opostas, a liberal e a positiva:

“(…) [a primeira] retém como determinação principal o conceito e o princípio da filosofia, enquanto a outra retém como tal o seu não conceito, o fator da realidade. (…) O ato da primeira é a crítica e, portanto, exatamente o voltar para fora da filosofia, sendo o ato da segunda a tentativa de filosofar, e, portanto, o voltar-se para dentro de si da filosofia…” (Marx, 2017, op. cit., p. 59).

Enfim, como bem reforça Albinati, estudiosos da obra de Marx vêm nesse pioneiro estudo Marx o ponto de partida para o materialismo (Denis Collin); J. Bellamy Foster sustenta a crítica materialista de Marx a Hegel, naquela tese doutoral; o intento de descobrir e superar as insuficiências do hegelianismo também é assinalado por Lukács em sua obra sobre o jovem Marx. [19]

Marx “teleológico”? Observe-se como desfecha seu estudo, repita-se, aos 23 anos:

“Ou as provas da existência de Deus não passam de tautologia vazias – por exemplo, a prova ontológica nada diz além disto: ‘O que represento para como real (realiter) é para mim uma representação real’ que atua sobre mim, e nesse sentido todos os deuses, tanto os pagãos como os cristãos, tiveram existência real. O velho Moloque [Moloch] [20] não reinou? O Apolo de Delfos [21] não constituiu um poder real na vida dos gregos? Nesse ponto, tampouco a crítica de Kant significa algo” (Marx, 2017, idem, p.133; grifos de Marx)


(…) Nesse sentido, todas as provas da existência de Deus são provas de sua não existência, refutações de todas as representações de um deus”. (Marx, 2017, idem, p. 134; grifos de Marx).

Gramsci: “Karl Marx… É um vasto e sereno cérebro humano”

Antonio Gramsci, a quem se dispensa apresentação, sabe-se bem hoje, foi dos teóricos revolucionários marxistas mais criativos. A frase da epigrafe encontra-se no final do artigo “O nosso Marx” [22], onde Gramsci sumariza uma interpretação do papel e da significância histórica do pensador alemão, de grande densidade e alcance. Marx – escreve o italiano – não escreveu “uma doutrinazinha, não é um Messias”, tampouco nos legou “normas indiscutíveis, absolutas, fora das categorias de tempo e espaço”. Sarcasticamente parafraseando a “teleologia” do dogmatismo religioso kantista, declara, ser para Marx o “Único imperativo categórico, única norma: ‘Proletários de todos os países, unam-se!”.

Enfatizando que Marx foi homem de pensamento e ação, grande e fecundo nas duas esferas, Gramsci abordava então uma questão crucial, ainda hoje utilizada por adversários e críticos de um suposto “voluntarismo” em sua construção da prática política de sua teoria:

“(…) sua ação foi fecunda, não porque inventou a partir do nada, não porque extraiu de sua fantasia uma visão original da história, mas porque nele o fragmentário, o incompleto e o imaturo se tornaram maturidade, sistema e tomada de consciência. (…) seus livros transformaram o mundo, assim como transformaram o pensamento. Marx significa ingresso da inteligência na história da humanidade, advento da consciência”. (Op. cit., p.66).

Mas, voluntarismo na análise e ação políticas, em Marx? Segundo discerne Gramsci, a temática da ação política em Marx origina-se e relaciona-se à formação do partido político independente de classe, sua organização, por isso mesmo, distinção, diferenciação classista, organização compacta e disciplinada, visando finalidades próprias e específicas. Noutras palavras,

“Vontade, do ponto de vista marxista, significa consciência da finalidade, o que, por sua vez, significa noção exata do próprio poder e dos meios para expressa-lo na ação. (Karl Marx é para nós mestre da vida espiritual e moral, não um pastor brandindo seu cajado” (Idem, p. 68).

As considerações de Gramsci vêm bem a propósito das “críticas” da análise de Marx acerca da “Comuna de Paris”, num exemplo. Diz-se por aí que, um balanço “voluntarista”, muito simplificado sobre a questão do Estado, a partir das lições retiradas por Marx da insurreição comunarda teria influenciado erroneamente, inclusive, até a posterior forma de organização do poder político na URSS de Lênin. São críticas completamente despropositadas e claramente esquemáticas. Por que?

1. É preciso repor a verdade dos fatos, vez que, Marx, que desde 1870 advertira, em nome da Iª Internacional, ao proletariado parisiense “contra qualquer insurreição prematura”, logo a seguir não só organizou ativamente a solidariedade quando do massacre da Comuna, como não se ateve “apenas aos aspectos mais salientes dessa primeira experiência meteórica de poder operário” – e da democracia direta ali praticada. Marx: “analisou-a profunda e detalhadamente extraindo dela inferências (em especial relativas à questão do Estado)”, tendo avaliando-a “como decisiva para o projeto revolucionário”. [23]

2. Especialmente esclarecedor da formidável visão de Marx, Eugene Schulkind, no indispensável “Dicionário do Pensamento Marxista”, [24] considera que Marx afirmou não só serem as medidas tomadas pelos comunardos notáveis pela sua sagacidade e moderação, bem como especiais, mas que elas “não poderiam senão indicar a tendência” de um governo do povo e pelo povo. E complementa Schulkind:

“Longe de dever ser vista como um modelo dogmático, ou como fórmula para governos revolucionários do futuro, a Comuna de Paris foi, para Marx, ‘uma forma política totalmente expansiva ao passo que todas as outras formas anteriores de governo haviam sido enfaticamente repressivas’”.

3. São amplamente conhecidas as observações, textos e estudos de V. Lênin alisando as relações da experiência da Comuna de 1871, a revolução e o Estado, notadamente sua célebre obra “O Estado e a revolução” (1917). Mas é pouco conhecido seu artigo, bem anterior, para o jornal “Proletari” (nº 8, de 17 (4) de julho de 1905). Seguindo observações dialéticas de Marx, é precisamente nesse texto que Lênin afasta qualquer vestígio de interpretação mecanicista ou dogmática, já anunciando que não se poderia repetir tal processo nas condições históricas e sociais da velha Rússia. Não se repetir tampouco copiá-la. Conclui ali, Lênin:

“Por último,(…) ao tirarmos ensinamentos da Comuna de Paris, não devemos repetir os seus erros (não tomaram o Banco de França, não empreenderam a ofensiva contra Versalhes, não elaboraram um programa claro, etc.), mas os seus passes práticos que tiveram êxito e que apontaram o caminho certo. (…)nem repetir cegamente todas as suas diretivas; pelo contrário, devemos fazer por que ressaltem as diretivas programáticas e práticas correspondentes ao estado de coisas existente na Rússia(…)”. [25]

À guisa de conclusão

O constructo teórico-epistemológico de Karl Marx se funda no materialismo dialético, que desenvolve uma nova e revolucionária interpretação da história a partir daí. O marxismo de Marx (de Engels e de Lênin), sua teoria, opera extremos esforços da inteligibilidade humana perseguindo não se separar do sempre rebelde movimento da matéria. Só o interpreta como dogma é quem subjetivamente o deseja. Entronizado na práxis política, orienta e organiza a ação transformadora. Esta teoria do conhecimento, caminha (estagna ou retrocede) conforme a dinâmica material das conexões internas do fenômeno: as contradições. Ou, como iluminou Marx ao posfácio da 2ª edição alemã de “O capital”, [26] distinguido – indelevelmente – o “oposto” de seu método, ao de G. Hegel:

“A investigação tem que apoderar-se da matéria, em seus pormenores, de analisar suas diferentes formas de desenvolvimento, e de perquirir a conexão íntima que há entre elas. Só depois de concluído esse trabalho, é que se pode descrever, adequadamente, o movimento real. Se isto se consegue, ficará espelhado, no plano ideal, a vida da realidade pesquisada, o que se pode dará a impressão de uma construção a priori”.

Devastador, o método do qual irradia a configuração teórica de Marx não se presta a servir a devaneios subjetivistas e anticientíficos. Sim, Marx não só construiu a façanha de produzir uma síntese da economia política inglesa, da filosofia clássica alemã e do socialismo francês a cimentar os alicerces de sua obra, simultaneamente a uma fecunda e poderosa ruptura epistemológica.

Não à toa o destacado pesquisador da Mega2 [27] Rolf Hecker afirma que uma coisa são os escritos de Karl Marx, mais recentemente complementado – esta é a palavra – por manuscritos em grande parte inéditos; outra, são os que professam ter Marx espraiado “utopias”, “teleologias”, ou que erros graves foram cometidos e responsabilizados em nome de sua teoria.

Ora, segundo assevera ipsis verbis o professor Hecker, gigantes do pensamento como Marx não podem ser apagados da memória simplesmente por mudanças sociais, independentemente da maneira como elas sejam julgadas. Afinal, diz por exemplo Hecker:

“O próprio Marx dizia não ser nenhum marxista, preferindo para sua teoria o termo ‘socialismo científico’. Dessa forma, ele se delimitava de outros projetos estatais e sociais, classificados por ele como ‘socialismo utópico’ ou ‘anarquismo’”. [28]

Pouco antes escrevera Hecker uma espécie de (esclarecedor) paradoxo, afirmando que, sobre o capitalismo, Marx escreveu muito, ainda que pouco tenha experimentado dele; todavia sobre o socialismo, “Marx não escreveu quase nada, apesar de ter sido responsável por ele” (op. cit., p.13).

De outra parte, são consagrados os estudos de Nicola Badaloni [29] relacionando as concepções de Marx sobre socialismo e liberdade, exatamente sem que esta relação não se oriente pela luta política. Badaloni considera usar Marx “o método das abstrações transitórias”, onde: a) o desenvolvimento da produtividade do trabalho é compreendido na “luta pela libertação das massas”; b) libertação que se afirma pela luta de classes num processo histórico, na difusão cultural, na redução do poder e da propriedade das camadas superiores; c) o que pode ser possível se a compreensão do capitalismo enxergue blocos analíticos desta sociedade como um conjunto, isto é, onde os fenômenos sejam processo transitórios, e não “em estado puro”.

Numa mesma angular, é no excelente estudo “Os caminhos da liberdade no jovem Marx. Da emancipação política à emancipação social”, [30] que Julia Vieira procede a uma interpretação (dialética) crucial acerca do entendimento avançado de Marx dessa mesma temática – sepultando as tolices dos que julgam Marx portador de uma “razão libertária” caudatária do iluminismo. Porque – escreve ela -, se ainda entre 1837 e 1842 a finalidade da emancipação dos homens passa pela desconstrução da alienação da razão via “desenvolvimento do sufrágio universal e da educação” da consciência humana no bojo da emancipação política,

“Entre o jovem Marx republicano e o jovem Marx comunista há assim um mesmo horizonte de dissolução das cadeias dos homens entendidas como alienações: a autonomia como princípio do humanismo. A dissolução do poder de determinação da ordem social permanece como condição para ao desenvolvimento da liberdade no sentido da dissolução do poder público formal, o que mantém irrealizadas a justiça, a igualdade e a liberdade declarada no direito positivo”.

Marx Condenado pelos erros dos “marxistas”?

Escoimando o falso veredito, outro pesquisador – “L’ultimo Marx” -, Marcello Musto, quando narra os ataques de Marx ao uso de “certa fraseologia ultrarrevolucionária” entre seus partidários, recorda que ele considerava vazia, e assim posições perfeitamente delegadas aos anarquistas, estes “os pilares da ordem existente, não criadores da desordem”. [29] E adverte: Karl Marx, igualmente ficava furioso com os que se declaravam seguidor de suas ideias sem as conhecer: “Tudo o que sei é que não sou marxista” (Op. cit., p. 129).

Marx respondia assim às “opiniões” fantasiosas de que a sua teoria revelar-se-ia responsável por falcatruas e desastres em seu nome.

*Este texto é desdobramento de: “O nosso Marx – e a velha esquerda”, publicado no Portal Vermelho,  em grabois.org.br e no blog do Renato Rabelo

NOTAS
[1] Ver: “Marx ‘filósofo’”, I. Mészaros, em: “História do marxismo 1. O marxismo no tempo de Marx”, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, pp. 160-1.
[2] Em: https://jornalistaslivres.org/the-economist-implora-um-reformador-pelo-amor-de-deus/
[3] Citado por Michael Roberts, em: http://www.sinpermiso.info/textos/marx-200-carney-bowles-y-varoufakis
[4] Em: Editora Contraponto, Rio de Janeiro, 2004, p.19.
[5] Ver: “Materialismo e empiriocriticismo. Notas críticas sobre uma filosofia reacionária”, V. I. Lénine, Lisboa/Moscou, Avante!, 1985, p.103.
[6] Ver: “A epistemologia”, G. Bachelard, Lisboa, Edições 70, 2006, p.165. Também Cf. Vincent Bontems, “Bachelard”, São Paulo, Estação Liberdade, 2017, p. 33: “[Em Bachelard] “o espírito científico progride sempre por uma retificação de seus conhecimentos que permitem sua extensão”.
[7] Ver: G. Bachelard, Op. cit., Rio de Janeiro, Contraponto, 2004.
[8] “Essa harmonia que a inteligência humana crê descobrir na natureza existirá fora dessa inteligência? Não, sem dúvida é impossível uma realidade completamente independente do espírito que a concebe, vê ou sente”. Ver: H. Poincaré, “O valor da ciência”, Rio de Janeiro, Contraponto, 1995, p. 9, 4ª reimpressão.
[9] Ver: “A física do século XX”, M. Paty, São Paulo, Ideias & Letras, 2009, p.31.
[10] A discussão desse ponto baseia-se amplamente em: “Da utopia dos mundos sonhados à transformação prática das realidades”, de J. Barata-Moura, e não à toa publicado exatamente na obra coletiva “Karl Marx: desbravando um mundo novo no século XXI” (2018), apresentada no referido seminário a da Fundação Maurício Grabois.
[11] Ver: “Pós-modernismo e a atualidade da teoria marxista”, Madalena G. Peixoto, Revista Princípios, nº 150, São Paulo, Anita Garibaldi, 2017, pp. 58-67. Peixoto distingue bem as contribuições de Frederic Jameson e David Harvey, das alinhadas com o “fim do marxismo” de F. Lyotard e J. Braudillard.
[12] Ver: “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, F. Engels, Obras Escolhidas Marx-Engels, V. III, Lisboa/Moscou, Avante!/Progresso, 1985, pp.140-1.
[13] Marx, Apud: Barata-Moura, 2018, op. cit. p. 57.
[14] Em: Editora Instituto Piaget, Lisboa, 2005, p. 616.
[15] Ver: Lukács, op. cit, pp. 49-50, V. II, São Paulo, Boitempo, 2013.Teodiceia: do grego= justiça, processo, justificação. Em sentido estrito, teodiceia é colocada a todo filósofo e a todo teólogo que concebe um mundo governado ou criado pelo Bem (Platão, santo Agostinho, Malebranche. “O sistema dialético de Hegel, em seu conjunto, pode ser considerado como uma forma de teodiceia”. Ver: “Novo Dicionário da Filosofia e das Ciências Humanas”, op. cit., p.623.
[16] Em: Editora Boitempo, São Paulo, 2017.
[17] Marx, 2017, op.cit., Apresentação de A. Albinati, p.10.
[18] Ver: “Cadernos de Paris & Manuscritos econômicos-filosóficos de 1844”, Karl Marx, Apresentação de J. Paulo Netto, São Paulo, Expressão Popular, 2015, notas 18-19, pp. 114-115.
[19] Embora Albinati referencie-se em Aguste Cornu para considerar “idealista” a análise de Marx sobre o materialismo de Epicuro (pp. 15-16).
[20] Moloch, na referência bíblica, era o nome do deus ao qual os amonitas (etnia de Canaã ou de povos presentes na península arábica e na região do Oriente Médio) cultuavam. Também é o nome de um demônio na tradição cristã e cabalística, e, nos rituais de adoração, havia atos sexuais e sacrifícios de crianças, jogando-os em uma fogueira.
[21] Delfos refere-se a uma atual moderna cidade grega e ao local que, na antiguidade servia de oráculo ao Deus Apolo. Delfos era considerada pelo mundo grego “o centro do universo”.
[22] Em: “O leitor de Gramsci. Escritos escolhidos 1919-1935”, C. Nelson Coutinho (org.), Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2011.
[23] Ver: “O leitor de Marx”, J. Paulo Netto (org.), “Introdução”, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2012, pp. 32-33.
[24] Em: Jorge Zahar Editor, Verbete Comuna de Paris, editado por Tom Bottomore, Lawrence Harris, V. G. Kierna, Ralph Miliband coeditores, Rio de Janeiro, 1988, pp.70-71.
[25] Ver: “A Comuna de Paris e as tarefas da ditadura democrática”, V. I. Lénine, 1905. Em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1905/07/17.htm#topp
[26] Ver: “O capital (Crítica da economia política) Livro 1, v.1 : O processo de produção capitalista”, Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p. 16.
[27] Entre 1975 a 1989, organizada para ter 165 volumes, o projeto, então, de Moscou-Berlim, da MEGA2 sumariava: I) Obras, Artigos, Rascunhos (35 volumes); II) O capital e os escritos preparatórios (15 volumes) III); Correspondência, agora completa, com as cartas dirigidas a Marx e Engels (40 volumes); IV) Notas, material manuscrito adicional e apontamentos de livros (75 volumes). Mais de 40 volumes publicados, a sabotagem e desagregação do socialismo real do Leste europeu interrompeu e quase liquida a nova empreitada. Pesquisadores da “Fundação Internacional Marx-Engels” (IMS) de Amsterdam e a Academia de Ciências de Brandemburgo (Berlim) retomaram a iniciativa. Sediada em Berlim, redefiniu-se para 114 volumes, nas mesmas seções indicadas, e até 2013 mais 20 volumes foram publicados. Detalhes em: “Da política à filologia: a Marx-Engels Gesamtausgabe”, de Gerald Hubmann, Crítica Marxista nº34, 2012; também “‘O capital e seus escritos preparatórios’: sobre o lançamento do volume 4.3 da MEGA’”, de Jorge Grenspan, Crítica Marxista nº 37, 2013.
[28] Ver: “Marx como pensador. Novos resultados do trabalho de pesquisa sobre sua obra e biografia”, R. Hecker, São Paulo, Fundação Maurício Grabois/Anita Garibaldi, p.15.
[29] Ver: “Marx e a busca da liberdade comunista”, N. Badaloni, “História do marxismo”, vol 1, E. Hobsbawm (org.), Rio de janeiro Paz e Terra, 1979, p. 251.
[30] Em: Anita Garibaldi/Fundação Mauricio Grabois, São Paulo, 2017, pp. 317-319.
[31] Ver: “O velho Marx”, M. Musto, São Paulo, Boitempo, 2018, pp.126-9. Óbvio que “último” não quer dizer “velho”, portanto distorcida a tradução do original italiano de 2016.

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